domingo, março 11, 2018

O “operário” de FHC - Fernando Henrique redescobre um Lula que nunca existiu - J.R. GUZZO

REVISTA VEJA

Se Lula se livrar da penitenciária, ninguém do PT e da “esquerda”, e muito menos o próprio Lula, vai dizer uma única palavra de agradecimento a FHC (/)

O Lula que o ex-presidente Fernando Henrique deu para elogiar de uns tempos para cá é um homem imaginário. Até agora ninguém parece ter entendido direito o que ele está querendo dizer com essa súbita descoberta de virtudes no personagem que até outro dia, pelo menos em público, o tratava como o político mais desprezível do Brasil. Lula, na verdade, passou anos a fio cuspindo em Fernando Henrique. Jamais admitiu que o seu antecessor na presidência da República tivesse tido o menor mérito em nada do que fez durante os oito anos em que esteve no governo. Ao contrário: inventou a mentira de que tinha recebido dele uma “herança maldita”, responsável por tudo que havia de errado no Brasil. Dirigiu-lhe ofensas pesadas. Tratou-o sempre com rancor, despeito e inveja. Mais que tudo, Lula agiu no Palácio do Planalto de maneira oposta às ideias gerais de Fernando Henrique. Agora, sem que se saiba por que, tornou-se um líder político exemplar na opinião do adversário de sempre. Mudou Lula ou mudou FHC? Lula, com certeza não mudou nada ─ ou melhor, mudou para muito pior do que jamais foi em toda a sua carreira. Quem mudou, então, foi FHC. É melancólico. Mas a vida tem dessas coisas ─ como mostra tão bem a experiência, o cérebro humano não é necessariamente um lugar coerente.

Na falta de uma explicação capaz de fazer algum nexo, o que se pode imaginar, com base no “Manual de Psicologia Para Amadores”, é que Fernando Henrique está de volta aos seus sonhos de 40 anos atrás. Lembram-se dele? Era, então, o retrato acabado do intelectual de esquerda brasileiro enquanto jovem ─ ou, se preferirem, mais ou menos jovem. Trazia na alma e na mente as fantasias clássicas do socialista de Terceiro Mundo, armado de leituras europeias e à procura de um regime que até hoje só existiu na imaginação das salas de aula da universidade: o “socialismo com liberdade”. Ou, então, uma nova “ditadura do proletariado”, que viesse só com proletariado e sem ditadura. Na São Bernardo do final dos anos 70, FHC e seus pares se deslumbravam com a possibilidade de ver um operário de carne e osso, ou pelo menos um líder sindical, virar uma força política de verdade. Até então, como tantos dos intelectuais brasileiros, talvez nunca tivesse visto um operário ao vivo e a cores. De repente, não só vê, mas descobre que um “homem do povo” como Lula pode crescer num sistema de liberdades, com eleições, direitos individuais, separação de poderes, etc. Bom demais, não é mesmo? Encantada, a classe intelectual da época “pirou”, como se diz.

Depois, na vida real, Fernando Henrique esqueceu por completo a figura da fábula ─ ao constatar que Lula, o herói das massas populares que iria fazer a “passagem pacifica para o socialismo”, era apenas uma invenção. Pior do que um simples equívoco, Lula era uma falsificação, como ficou comprovado assim que passou a mandar. Junto com o PT, transformou o seu governo, e o da sucessora que inventou, numa caçamba de lixo a serviço de empreiteiras de obras públicas, fornecedores da Petrobras e outros marginais hoje na cadeia, réus confessos e condenados por corrupção em massa. Onde acabou caindo o líder operário? Foi apenas mais uma quimera desfeita ─ só isso.

No percurso entre São Bernardo e a 13ª. Vara Criminal de Curitiba rolou uma vida inteira. Lula e FHC passaram a ser inimigos ─ os mais extremados da política brasileira moderna. Agora, aos 87 anos de idade, Fernando Henrique faz um salto espetacular rumo ao passado ─ e passa a orar para um herói que nunca existiu, nem na época e muito menos agora. Justamente agora, aliás, Lula está no seu ponto mais baixo ─ condenado como ladrão em três instâncias, por nove magistrados diferentes, abandonado pelas “massas” e necessitado de um golpe no Supremo Tribunal Federal para não acabar na cadeia. O ex-presidente, ex-sonhador e ex-inimigo migrou para o seu lado, é verdade, mas nenhum dos dois parece ter grande coisa a ganhar com isso. Se Lula se livrar da penitenciária, ninguém do PT e da “esquerda”, e muito menos o próprio Lula, vai dizer uma única palavra de agradecimento a FHC. Se não se livrar, o seu apoio não terá servido para coisa nenhuma. Esse mundo é mesmo injusto.

Do querer ser ao crer que já se é - PEDRO MALAN

ESTADÃO - 11/03

Há que buscar as convergências possíveis, que sempre existem, entre os mais moderados


A fantasia humana é um dom demoníaco. Está constantemente abrindo um abismo entre o que somos e o que gostaríamos de ser. Entre o que temos e o que gostaríamos que tivéssemos.” Assim escreveu Mario Vargas Llosa em La Verdad de las Mentiras. Pode um dom ser demoníaco ou a expressão é apenas um atroz paradoxo, produzido pela veia literária do autor?

Dom, afinal, significa qualidade ou característica especial, geralmente positiva. Demoníaco, algo negativo, relativo a ou próprio do demônio. A combinação das duas palavras tende a significar algo ruim se o abismo continuamente aberto pela fantasia humana leva a anomia, paralisia, desalento, inveja, ressentimento, cinismo, raiva. Mas poderia também evocar algo bom: a busca por desenvolver potencialidades, por crescer, enfrentar e superar com coragem as adversidades.

É instigante imaginar que o texto de Vargas Llosa possa aplicar-se também a sociedades e países, como o Brasil de 2018; e às perspectivas de consolidação da democracia nos próximos anos, entre nós como em várias outras partes do mundo, inclusive o desenvolvido. Ocorre-me a reflexão porque segue prolífica a temporada de livros sobre “suicídios” de regimes democráticos, alguns já mencionados neste espaço. Acabam de sair How Democracies Die, de S. Levitsky e D. Ziblatt, e Authoritarianism and the Elite Origins of Democracy, de V. Menaldo e M. Albertus, ambos ainda sem tradução. A maioria das obras procura lembrar como sucumbiram tantas democracias europeias nos anos 20 e 30 do século passado. Sobre a Tirania, de Timothy Snyder, e A Mente Imprudente e A Mente Naufragada, ambos de Mark Lilla, são belos exemplos de que há lições da História - recente - que não devem ser esquecidas. Afinal, os conflitos em questão levaram a dezenas de milhões de vítimas.

Umberto Eco recuperou o discurso feito em abril de 1938 por um Roosevelt acossado por nacional-populistas-isolacionistas e seus milhões de seguidores: “Ouso dizer que se a democracia americana parasse de progredir como uma força viva, buscando dia e noite melhorar por meios pacíficos as condições de nossos cidadãos, a força do fascismo cresceria em nosso país”. Eco sugere que este seja o mote: “Não esqueçam”. A literatura recente vem procurando compreender por que desde 1980 houve cerca de 25 casos de transições, não de ditaduras para democracias, mas de jovens democracias para tiranias variadas. Atenção especial tem sido conferida a tentativas não mais de aceder ao poder pela via eleitoral, mas de assegurar a continuidade no poder para muito além dos mandatos originalmente conferidos pelas urnas, não apenas por meio de rupturas democráticas, mas também de mudanças institucionais, via Legislativo e Judiciário.

Para além de golpes de Estado e de instâncias de fragilidade institucional há um terceiro fenômeno, insidioso e preocupante, a dificultar a consolidação de democracias estáveis e funcionais. Trata-se de carência de espírito público, de exercício constante de cidadania e de cooperação baseada na confiança mútua entre cidadãos no período que separa uma eleição da seguinte. A eleição não pode constituir álibi para o eleitor só porque este votou na data aprazada.

Esse é o risco que corre a consolidação da democracia brasileira. O risco do desalento, do ceticismo, do cinismo. Do desinteresse pelo mundo da política - porque “não me sinto representado”, porque “meu envolvimento não faz diferença”, porque “todos são iguais”. Não são. Há gente decente na política. Há que descobri-la, estimulá-la e envolver-se como possível. Quem não gosta de fazê-lo acaba sendo governado por quem gosta ou por aqueles que buscam as instrumentalidades do poder e as benesses de compadrios no aparato do Estado.

Na primeira metade do século passado três obras de ficção, imperdíveis, procuraram vislumbrar o futuro décadas à frente e se mostraram premonitórias em sua percepção sobre o desenvolvimento tecnológico e suas consequências políticas e sociais. A peça teatral R.U.R, Rossum’s Universal Robots (1920), de Karel Capek, na qual certamente Aldous Huxley se inspirou para escrever seu Admirável Mundo Novo (1932), e 1984, de George Orwell (1949), são clássicos que guardam enorme interesse em tempos de inteligência artificial, robotização e conglomerados privados gigantes que conhecem o que compramos, procuramos e compartilhamos. E de governos, como os da China e da Rússia, que se propõem com êxito a controlar o que é postado na internet por seus cidadãos.

Em carta enviada a Orwell em outubro de 1949, em que lhe agradecia o envio de seu 1984, Huxley reputa o livro “profundamente importante”, mas observa sobre o futuro que, em vez de uma bota oprimindo um rosto humano, as oligarquias dominantes encontrariam meios mais eficientes de satisfazer seus impulsos por poder - meios mais parecidos com os que descreve no seu livro de 1932, ao qual voltou em 1958, em seu Admirável Mundo Novo Revisitado.

Voltemos a Mario Vargas Llosa. O Brasil pode, nestas eleições de 2018, e ao longo do próximo quadriênio, utilizar seu dom demoníaco para reduzir a diferença abissal entre o que somos e o que gostaríamos de ser, entre o que temos e o que poderíamos ter? Qualquer esforço sério nesse sentido exige evitar voluntarismos e promessas de retorno a passados tidos como gloriosos. Exige paciência, persistência, perseverança, boa-fé e honestidade intelectual para mostrar à população que há escolhas difíceis a fazer e falsos dilemas a evitar. Há que buscar as convergências possíveis, que sempre existem, entre os mais moderados. Para tal é preciso humildade e prudência-com-propósito.

Como escreveu Ortega y Gasset em suas Meditaciones Del Quijote, “do querer ser ao crer que já se é vai a distância entre o trágico e o cômico, o passo entre o sublime e o ridículo”. Ao empregar seu dom demoníaco, o Brasil não pode incorrer nesse equívoco.

*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC

Excesso de liberalismo econômico está por trás do crescimento da China - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 11/03

Quem tem Estado mínimo, o Brasil ou a China? Aqui, a carga tributária é de 32% do PIB, e lá, de 21%


Laura Carvalho, minha colega que ocupa este espaço às quintas, abordou em sua coluna da semana passada o relatório da OCDE(Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) divulgado em 28 de fevereiro em Brasília.

Como apontou Laura: "O relatório da OCDE recomenda, além de abrir mais a economia para a concorrência estrangeira e reformar a Previdência, tornar o Banco Central independente, pôr fim à política industrial, desvincular os benefícios sociais do salário mínimo e reduzir o papel do BNDES, entre outras medidas. O conjunto de reformas estruturais propostas, acredita, seria capaz de elevar o crescimento do PIB brasileiro em 1,4 ponto percentual ao longo dos próximos 15 anos".

Segundo Laura, o relatório repisa temas de receitas antigas que não funcionaram. Poucos países se deram bem. Laura escreve que "a exceção são os países que conseguiram acelerar muito suas taxas de crescimento por não terem cumprido a cartilha, entre os quais a China é o maior exemplo".

Para Laura, o crescimento espetacular da China deve-se ao fato de não ter cumprido a cartilha da liberalização dos mercados.

Quem será que tem Estado mínimo? O Brasil ou a China? A carga tributária no Brasil é de 32% do PIB, e na China é de 21%. O gasto com saúde, educação, aposentadoria do setor privado e assistência social no Brasil é de 20% do PIB e na China é de 8,5% do PIB. Será que a China gasta tão menos do que o Brasil porque há poucos idosos por lá? Não é o caso. A população com 65 anos ou mais na China é de 8,5% da população total, ante 7% para o Brasil.

Será que nosso gasto em educação é elevado em razão de termos mais crianças? De fato, a população com 15 anos ou menos no Brasil é de 25%, ante 18% na China. Como a China gasta 3,7% do PIB com educação, para mantermos a mesma proporção, teríamos de gastar 5,1%. Nosso gasto é superior a 6% do PIB.

O mercado de trabalho chinês, até 2007, antes da edição de uma nova lei trabalhista, era algo mais próximo da Inglaterra de Charles Dickens do que de qualquer coisa remotamente aparentada ao que se encontra nas economias modernas.

São comuns ainda na China os casos de pais que migram para outras cidades ou províncias e, em razão do sistema de passaporte interno, perdem o direito de pôr os filhos nas escolas públicas. Ou deixam os filhos aos cuidados dos avós na cidade de origem ou são obrigados a pagar escolas particulares de pior qualidade.

Evidentemente esse gasto social diminuto e essas condições que há até pouco tempo lembravam a primeira Revolução Industrial explicam a elevadíssima taxa de poupança familiar: algo próximo de 50% da renda do domicílio. Aproximadamente 45% da poupança gigante chinesa, de uns 45% do PIB, é familiar!

Assim entende-se os motivos de os juros serem baixos e de a capacidade de investir no setor produtivo, com ênfase na indústria, e de acumular infraestrutura —metrô e saneamento nas grandes cidades e uma respeitável rede de trens de elevada velocidade— ser tão elevada.

Provavelmente Laura acha que o crescimento da China é fruto do câmbio e do juro. Talvez também da conta de capital fechada.

No entanto os números são claríssimos. O crescimento da China deve-se a ser um caso de excesso de liberalismo econômico (não político, evidentemente).

Gostar da China é comum entre nossos economistas heterodoxos. Eles sofrem da síndrome do adolescente. Desejam algumas características, mas não outras. Não notam que são faces de uma mesma moeda.

É formado em física e doutor em economia. É pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV.

Ao ritmo latino - ROBERTO POMPEU DE TOLEDO

REVISTA VEJA

O PEQUENO Equador e a gigante China resolveram de modo inverso, neste início de 2018, a questão da extensão dos mandatos de seus dirigentes máximos. O eleitorado equatoriano, em resposta a plebiscito convocado pelo presidente Lenín Moreno, decidiu no mês passado limitar os mandatos a dois. Revogou-se assim o direito à reeleição sem limites proposto e obtido pelo presidente anterior, Rafael Correa. O Congresso Nacional do Povo aberto em Pequim na segunda-feira 5, ratificará ao seu final a decisão de conceder mandatos ilimitados ao presidente Xi Jinping. Revogará assim a regra de no máximo dois mandatos de cinco anos adotada ao tempo da reação anti-Mao Tsé-tung comandada por seu sucessor, Deng Xiaoping. Se o leitor e a leitora gostam de democracia, devem aplaudir (com reservas) o pequeno Equador e repudiar (sem reservas) a gigante China.

O Equador do surpreendente Lenín Moreno, eleito com o apoio de Rafael Correa, vai se libertando do bolivarianismo do antecessor. Na família bolivariana, Nicolás Maduro, da pioneira Venezuela, goza do privilégio de eleições eternas e fraudadas. O surto reeleicionista da década de 90 na América Latina adotou como regra que a reeleição fosse apenas uma, mas não impediu que, passado o mandato subsequente, o reeleito de novo se candidatasse. É esse o passo que dá agora o Equador, alinhando-se à regra em vigor nos Estados Unidos. Se o Brasil tivesse trilhado o mesmo caminho, em concomitância com a aprovação da reeleição, estaríamos livres do embaraço que paira sobre a eleição deste ano. Lula já seria passado. Não nos acossaria o incômodo de embargar a candidatura do líder das pesquisas.

A Lula e a outros futuros ex-presidentes sobrariam as honrarias de elder statesmen, como dizem os americanos — “velhos estadistas”, com tinturas de sábios, quando merecem, mas sempre aposentados. A regra entrou em vigor nos EUA depois que o presidente Franklin Roosevelt se elegeu quatro vezes. Ora, o que é bom para os EUA melhor ainda seria para a América Latina, com sua atração pelos caudilhos e pelos ditadores. O Equador adotou-a na hora em que Rafael Correa, costeando o alambrado (no puro gauchês de Leonel Brizola), ameaçava nova candidatura, e é por isso que os aplausos merecem reserva. A boa medida vem acompanhada de uma rasteira no adversário. Estamos na América Latina. Pode vir outro e mudar de novo em favor das próprias rasteiras.

Nosso continente hesita (e se perde) entre instituições para o bem da sociedade e para o bem do detentor do poder. A Colômbia sob Álvaro Uribe aderiu à reeleição, e ele ganhou dois mandatos. Seu sucessor, Juan Manuel Santos, igualmente se elegeu e reelegeu. À perspectiva de Uribe reganhar o poder, no entanto, Santos patrocinou, e obteve, a interdição de uma segunda eleição de quem já tenha ocupado a Presidência, fixando regra mais drástica que a equatoriana — não há reeleição nem outra volta possível depois de um único mandato. Marca o ritmo da salsa, em nosso continente, o dono do salão. Quanto à China, o panorama é de cartazes com o retrato de Xi Jinping espalhados pelo país, mandato equivalente ao dos anjos no paraíso e o “pensamento de Xi” inscrito na Constituição, como o Congresso do Povo está intimado a aprovar ainda na presente sessão. Ele só pode se queixar de ainda não ostentar o título de Grande Timoneiro.

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Ao tempo de dom Pedro II ficou célebre o “sorites de Nabuco”, formulado pelo deputado Nabuco de Araújo (pai de Joaquim Nabuco) para denunciar a prática de primeiro nomear-se um governo e depois promover a eleição com cartas marcadas que lhe daria sustentação. Sorites é um aglomerado de silogismos; o de Nabuco de Araújo, lido no Parlamento, rezava o seguinte: “O Poder Moderador (leia-se dom Pedro II) pode chamar quem quiser para organizar ministérios; esta pessoa faz a eleição, porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria. Eis aí o sistema representativo do nosso país”. No Brasil de hoje temos o “sorites de Barroso”, formulado pelo ministro Luís Roberto Barroso, do STF. Nas suas palavras: “O modo de fazer política e de fazer negócios no país funciona mais ou menos assim: o agente político relevante indica o dirigente do órgão ou da empresa estatal, com metas de desvio de dinheiro; o dirigente indicado frauda a licitação para contratar empresa que seja parte no esquema; a empresa contratada superfatura o contrato para gerar o excedente do dinheiro que vai ser destinado ao agente político que fez a indicação, ao partido e aos correligionários”. Barroso é lógico, cortante e certeiro.

Espinha quebrada - CELSO MING

ESTADÃO 11/03

A magra inflação não surpreendeu. Já era esperada. Mas pode indicar uma novidade.

Amagra inflação (apenas 0,32%), a mais baixa em meses de fevereiro dos últimos 18 anos, só não surpreendeu porque já era esperada. Mas pode indicar novidades. Também este 2018 aponta para uma inflação anual em torno de 3% (veja o gráfico). Quem se lembra de inflação mais baixa no Brasil ponha o dedo aqui.

A principal dessas novidades é a de que provavelmente esteja sendo quebrada a chamada inflação estrutural. Boa parte da inflação brasileira acontece por inércia. Os fazedores de preços vinham remarcando suas mercadorias e serviços conforme a inflação anterior, não importando aí se reduziram ou não seus custos de produção. Essa é a principal escrita que pode estar sendo quebrada.

Como assim? Se esse jogo remarcatório é bastante espalhado, ou seja, se todos – fornecedores, produtores e vendedores – se comportam assim, ninguém perde o freguês porque está vendendo mais caro, o concorrente também faz a mesma coisa.

E é isso que parece ter mudado, não só porque o Banco Central fez um bom trabalho na sua política monetária (política de juros), mas porque a recessão e a perda de renda nos meses anteriores levaram o consumidor a comprar menos ou a adiar suas compras. Um sinal de que isso está acontecendo é o fato de que, por alguns meses seguidos, a baixa da inflação está bem espalhada pela cesta de consumo; não está concentrada em um punhado de itens.

Deve ter contribuído para a quebra da inércia inflacionária o uso mais intensivo da tecnologia de informação e dos aplicativos que dispensaram pessoal e aumentaram a rotatividade da mão de obra e contiveram o aumento da massa salarial.

Dois exemplos podem deixar isso mais claro: na medida em que o cliente pode movimentar sua conta no banco e pagar seus carnês por meio do celular e da internet, toda a rede bancária passou a reduzir o número de agências (ou a criar menos) e a contratar menos pessoal. E, na medida em que crescem as compras de mercadorias e serviços por meio do celular e da internet (e-commerce), o comércio não precisa de tantos vendedores e caixas, tampouco os prestadores de serviços precisam de tantos atendentes.

Nessas condições, não só caem os custos de produção, como, também, o empresário que remarca seus preços à moda antiga passa a correr mais risco de ver encalhada sua mercadoria ou de encontrar menor demanda por seus serviços. Além disso, a política de juros ganha eficácia e o Banco Central pode derrubar os juros a níveis mais baixos do que o padrão anterior exigia, quando a inércia inflacionária tinha mais força.

Três outros fatores que se reforçaram uns aos outros parecem ter ajudado a quebrar a espinha da inflação. O primeiro deles é a forte queda dos custos de produção no mundo inteiro em consequência do maior uso de tecnologia, que barateou mercadorias e serviços e derrubou a inflação para abaixo de 2% ao ano nos países industrializados. O segundo é a queda pela metade dos preços internacionais do petróleo, a partir de meados de 2014, que reduziu os custos globais da energia e do transporte. E o terceiro é a maior integração global das cadeias produtivas, que deu maior eficácia à produção e à distribuição.

Não está claro, ainda, até que ponto acabou a inflação estrutural do Brasil. Vai que ela levou uma paulada e está apenas desacordada, mas, mais à frente, se levantará lépida para continuar a destruir renda. O próprio Banco Central tem dúvidas sobre o que de fato está acontecendo. Duas vezes já anunciou o fim do ciclo de baixa dos juros e duas vezes foi, e está sendo, obrigado a continuar a passar a tesoura nos juros, bem mais rente do que tinha imaginado. (Veja o gráfico ao lado.)

A principal razão para desconfiar de que ainda há mais pregos a serem batidos no caixão da inflação é a forte desorganização das contas públicas do Brasil: quando o Estado gasta mais do que pode acaba produzindo inflação.

Uma bagunça - ELIANE CANTANHÊDE

ESTADÃO - 11/03

A sucessão tem nomes demais e candidatos viáveis de menos. Seria cômico, não fosse trágico.

Tem alguma coisa errada quando o líder das pesquisas é um condenado e está com o pé na cadeia, o segundo colocado se empolga (e empolga) com uma “bancada da metralhadora”, o presidente mais impopular da história recente quer entrar na campanha e um expresidente que é réu e caiu por impeachment se lança candidato como se fosse a coisa mais natural do mundo. A sucessão tem nomes demais e candidatos viáveis de menos. Seria cômico, não fosse trágico.

Está difícil decorar os nomes dos quase 15 candidatos e é improvável que todos eles vão em frente. No tão falado “centro”, o presidente Michel Temer dificilmente enfrentará uma campanha, o ministro Henrique Meirelles não encanta nenhum partido e o deputado Rodrigo Maia tem resistências do próprio pai, o ex-prefeito César Maia. Logo, o mais provável é que Temer, Meirelles e Maia acabem desistindo e afunilando para Geraldo Alckmin, do PSDB. E não é impossível que o MDB, com Meirelles, e o DEM, com Mendonça Filho ou o próprio Maia, venham até a disputar a vice do tucano.

Apesar dos pesares e do futuro incerto, o PSDB é considerável. Tanto que, na véspera de se lançar, Maia praticamente esqueceu os demais adversários e disse à Rádio Eldorado que a rejeição ao PSDB é tão grande que solapa as chances de Alckmin. Se o partido fosse tão irrelevante, ele não se daria a esse trabalho.

No mesmo dia, o ex-governador do Ceará e ex-ministro Ciro Gomes (PDT, ex-PDS, PMDB, PSDB, PPS, PSB e PROS) também se lançou, com a expectativa de herdar os votos de Lula e prevendo o oposto de Maia: que o segundo turno será entre ele e Alckmin.

O que diz o próprio tucano sobre o veredicto de Maia? Com seu sorriso de esfinge, releva. Sua prioridade não é bater boca com adversários de hoje, mas transformá-los em aliados amanhã, exatamente como fez com João Doria e Luciano Huck.

Meirelles tem até 7 de abril, prazo das desincompatibilizações, para decidir se vai ser candidato, conquistar a vice de Alckmin (sua melhor hipótese) ou ficar onde está. Já Temer e Maia têm muito tempo, porque podem concorrer nas posições que já ocupam e não têm muito a perder enquanto testam suas chances e observam os cenários.

Amigos e interlocutores juram que Temer é candidatíssimo, mas já imaginaram a imagem daquela corridinha de Rocha Loures com a mala todo dia na propaganda eleitoral? E a sonora com o “mantém isso aí, viu?”? Já os de Maia acham que ele empacar em 1% nas pesquisas não será grave, porque disputar um novo mandato de deputado e voltar à presidência da Câmara está de bom tamanho.

Também ao centro, mas fora do bolo de alguma forma governista, Álvaro Dias (Podemos, ex-PSDB) e Marina Silva (Rede, ex-PT), um muito regional, a outra sem estrutura partidária sólida. E, pela esquerda, há os “nanicos” Manuela d’Ávila (PCdoB) e Guilherme Boulos (PSOL), enquanto o nome real do PT não vem. À direita, concorrem o deputado Jair Bolsonaro (PSL), com ares de azarão e pronto a colher dissidentes do MDB e DEM, o banqueiro João Amoêdo (Novo), esquecendo-se de que o eleitor nem entende, mas não gosta do liberalismo puro, e o empresário Flávio Rocha, de que partido mesmo?

Quanto a Fernando Collor: ele voltou como senador por Alagoas e jogou a segunda chance fora ao se unir ao então presidente Lula, seu inimigo em 1989, para participar do butim da Petrobrás. Com uma Lamborghini, um Porsche e uma Ferrari enfeitando a Casa da Dinda, é acusado de se beneficiar de R$ 22 milhões (sem correção) no “petrolão”.

Collor se apresenta como “progressista e liberal”, mas há adjetivos melhores para defini-lo e sua candidatura só pode ser piada, mas ilustra bem uma eleição que está uma verdadeira bagunça. Aliás, nos Estados também.

Se a eleição presidencial tem tantos candidatos, é porque nenhum convence até agora

Uma Constituição peculiar - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S. Paulo - 11/03

O ministro Luís Roberto Barroso abre tenebroso precedente que pode tornar refém do ativismo judicial aquele que vier a ser eleito presidente pelo povo.

Ao determinar a quebra do sigilo bancário do presidente Michel Temer, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), dá a entender que sobre sua mesa repousa uma Constituição muito peculiar, adaptável aos seus desígnios moralizadores e políticos. Quando um comando constitucional não se coaduna com as convicções particulares do ministro, são estas que vencem a luta por sua consciência.

O absurdo da decisão tomada pelo ministro Barroso, que atendeu ao pedido do delegado Cleyber Malta, responsável pelo inquérito que apura, no âmbito da Polícia Federal, supostas irregularidades na edição do chamado Decreto dos Portos, assinado pelo presidente Temer em maio do ano passado, é capaz de surpreender até o cidadão mais acostumado com as recentes extravagâncias do STF. E elas não têm sido poucas.

Está-se diante da primeira autorização para quebra do sigilo bancário de um presidente da República no exercício de seu mandato. A medida compreende o período entre 2013 e 2017. O curioso no pedido da autoridade policial é que nem mesmo a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, incluiu Michel Temer no pedido de investigação por supostas irregularidades na concessão de áreas do Porto de Santos, que teria favorecido a empresa Rodrimar.

Em dezembro de 2017, a PGR pediu que fossem investigados os sócios da Rodrimar, Antônio Celso Grecco e Ricardo Conrado Mesquita, o ex-deputado Rodrigo Rocha Loures (MDB-PR), o advogado José Yunes e o coronel João Batista Lima Filho. Todos foram citados por Ricardo Saud, executivo da JBS, que, em depoimentos prestados ao Ministério Público Federal durante as tratativas para a assinatura de um acordo de colaboração premiada, mencionou o suposto esquema criminoso para favorecer a Rodrimar com a edição do Decreto dos Portos em troca do pagamento de propina para os investigados.

Na semana passada, o delegado Cleyber Malta enviou um pedido de prorrogação do inquérito por mais 60 dias ao ministro Barroso. Na solicitação, alegou ser “imprescindível” a quebra do sigilo bancário do presidente Temer, medida sem a qual “não seria possível alcançar a finalidade da investigação”.

Ora, a ser verdadeira a justificativa dada pelo delegado para requerer medida tão grave, aceita de pronto por um ministro do STF, a própria consistência do inquérito que preside fica sob uma forte névoa de suspeição, na medida em que para chegar a termo depende da violação da Constituição. É disso que se trata. O parágrafo 4.º do artigo 86 da Lei Maior está escrito em português cristalino.

A quebra do sigilo bancário do presidente Michel Temer só poderia ser autorizada se contra ele houvesse indícios de participação no suposto esquema envolvendo a edição do Decreto dos Portos. Tanto não há que a PGR não requereu a medida.

Em nota oficial, o presidente Temer disse não ter “nenhuma preocupação com as informações constantes em suas contas bancárias”. O presidente também afirmou que “solicitará ao Banco Central os extratos referentes ao período mencionado”, dando à imprensa “total acesso” a eles. Assim agindo, o presidente demonstra respeito à Polícia Federal, ao STF, à imprensa e ao público, mesmo no curso de investigação contra ele conduzida ao arrepio da lei.

Não se está a dizer que o presidente da República, como qualquer cidadão, não possa ser investigado por supostos crimes que tenha cometido. Entretanto, há duas substanciais razões que tornam a decisão do ministro Barroso frágil quando contraposta aos ditames constitucionais: na investigação em curso, não há qualquer indício de ilicitude praticada pelo presidente Michel Temer a sustentar a quebra de seu sigilo bancário; e ainda que houvesse, o período autorizado para escrutínio de suas contas precede em três anos sua posse no cargo.

Ao adaptar a Constituição às suas convicções particulares, o ministro Luís Roberto Barroso abre um tenebroso precedente que pode tornar refém do ativismo judicial aquele que vier a ser eleito presidente pelo povo brasileiro na eleição deste ano.


Falta avaliação de gastos e de políticas - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 11/03
Mesmo gastando bem mais do que arrecada, o Estado brasileiro não se preocupa em zelar pela qualidade das despesas e tampouco analisa a eficácia de suas políticas

O debate é recorrente — e assim precisa ser — sobre a qualidade das elevadas despesas públicas e a eficácia de programas, sempre lançados em meio a fanfarras, mas que não funcionam ou funcionam mal, e nada é feito para consertar as falhas. Falta ao Estado brasileiro a cultura da avaliação, e sua ausência é causa de um desperdício incomensurável na movimentação do dinheiro do contribuinte. Mesmo sem considerar a corrupção, que, como hoje se vê de forma mais clara, não é pequena.

Estudo divulgado há pouco pelo Banco Mundial (Bird) confirma que, na tentativa de estimular o setor produtivo, o país não só gasta muito como “é ineficiente na maioria das atividades que realiza”.

Há programas notoriamente falhos, como, nos tempos de Lula II e Dilma, quando houve grande ativismo estatista, em que o BNDES serviu de instrumento de distribuição descuidada de bilhões em créditos subsidiados a empresas e setores escolhidos pelo governo — também com o objetivo espúrio de conseguir apoio financeiro em campanhas eleitorais —, e a taxa de investimento em relação ao PIB praticamente não se moveu. Manteve-se abaixo dos 20% do PIB, insuficientes para levar a economia a crescer de forma sustentada.

Não consta que tenha havido a preocupação de se avaliar por que não deu certo. E o Tesouro despejou R$ 500 bilhões, meio trilhão no banco, para isso. Se houve algum diagnóstico do equívoco, não foi divulgado, mesmo sendo o BNDES uma instituição pública.

Segundo o Bird, em 2016, foram usados 4,5% do PIB, muito dinheiro, em isenções fiscais, subsídios creditícios — como os do BNDES — e transferência a setores. Com resultados insatisfatórios. A frustração da transferência de montanhas de dinheiro para empresas é denunciada pelo próprio comportamento da economia. E quando houve o crescimento explosivo de mais de 7%, em 2010, sabia-se que a economia estava anabolizada. A expansão era de fôlego curto, com fins eleitoreiros, e produziria sérios efeitos colaterais mais à frente (inflação, recessão), como aconteceu.

A miríade de desonerações feitas depois por Dilma também teria efeitos frustrantes, e mesmo assim não houve a preocupação em avaliar por que não deu certo. A ausência de cuidados com o acompanhamento e avaliação dos gastos faz com que, por exemplo, ao se auditarem benefícios concedidos pelo INSS, caso do auxílio-doença, encontre-se uma taxa de fraudes muito acima de 50%. Como o INSS é parte do orçamento da Previdência (falta incluir o dos servidores), sendo o mais elevado item das despesas primárias da União, qualquer zelo nesta gestão faz economias substanciais. Mas não existe esta preocupação.

Ao menos a séria crise fiscal leva a que o próximo governo se preocupe com a qualidade dos gastos. Num país que tem a maior carga tributária entre as nações ditas emergentes (35% do PIB) e gasta mais de 40%, é evidente que inexiste qualquer sistema eficaz de avaliação das despesas. É tema a ser discutido na campanha.