terça-feira, fevereiro 13, 2018

O nosso samba, minha gente, é isso aí - CARLOS ANDREAZZA

O GLOBO - 13/02

Dinheiro público no carnaval das escolas de samba é dinheiro público na mão do jogo do bicho, das milícias e do tráfico de drogas e armas


Marcelo Crivella trancou o caixa da prefeitura à histórica subvenção de escolas de samba. O discurso foi de austeridade: em tempos de crise, as prioridades seriam outras. Colheu aplausos dos (loucos) que não gostam de carnaval e dos que, não sem razão, alegam que dinheiro público para cultura deveria ter destinação restrita, certamente vedada a produções — o desfile das escolas de samba entre elas — capazes de se financiar na iniciativa privada. E apanhou dos que defendem a indústria do carnaval e contabilizam os dividendos turísticos do evento para a cidade, dos que pensam que cabe ao Estado bancar a atividade cultural e dos que, com razão, identificaram, no fundamento da decisão do prefeito, uma imposição de natureza político-religiosa: o desprezo tirânico de lideranças evangélicas por manifestações derivadas de religiões de matriz africana.

Esse é o quadro do que se estabeleceu como debate público a respeito da relação econômica entre poder público e escolas de samba; mas é, sobretudo, um dos casos em que elemento presente nenhum na tela será mais importante do que aquele que falta e cuja ausência me espanta, o argumento essencial de por que nem sequer um centavo de dinheiro público deveria ser posto em escolas de samba: o fato de que, controladas por esquemas criminosos, monumentais tanques para lavagem de dinheiro imundo, entidades cujas contas não suportariam dez minutos de auditoria, é inaceitável que o Estado contribua com isso enquanto assim for. Ponto final. Esta é a chave arrumadora do debate — mas que, por covardia ou comodidade, está fora do debate: dinheiro público no carnaval das escolas de samba é dinheiro público na mão do jogo do bicho, das milícias e do tráfico de drogas e armas.

A situação é de anomia e em muito extrapola o financiamento estrito dos desfiles. Por exemplo: a prefeitura construiu a Cidade do Samba, conjunto de galpões em que alegorias e fantasias são preparadas, e a entregou — como se propriedade privada — à Liga Independente das Escolas de Samba. Da mesma forma ocorre na organização estrutural do carnaval, monopólio da Liesa e território inacessível ao poder público, desde a comercialização de ingressos até a escolha de jurados e a apuração dos resultados. Duas perguntas — as mais urgentes tanto quanto nunca feitas: quando o Estado retomará os aparelhos públicos usados pelas agremiações para deflagrar o processo licitatório por meio do qual a gestão do espetáculo na Sapucaí passará à iniciativa privada? Quando o julgamento dos desfiles terá a óbvia independência decorrente de não ser dirigido pela elite da parte interessada?

Comandadas pelo complexo de atividades criminosas que fez o Rio de Janeiro refém e sustentadas pela sucessão de governantes que nos entregaram ao sequestrador, escolas de samba são peculiares instituições do Estado. Todas. Ou quase. E as que não são sonham ser. Nem sempre foi assim. Mas assim é há muito. São, acima de tudo, a perfeita representação da sociedade, tipicamente brasileira, entre Estado e crime organizado; centros de criação cultural e de vida comunitária (algumas poucas, cada vez menos) tanto quanto núcleos (quase todas) para exercício autoritário de poder; agremiações que (com modestas exceções) não sobreviveriam sem os braços trançados de bandidos e governantes; e que se acostumaram a exigir dinheiro do Estado tanto quanto se recusam a funcionar sob a lei do Estado, com o aval do Estado.

Aí está, descrita, a engenharia corrompida da farra. Um universo de podridão inescapável — isso se formos capazes de nos despir da paixão, no caso daqueles que, como eu, amam, cada vez mais à distância, uma escola de samba, o glorioso Império Serrano. Não posso, a propósito, deixar de registrar o constrangimento em ver jornalistas, que passam o ano todo se capitalizando com o discurso contra a desigualdade e em defesa da alforria, batendo cabeça para papai bicheiro quando se acerca o carnaval. A cobertura jornalística das escolas de samba há muito está, com respeitáveis exceções, contaminada por relações promíscuas.

Chego, pois, a meu ponto — desdobrado dessa cegueira voluntária. Se as escolas de samba, quase todas, não existiriam sem o casamento entre crime e Estado, tornam-se vergonhosos — farsantes mesmo — alguns dos desfiles apresentados em 2018, aqueles cujos enredos tiveram natureza crítica, carregados de protestos sociais e políticos, e exaltados como vigorosos acontecimentos no campo da liberdade. Depois de curiosa mais de década em que essa valentia seletiva se amorteceu (escolas de samba são de esquerda pelo mesmo mecanismo de adesão-pressão sob o qual artistas têm de ser?), houve agremiação — uma dessas com dono não exatamente democrata — apresentando-se contra a escravidão moderna, e até mesmo um vampirão houve, referência a Michel Temer, chefe de um governo a cujo Ministério da Cultura, porém, as escolas correram em busca de dinheiro.

Gosto, especialmente, do caso da grande Beija-Flor, propriedade de um dos barões do bicho, cujo crescimento bebeu gostoso na fonte — sede expressa não apenas em desfiles de exaltação aos generais — do regime militar, e que não faz muito desfilou em homenagem a uma ditadura africana, mas que, neste ano, resolveu, com um lindíssimo samba, protestar contra a intolerância, contra o opressor modelo político e social vigente no Brasil. Não foi uma autocrítica. Chora, cavaco.

Carlos Andreazza é editor de livros

A bomba venezuelana - MÍRIAM LEITÃO

O GLOBO - 13/02

A viagem de ontem do presidente Michel Temer a Boa Vista marcou o início da federalização do problema que antes estava entregue apenas à Roraima. A decisão de criar uma força-tarefa e baixar uma MP para enfrentar a crise veio da constatação de que a questão dos venezuelanos assumiu dimensão muito grande e que é preciso uma atuação conjunta de vários órgãos federais, sob o comando das Forças Armadas.

A força-tarefa vai oferecer serviço médico, alimentação e triagem na fronteira com a entrega de documentos provisórios. O governo hesitou nos últimos meses, entre agir ou não. O temor é que quanto mais efetiva for a ajuda, maior o incentivo a vir para o Brasil. Só que o peso da crise estava todo sobre Roraima. Esta é a primeira crise migratória que o Brasil enfrenta.

A economia venezuelana apresenta números de país em guerra. De 2012, ainda no governo de Hugo Chávez, até o final de 2018, o PIB per capita terá encolhido 50%, pelos cálculos da consultoria Econométrica. Este será o quinto ano de queda. Isso jamais aconteceu no país, mesmo durante os dois conflitos do século XIX, a guerra da independência e o tumulto civil conhecido como a Guerra Federal, conta o economista venezuelano Ángel García Banchs, sócio da Econométrica, que há seis meses deixou o país para ir morar na Espanha. Hiperinflação, que pode ter sido de 3.000% no ano passado, desemprego em massa e desabastecimento crônico estão produzindo a maior onda de refugiados venezuelanos da história. A Colômbia, primeiro destino, está restringindo a entrada. O Brasil vem recebendo cada vez mais.

Uma pesquisa feita em Boa Vista, no final do ano passado pelo Instituto Unama, perguntou a 626 pessoas se o entrevistado “considera o povo venezuelano amigo do brasileiro", 61% disseram “não", chegando a 70% na faixa de renda acima de cinco salários mínimos. A maioria admite que nem conversa com os refugiados e responsabiliza os venezuelanos pelos problemas de Boa Vista. Eles dizem que o estado brasileiro não deveria ajudá-los financeiramente e 66% pensam que não deveria ser permitida a entrada de novas pessoas do país vizinho.

O economista venezuelano explica que a economia não apenas está encolhendo; ela cai em queda livre.

— Em 2017, o PIB encolheu 13%, pelas previsões, e vai cair algo como 15% neste ano. É um dado de guerra, e é assim que a situação vai terminar, com a mais primitiva de todas as soluções. A saída para o problema não será interna — diz García.

O governo de Maduro antecipou as eleições presidenciais para 22 de abril. A oposição não sabe se concorrerá. O calendário eleitoral pode estar por trás do movimento recente do governo de reacender a discussão territorial com a vizinha Guiana. A questão vem desde o século XIX, quando a área foi adquirida pela Grã-Bretanha. Recentemente, a Exxon encontrou petróleo no litoral da Guiana. Como este é o único assunto que une governo e oposição, o Brasil teme o conflito na nossa fronteira.

A Econométrica apura um índice de escassez no país. A taxa estava em 55% em janeiro. Faltam, principalmente, alimentos. No caso de azeites e óleos, o desabastecimento chega a 89%; nos peixes, a taxa está em 87%. A falta de pães, cereais, leite, queijo e ovos é de 80%. A Venezuela importa praticamente tudo, e está faltando dólares. As reservas internacionais estão em queda. O país atrasa pagamentos de dívidas desde o ano passado e tem hoje menos de US$ 10 bi em caixa. A produção de petróleo, que responde por mais de 90% dos ingressos internacionais do país, caiu 20% no ano passado, uma redução de 300 mil barris. A estatal PDVSA atrasou pagamentos e fornecedores deixaram de prestar serviços ou fecharam as portas. O país, assim, passou a conviver com o êxodo de seus cidadãos.

— Primeiro, foram os profissionais mais talentosos e bem preparados. Agora, estão indo pessoas de todas as idades e formações. Algo como 6 milhões de venezuelanos devem deixar o país neste ano, gente que foge da fome e busca abrigo nos países da região, especialmente na Colômbia. O problema não é só da Venezuela, é tão grande que se tornou um tema internacional — diz García. A Venezuela tem 31 milhões de habitantes.

Essa é a bomba que está armada na fronteira com o Brasil.

(COM MARCELO LOUREIRO)

Foi o elitismo de Winston Churchill que derrotou Hitler, não o seu populismo - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 13/02

Filme é simpático para o mundo de 2018, mas trai as "horas sombrias" de 1940


Concordo com Elio Gaspari, em coluna para esta Folha: o filme "O Destino de uma Nação" demoniza a figura de Lord Halifax. Injusto. Em 1940, Halifax estava disposto a negociar a paz com Hitler?

Era uma opção perfeitamente racional: com a França de joelhos e os EUA ainda longe de entrar na dança, sem falar do pacto germano-soviético que mantinha a União Soviética na jaula (pormenor que os camaradas sempre esquecem), só um louco não contemplaria essa opção.

O próprio Churchill, antes da decisão final, ponderou todos os cenários. Mas recusou-os. Por quê?

Sim, porque entendeu que a rendição seria o primeiro passo para Hitler rasgar qualquer acordo (como rasgou com Stálin) e transformar a Inglaterra num "estado escravo".

Mas o filme sugere uma outra razão e a cena do metrô é exemplar: ali vemos Churchill viajando com o povo e percebendo que os seus compatriotas queriam continuar a lutar. Até o fim.

Essa cena não é apenas uma "licença cinematográfica", como escreve Elio Gaspari. É uma mentira histórica e intelectual em vários sentidos da expressão.

Primeiro, porque não aconteceu. Segundo, porque não podia acontecer. E, terceiro, porque contamina a lucidez e a resiliência de Churchill com um toque de populismo assaz nefasto.

Eu sei, eu sei: nas "ultrademocracias" em que vivemos, a palavra "elitismo" ganhou má fama. Como defender a velha ideia platônica de que a política deve ser exercida pelos melhores, mesmo que os melhores não sejam imediatamente reconhecidos pelas massas?

Acontece que a decisão de Churchill em recusar qualquer compromisso com Hitler foi uma decisão "elitista", sim, por dois motivos.

Para começar, porque foi uma decisão solitária, ou quase, à imagem do seu percurso na década de 1930. Nesses "wilderness years" (anos desérticos, desoladores), os seus discursos antinazistas recebiam as gargalhadas dos restantes membros do Parlamento.

Os "apaziguadores", como Lord Halifax ou Neville Chamberlain, não eram a exceção; eram a regra. Como explica John Lukacs nesse livrinho divino que Elio Gaspari recomenda ("Cinco Dias em Londres"), os argumentos favoráveis ao "apaziguamento" batiam sempre nas mesmas teclas: a humilhação da Alemanha com o Tratado de Versalhes; as memórias dolorosas da Primeira Guerra Mundial (no fundo, quem desejava uma Segunda?); e, claro, o antibolchevismo de Hitler (Moscou assustava mais do que Berlim).

Para Churchill, nenhum desses argumentos convencia: o nazismo era uma mistura de ressentimento e desumanidade contrária à tradição liberal inglesa e a uma certa ideia de "civilização ocidental", com as suas raízes intelectuais em Jerusalém, Atenas e Roma. E que tradição era essa?

O elitismo de Churchill também a explica: a tradição que ele aprendeu, não no metrô com os "homens comuns", mas nos livros da sua formação, sobretudo durante os anos como soldado em finais do século 19. A lista é extensa: Aristóteles, Cícero, Adam Smith, Macaulay, Edward Gibbon.

Bem sei que a lista só tem "dead white males". Mas foram esses homens brancos e mortos que ensinaram ao jovem Winston a importância do império da lei sobre os caprichos dos homens, a essencial dignidade da vida humana e um amor pela liberdade que os nazistas ameaçavam com sua "tirania monstruosa".

Foi com esse patrimônio intelectual que Churchill enfrentou o Gabinete de Guerra e o convenceu a lutar. Mas a verdadeira tarefa hercúlea, ao contrário do que o filme mostra, foi levar os ingleses a acreditar no "espírito heroico" de uma nação e na missão civilizacional que ela enfrentava. Não foi o povo que convenceu Churchill de nada. O desafio foi precisamente o inverso.

Em ensaio magistral, intitulado "Winston Churchill em 1940", o filósofo Isaiah Berlin resumiu o gênio do premiê britânico: a sua "imaginação histórica".

Traduzindo: quando olhamos para os fatos, o senso comum talvez estivesse do lado de Halifax. Mas Churchill tinha algo superior: uma capacidade quase poética para idealizar uma realidade que ainda não existia. Uma realidade feita de coragem, sacrifício e vitória que levou os ingleses a acreditar.

Foi o elitismo de Churchill que derrotou Hitler, não o seu populismo. O filme de Joe Wright é simpático para o mundo igualitário de 2018, mas é uma traição às "horas sombrias" de 1940.


Atualidade de Oswaldo Aranha na política externa - RUBENS BARBOSA

ESTADÃO - 13/02

Ele nos inspira a ter voz forte para definir lados e a optar por posições claras no cenário global



Em janeiro de 1943, em seu retorno da Conferência de Casablanca, o presidente Franklin Roosevelt fez escala em Natal (RN) para reafirmar a Getúlio Vargas a importância das bases americanas no Nordeste para o esforço de guerra no norte da África. O chanceler Oswaldo Aranha, por decisão mesquinha de Vargas, excluído do encontro, escreveu uma carta-memorando (Oswaldo Aranha: um estadista brasileiro, funag.gov.br), em 25 de janeiro de 1943, apresentando ao presidente uma série de ações para a conversa com Roosevelt. Aranha tinha sido embaixador em Washington e o artífice dessa aproximação. Visto em perspectiva histórica e levando em conta as prioridades da época, esse texto pode ser considerados um dos mais importantes documentos da história diplomática do Brasil.

A carta contém os principais elementos do pensamento estratégico de Oswaldo Aranha num momento de grande instabilidade política no contexto de uma guerra que se tornava verdadeiramente global e às vésperas de o Brasil tomar a decisão de entrar na guerra contra Hitler. Dentre os muito aspectos relevantes do texto, destaco os que continuam atuais, pela falta de uma definição clara sobre os rumos da política externa brasileira: o que queremos nas relações exteriores do Brasil, de modo global; o grau adequado de capacitação econômica para participar da política internacional; uma visão clara das relações estratégicas que se deve ter em função dessas realidades; uma clara estratégia de inserção internacional. Aranha define o que queremos de nossas relações com os EUA, com a Europa, com a África e com nossos vizinhos (hoje teria incluído a China); indica as principais prioridades naquele momento, a sua visão do futuro do país e onde reside o interesse nacional na área externa.

Temperadas pelo realismo (“é real que somos, ainda, um país fraco econômica e militarmente, sem autoridade bastante para decidir no seio das grandes nações”), as recomendações de Aranha tinham uma visão de longo prazo sobre o País (“com população e capital, que virão pelo crescimento natural do Brasil ou afluirão ao fim da guerra, mais dia ou menos dia, nosso país será inevitavelmente uma das grandes potências econômicas e políticas do mundo”).

As posições pró-americanas de Oswaldo Aranha devem ser entendidas no contexto da 2.ª Guerra Mundial, quando Washington finalmente liderou o combate às potências nazi-fascistas, que até pouco antes tinham o apoio de vários ministros do governo Vargas. Aranha foi um dos responsáveis por mudar o rumo da História ao propugnar, como ministro de Relações Exteriores, pela declaração de guerra contra as potências agressoras e negociar com os EUA compensações ao Brasil.

“Nada explicaria agora o nosso retraimento uma vez que, unidos aos EUA e com eles solidários, já teríamos, no resguardo de nossos interesses e na preparação de uma função futura, uma missão bem definida nos fatos atuais, criados pelos problemas da guerra e da paz”, diz Aranha. Essa posição poderia justificar uma atitude favorável dos EUA ao Brasil no tocante a ser membro permanente do Conselho de Segurança e à entrada na OCDE, nos dias de hoje.

O que esperar das relações com os EUA? Aranha aconselha Vargas a “combinar tudo o que for necessário aqui ou na Europa a tornar mais eficiente essa colaboração nossa e que ainda mais realce a parte decisiva e capital de nossa ação diplomática e ajuda política aos EUA. A parte econômica deve ser estudada, sobremodo a parte que temos a dar e a que precisamos receber. Devemos ceder na guerra para ganhar na paz. O problema econômico da paz cifra-se à adoção dos ideais liberais de comércio para as transações mundiais, da intensificação da cooperação norte-americana para o programa Vargas de industrialização do país e do livre trânsito e fácil acesso de imigrantes e capitais para e no Brasil”.

“Quanto à cooperação militar”, continua Aranha, “seria útil que os governos mantivessem sempre íntimo contato e contínua troca de ideias a fim de adotarem qualquer medida ou decisão ditada pelos acontecimentos ou pelos interesses recíprocos. Esse assunto é propriamente militar e dele só me cabe cogitar como tenho feito, para o fim de definir melhor a posição do Brasil.”

“Tudo quanto se disse até aqui de pouco ou quase nada poderá ser útil se não formos bem informados sobre Rússia, Argentina, Portugal, Américas. Precisamos conhecer os objetivos dos americanos” para defender nossos interesses, teria hoje anotado Aranha. “Devemos reclamar que contaremos com o apoio americano em favor dos pontos de vista que viermos a adotar”, sugere, sinalizando que não existem apoios gratuitos.

Nada mais realista e pragmático do que o conselho de que “o Brasil desta guerra deve procurar tirar as seguintes consequências: uma melhor posição na política mundial; uma melhor posição na política com os países vizinhos pela consolidação de sua preeminência na America do Sul; uma mais confiante e íntima solidariedade com os EUA; criação de um poder marítimo; criação de um poder aéreo; criação de um parque industrial para as indústrias pesadas; criação de uma indústria bélica; criação das indústrias agrícolas, extrativas e de minérios leves complementares dos norte-americanos e necessários à reconstrução mundial; exploração dos combustíveis essenciais”.

Passados 75 anos dessas recomendações a Vargas para extrair benefícios em razão do nosso apoio no esforço bélico na África e na Europa, o respaldo dos EUA a muitas das áreas mencionadas acima continua sendo importante. Reler a carta de Oswaldo Aranha hoje nos inspira a ter uma voz forte para definir lados e a optar por posições claras no cenário internacional, onde os países não tem amigos, mas interesses.

* RUBENS BARBOSA É PRESIDENTE DO CONSELHO DERELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE)

A história na câmara de gás - HELIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 13/02

Norma polonesa é estrategicamente tola e democraticamente inaceitável

Parlamentos são pródigos em aprovar leis inúteis e até contraproducentes. E, se há um campo em que essa tendência se torna uma certeza, é a história. Quando Legislativos se metem a determinar como fatos históricos devem ser interpretados, só fazem besteira.

O exemplo mais recente é o da norma polonesa que pune com multa e prisão por até três anos "quem declare, publicamente e contrariamente aos fatos, que a Nação Polonesa ou a República da Polônia é responsável ou corresponsável pelos crimes nazistas cometidos pelo Terceiro Reich".

Para começar, a norma é epistemologicamente impossível. Nenhuma lei é capaz de dar conta da complexidade da história. A relação dos poloneses com os judeus, cheia de nuances e reviravoltas, é matéria para vários livros. A Polônia foi, entre os séculos 10 e 18, um dos países mais tolerantes da Europa (foi por isso que atraiu tantos judeus). Depois, foi um dos que mais promoveram "pogroms".

Durante o nazismo, houve tanto poloneses que arriscaram a vida protegendo judeus como os que os entregaram aos algozes germânicos, às vezes participando da matança. Foram particularmente chocantes os assassinatos de judeus que tentaram voltar para casa depois da guerra, mas foram mortos pelos antigos vizinhos que se apossaram de seus bens.

Em segundo lugar, a norma é estrategicamente tola. Se a meta dos legisladores poloneses era evitar lembranças incômodas, a lei chama a atenção para elas.

Por fim, a norma é democraticamente inaceitável. Ela tenta reescrever a história e o faz tolhendo a liberdade de expressão.

A regra é tão inadequada que só faz sentido se a pensarmos como um tributo do governo ao crescente nacionalismo dos poloneses. E ideologias de cunho nacionalista, convém lembrar, é o que está na origem dos crimes que o Parlamento polonês quer agora mitigar.

Lava Jato deveria dar o exemplo e devolver auxílio-moradia - RANIER BRAGON

FOLHA DE SP - 13/02

Respostas escapistas se chocam com discurso de passar o Brasil a limpo 


Por mais que equívocos possam ser apontados, a Lava Jato é a mais simbólica cruzada judicial anticorrupção da história do Brasil.

Justamente por isso soa estarrecedor que alguns de seus condutores se escondam atrás de respostas escapistas para justificar o injustificável.

Os juízes Sergio Moro, Marcelo Bretas, Leandro Paulsen e Victor Laus e o procurador Deltan Dallagnol, todos da linha de frente da Lava Jato, recebem R$ 4.378 de auxílio-moradia mesmo tendo casa própria.

Eles já têm um dos maiores contracheques da República, algo em torno de R$ 30 mil ao mês. Além do auxílio-moradia, são tantos os penduricalhos que só com muito esforço um magistrado ou procurador em igual nível conseguirá receber abaixo do teto constitucional de R$ 33,7 mil.

Vá ao site do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e clique em "remuneração de magistrados". Moro, por exemplo, teve em dezembro salário bruto de R$ 41 mil, engordado por auxílio-moradia (R$ 4.378), auxílio-alimentação (R$ 884), gratificação por exercício cumulativo (R$ 4.181) e "gratificação por encargo, curso/concurso" (R$ 2.656).

Laus, um dos desembargadores que majoraram a pena de Lula em um terço, teve em dezembro salário de R$ 106 mil, encorpado principalmente por R$ 59,6 mil da tal "gratificação por encargo, curso/concurso".

A resposta padrão de todos é que, com base em liminar de Luiz Fux, o CNJ não veda o auxílio a quem tem casa. Moro foi além e disse que, mesmo discutível, o benefício compensa a falta de reajuste salarial. Se os sabidamente mal remunerados policiais ou professores, por exemplo, tentassem uma pedalada dessas, seriam merecidamente recriminados.

O que dizer de juízes que recebem os mais altos salários da República?

Se usarem o mesmo rigor destinado a seus alvos, os líderes da Lava Jato devem não só abrir mão do auxílio, mas devolver aos cofres públicos tudo que receberam desde 2014, acrescido de um necessário mea-culpa.


Viva Marighella! Viva a morte! - MARCO ANTONIO VILLA

O GLOBO - 13/02

Em seu manual, ele faz questão de explicar didaticamente como deve ser cometido um assassinato


Desde os anos 1980 consolidou-se como verdade absoluta que a luta armada conduziu o Brasil à redemocratização. Isto é reproduzido nos livros didáticos e repetido ad nauseam no debate político. Questionar esta versão falaciosa da História é tarefa fundamental no processo de construção da democracia no nosso país. E, em momento algum, deve representar qualquer tipo de elogio à bárbara repressão efetuada pelo regime militar, especialmente nos anos 1968-1976. Ou seja, o terrorista e o torturador são faces da mesma moeda. Com o agravante, no caso do torturador, de que sua ação foi realizada sob cobertura estatal.

Num país sem tradição democrática, os cultores do extremismo ganharam espaço — inclusive na reconstrução do passado. Hoje, torturadores são elogiados em pleno Congresso Nacional, como vimos na sessão da Câmara dos Deputados que autorizou o encaminhamento para o Senado do pedido de impeachment de Dilma Rousseff; assim como, no dia a dia, terroristas são homenageados nas denominações dos logradouros e edifícios públicos.

Carlos Marighella é um caso exemplar. Militante comunista desde a juventude, stalinista, acabou rompendo com o Partidão após os acontecimentos de 1964. Fundou a Ação Libertadora Nacional (ALN), um grupo terrorista, fortemente influenciado pelas teorias revolucionárias de Fidel Castro e, especialmente, Che Guevara. Foi a Cuba e estabeleceu uma aliança com a ditadura castrista. A ALN se notabilizou pelos impiedosos ataques terroristas e pelo assassinato até de militantes que desejavam abandonar a organização, como no caso do jovem Márcio Leite de Toledo.

Mesmo assim, na canhestra metamorfose tupiniquim, virou um lutador da liberdade. Agora também no cinema. O ator Wagner Moura está produzindo um filme — claro que com o apoio da Lei Rouanet — para glorificar, ainda mais, Marighella, apesar de a Constituição definir no artigo 5º, inciso XLIII, o terrorismo como crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. Ou seja, o Estado brasileiro, através do Ministério da Cultura, está rasgando a Constituição ao conceder seu apoio financeiro a uma película que afronta um princípio tão caro da Carta Magna.

Carlos Marighella é autor do Manual do Guerrilheiro Urbano. O documento não pode ser considerado uma ode ao humanismo, muito pelo contrário. Logo no início, afirma que o terrorista “somente poderá sobreviver se está disposto a matar os policiais.” E que deve se dedicar “ao extermínio físico dos agentes da repressão.” O herói de Wagner Moura exemplifica várias vezes como matar policiais: “a grande desvantagem do policial montado é que se apresenta ao guerrilheiro urbano como dois alvos excelentes: o cavalo e o cavaleiro.” E continua, páginas depois: “as greves e as breves interrupções de trânsito podem oferecer uma excelente oportunidade para a preparação de emboscadas ou armadilhas cujo fim é o de destruição física da cruel e sanguinária polícia.” Marighella faz questão de explicar didaticamente como deve ser cometido um assassinato: “a execução pode ser realizada por um franco-atirador, paciente, sozinho e desconhecido, e operando absolutamente secreto e a sangue-frio.”

O fundador da ALN não tem pejo em se proclamar um terrorista: “o terrorismo é uma ação usualmente envolvendo a colocação de uma bomba ou uma bomba de fogo de grande poder destrutivo, o qual é capaz de influir perdas irreparáveis ao inimigo.” O democrata Marighella, ídolo de Wagner Moura, quer ficar distante dos defensores da “luta sem violência.” Diz ele — delirando — que não passam de manobras pedir “eleições, ‘redemocratização’ (as aspas são do terrorista), reformas constitucionais e outras bobagens desenhadas para confundir as massas e fazê-las parar a rebelião revolucionária nas cidades e nas áreas rurais do país.” E, raivoso, conclui: “Atacando de coração essa falsa eleição e a chamada ‘solução política’ (aspas dele) tão apeladora aos oportunistas, o guerrilheiro urbano tem que se fazer mais agressivo e violento, girando em torno da sabotagem, do terrorismo, das expropriações, dos assaltos, dos sequestros, das execuções.”

O terrorista é infatigável na defesa da violação dos direitos humanos. Indica como tarefa fundamental os sequestros. Diz Marighella: “sequestrar é capturar e assegurar em um lugar secreto um agente policial, um espião norte-americano, uma personalidade política ou um notório e perigoso inimigo do movimento revolucionário.” Em todo manual não há, em momento algum, qualquer valorização de algum ideário democrático. Nada disso. A morte — e não o voto — é a companheira fiel do terrorista. Cabe a ele, matar, matar, matar.

O filme poderá captar R$ 10 milhões (!!) do Estado burguês, não é, Wagner Moura? Afinal, o Erário serve para isso. Até para subsidiar uma película reacionária, antidemocrática e stalinista. Que falsifica a história sem nenhum pudor. Chega até a transformar um pardo em um negro, pois, de acordo com as notícias, o terrorista será interpretado pelo cantor Seu Jorge. Inacreditável.

A resistência democrática não fez parte do programa de nenhum grupo terrorista. Todos, sem exceção, defendiam religiosamente que o Brasil deveria caminhar para uma ditadura do proletariado. A divergência é se o nosso país seria uma Cuba, União Soviética ou uma China. A triste ironia é que os perdedores acabaram vencendo no discurso histórico. Aqueles que desqualificavam a democracia e agiam tão ditatorialmente como o regime militar, que diziam combater, foram alçados a mártires da liberdade.

Marco Antonio Villa é historiador

Perigosa desmoralização - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 13/02

É grave esse desprezo de alguns membros do Judiciário pela realidade, manipulando-a a favor de seus interesses


O Poder Judiciário tem uma importantíssima função a cumprir no País. Ele é o garantidor da aplicação da lei, que é a expressão por excelência, numa democracia, da vontade da população. A missão institucional da Justiça é tão decisiva que, sem um Judiciário livre, não existe Estado Democrático de Direito. É, portanto, assunto de suma importância assegurar a autoridade da Justiça.

Ultimamente, no entanto, têm ocorrido manifestações de alguns membros da magistratura que desmoralizam a Justiça, como se o Poder Judiciário fosse reles corporação encastelada no Estado para proveito de seus integrantes. Caso recente, de especial simbolismo, ocorreu na abertura do Ano Judiciário do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP).

Depois da sessão solene, o presidente do tribunal paulista, Manoel de Queiroz Pereira Calças, concedeu uma entrevista coletiva. Ao ser questionado sobre o pagamento do auxílio-moradia aos juízes, o desembargador disse que “o auxílio-moradia é um salário indireto. Está previsto na Lei Orgânica da Magistratura”.

Não é bem isso o que está previsto no Direito. O art. 65 da Lei Complementar 35/1979 fala em “ajuda de custo, para moradia, nas localidades em que não houver residência oficial à disposição do magistrado”. E a Constituição, no seu art. 37, XI, estabelece um teto para a remuneração dos funcionários públicos. No caso do Poder Judiciário, o valor máximo, “incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza”, é o salário dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).

O presidente do TJ-SP não se limitou a fazer uma interpretação enviesada do auxílio-moradia. Ele considera um abuso a imprensa noticiar o pagamento do auxílio aos juízes. O desembargador Calças deseja a benesse sem tantas luzes sobre ela. Esse desconforto com a transparência não é o que se espera de um juiz.

Sem especial preocupação com a imagem do Judiciário, o desembargador Calças ainda ousou na dose do deboche. “Nenhum magistrado gostaria de estar recebendo auxílio-moradia. O que acontece é que eles foram sendo concedidos porque há uma defasagem salarial”, disse o presidente do TJ-SP, como se a situação salarial dos magistrados fosse capaz de suscitar comiseração.

É grave esse desprezo de alguns membros do Judiciário pela realidade, manipulando-a a favor de seus interesses. Os servidores da Justiça devem, em todas as suas manifestações, ser especialmente zelosos com os fatos e com o Direito.

Não tem sido rara, no entanto, essa licenciosidade com a lei e com a moralidade pública. Sob o pretexto de defender a autonomia da Justiça, magistrados deixam de lado o pudor e atuam como líderes sindicais. Os problemas decorrentes dessa atuação vão, como é lógico, muito além da reputação pessoal de determinados juízes. Ela afeta, aos olhos do público, a capacidade da Justiça de aplicar a lei com isenção e com autoridade.

Essas atitudes deixam a população mais vulnerável às agressões, às injustiças e aos atos de corrupção. Quem se alegra são os criminosos, que veem os membros do Poder Judiciário – justamente, o braço do Estado que devia lhes causar problemas, impondo as devidas sanções legais – enredados em interesses corporativos e alheios ao sentido de justiça.

Muitas vezes, o Judiciário tem usado o princípio da moralidade pública para justificar suas decisões. Às vezes, o argumento é posto até para extrapolar as competências institucionais da Justiça. Tudo seria permitido em função da causa maior, o combate à corrupção e à impunidade. No contexto de uma política absolutamente corrupta, diz a fábula que se tenta popularizar, os juízes seriam os únicos capazes de conferir um pouco de moralidade ao País.

Essa difundida versão da realidade não é falsa apenas por condenar precipitadamente – e, portanto, injustamente – todos os políticos. Ela pressupõe um patamar de moralidade na Justiça que os fatos têm insistido em contradizer. É também hora de resgatar o Judiciário.


O mal da estagflação - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR

 GAZETA DO POVO - PR - 13/02

A qualquer descuido na gestão da economia nacional, o monstro volta, até porque as três condições para que ela surja continuam a existir no Brasil

A economia (o sistema produtivo, de circulação, consumo, acumulação, rendas, gasto do governo e mercado de trocas baseado em moeda) é uma máquina dotada de alta complexidade cuja compreensão profunda requer conhecimento de um conjunto de ideias, teorias e processos funcionais somente passíveis de obtenção por meio de estudo longo e sistemático. Mesmo os diplomados em um curso universitário de Ciências Econômicas precisam de anos adicionais de observação e estudo para dominar a complexidade que a economia comporta. Por se tratar de um sistema que pode seguir direções diferentes conforme as intervenções feitas pelo governo, a política econômica permite discordância em relação às escolhas para promover o progresso.

Uma década após o fim da Primeira Guerra Mundial, o mundo ingresso na Grande Depressão dos anos 1930, cujos efeitos de queda do produto nacional, falências de empresas, débâcle das bolsas de valores, desemprego, fome e miséria perduraram até o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Diante da crise, o filósofo e economista inglês John Maynard Keynes iniciou uma revolução no pensamento econômico, opondo-se às ideias clássicas que defendiam mercados livres e baixa intervenção governamental. As ideias de Keynes foram adotadas com pouca contestação pelas principais potências econômicas do Ocidente até os anos 1970.

As teorias de Keynes fizeram a alegria dos políticos no mundo ocidental


Keynes defendia a execução de obras públicas e programas sociais pelo governo sem retirar dinheiro da população, a fim de iniciar um ciclo de geração de empregos, renda, consumo e recuperação das indústrias, para acabar com a depressão por meio de um efeito multiplicador. Sem dinheiro de tributos para cobrir seus gastos, o governo deveria socorrer-se de empréstimos bancários e emissão de moeda, alegando que, como havia deflação (queda dos preços), dívida pública e emissão monetária não fariam a inflação explodir. Keynes sabia que há limites para a dívida que o governo pode fazer (pois há limites para quanto dinheiro as pessoas e as empresas depositam nos bancos) e que, principalmente, há limites estreitos para pagar gastos estatais com emissão de moeda.

As teorias de Keynes fizeram a alegria dos políticos no mundo ocidental; eles gastaram demais, fizeram dívidas e incharam a máquina estatal por três décadas, muitos usando o argumento de que, ainda que isso leve à inflação, o gasto público faz a economia trabalhar, empregos são gerados e, na escolha entre desemprego ou inflação, é melhor ficar com a inflação e com os empregos. Os economistas liberais contrários às ideias de Keynes caíram no ostracismo, até que, em meados dos nos 1970 e pelas duas décadas seguintes, o mundo começou a ser castigado por um fenômeno novo e desconhecido: a estagflação, que é a combinação de estagnação (queda de produto e aumento do desemprego) com inflação (aumento contínuo de preços). A receita de Keynes havia parado de funcionar.

Os seguidores do grande economista tentaram livrar o prestígio do ídolo afirmando que ele alertou para que, vencida a batalha contra a depressão, os governos deveriam voltar ao equilíbrio orçamentário, austeridade fiscal e eliminação do déficit público pago com dívida e emissão de moeda. Na prática, o setor público nunca mais recuperou o equilíbrio financeiro, seguiu tendo déficits, tomando empréstimos e aumentando a tributação, e a estagflação surgiu como doença nova e assustadora. A duras penas o mundo entendeu que a praga da estagflação resulta da combinação de elevada dívida pública, elevada tributação e déficits fiscais gigantescos.

O Brasil acaba de passar por três anos de grave recessão e a estagflação insinuou sua presença: a inflação de 2016 foi de 10,16%, alta para um ano de recessão, e o desemprego chegou a 14% no ano seguinte. A estagflação é doença que deve ser prevenida quando a economia vai bem, e o Brasil precisa prestar atenção nisso, pois, a qualquer descuido na gestão da economia nacional, o monstro volta – basta ver como, apesar deste início de recuperação, o país não se livra do tripé formado por déficits fiscais fora de controle, tributação escorchante e dívida pública em alta.


Juros, mitos e fatos - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 13/02

Executivo dá contribuição bem-vinda ao admitir ganho dos bancos com taxas elevadas

Há mistificação de sobra nos ataques políticos aos juros brasileiros e às despesas do governo com o serviço de sua dívida.

A partir de uma leitura equivocada, quando não movida por má-fé, dos números do Orçamento, propaga-se o mito de que os encargos financeiros consomem quase a metade dos dispêndios federais —ou R$ 1,1 trilhão no ano passado, equivalentes a inacreditáveis 16% do Produto Interno Bruto.

De acordo com teorias conspiratórias à esquerda e à direita, as elevadas taxas decorreriam de conluio entre os políticos e os banqueiros. Nas fantasias de setores mais devotos do PT, o impeachment de Dilma Rousseff seria uma reação das elites às tentativas da ex-presidente de reduzir os montantes pagos aos credores do Tesouro Nacional.

É evidente que muitos fatos precisam ser deixados de lado para se acreditar em tais teses.

Para início de conversa, se o Banco Central realmente fixasse taxas acima do necessário apenas para favorecer o setor financeiro, a inflação estaria próxima de zero há duas décadas —afinal, o papel da política monetária é influenciar o ritmo de alta dos preços.

Ademais, os encargos da dívida pública atingiram picos de mais de uma década no ano de 2015, na gestão de Dilma Rousseff, e estão em queda sob Michel Temer (MDB).

Isso considerado, tampouco se pode negar que os juros brasileiros constituem uma anomalia com poucos paralelos no mundo, a desafiar os estudiosos do assunto. Provavelmente não chegam a meia dúzia os países cujos governos gastam mais de 5% do PIB ao ano com o serviço de sua dívida.

Acrescente-se que vivemos processo preocupante de concentração bancária, em que somente quatro instituições (duas delas estatais) respondem por mais de 70% do mercado —e que as taxas cobradas de consumidores e empresas permanecem astronômicas.

Nesse sentido, é bem-vinda a contribuição de Octavio de Lazari Júnior, recém-escolhido para presidir o Bradesco. Em entrevista a esta Folha, o executivo reconheceu que os bancos ganham com os juros altos e terão de aprender a operar num ambiente de percentuais mais civilizados.

Isso implica democratizar o crédito, hoje direcionado, no mais das vezes, ao setor público e a uma minoria de grandes clientes.

Da parte do governo, há que buscar medidas capazes de estimular a competição, como o cadastro positivo —além, claro, de conter a inflação e ajustar suas contas.


Não existe mágica - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 13/02

Como o dinheiro público é finito, não há alternativa às melhorias de gestão e tecnológicas

Há dois itens em qualquer orçamento público, no mundo, diante dos quais toda sociedade é muito sensível, e com razão. Um é a Previdência, no momento, na agenda brasileira, em lugar prioritário, e o outro, a saúde pública, uma fonte de preocupações constantes de governados e governantes.

Como a aposentadoria, a saúde tem um valor vital para a população, e também com características semelhantes aos sistemas de seguridade: seus custos não param de subir.

A Previdência é essencialmente condicionada pela demografia, e esta, no mundo, apresenta tendência inexorável de envelhecimento da população — o que significa mais aposentadorias e pensões, enquanto, por força da queda das taxas de natalidade, outro fenômeno mundial, há menos jovens entrando no mercado de trabalho para, com suas contribuições, financiarem os benefícios previdenciários. Na inércia, os sistemas tendem à insolvência, daí a necessidade de reformas periódicas, queiram ou não os políticos.

Na saúde, há uma constante pressão nos custos devido a avanços tecnológicos (novos medicamentos, equipamentos mais precisos) e ao envelhecimento mesmo da população. Laboratórios e fabricantes buscam o retorno mais rápido possível dos bilionários investimentos em pesquisa e desenvolvimento. Foram abertos novos caminhos, inclusive com a ajuda do Brasil, pelo lançamento de medicamentos genéricos, sem marca comercial, mais baratos. Há também o mecanismo aceito internacionalmente da quebra de patentes de medicamentos em casos específicos. Outro fator de redução de custos.

Mas o que se consegue é atenuar os efeitos do aumento de custos na medicina, e não acabar com o problema. Isso afeta o SUS brasileiro e, por exemplo, o NHS (National Health Service) britânico, um dos modelos de saúde pública. Também sempre pressionado por elevação de despesas.

Os volumes de dinheiro que circulam nesses sistemas são enormes. O orçamento do SUS está na faixa acima dos R$ 100 bilhões. E onde há estas cifras existem pressões para negócios escusos. Trata-se de instalar governanças que coíbam falcatruas.

Afastar empresas privadas, demonizá-las, atende apenas a dogmas ideológicos, porque sem elas o Estado não consegue bens e serviços de qualidade. Laboratórios estatais, salvo exceções, costumam ser caixas-pretas e tendem também a estimular corrupção.

Em qualquer país, a administração pública precisa ser eficiente. No Brasil, Estados Unidos ou Luxemburgo. E em todos eles o dinheiro do Estado é finito, porque é limitada a capacidade do contribuinte de sustentar o poder público.

Portanto, no SUS como também no NHS e em qualquer outro sistema de saúde pública, é imperativo adotar métodos administrativos e gerenciais mais eficientes. Sempre. Uma atividade como esta é incompatível com regras rígidas determinadas e defendidas por corporações, uma característica do ramo da saúde pública.


O consumo e a normalização - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 13/02

A preservação da renda das famílias, combinada com a redução do desemprego e com a melhora de perspectiva, facilitou a retomada do consumo


As famílias voltaram às compras e o aumento das vendas ao consumidor deixa ainda mais clara a recuperação da economia brasileira. Em dezembro o volume vendido no varejo restrito foi 3,3% maior que o de um ano antes. No varejo ampliado, isto é, com inclusão de veículos e componentes e também de material de construção, o total ficou 6,6% acima do anotado em dezembro de 2016. Muito mais que a variação de um mês para outro, sujeita a oscilações de curtíssimo prazo, a comparação dos dados com os números do ano anterior mostra a tendência de reativação e fortalecimento dos negócios. O recuo das vendas de novembro para dezembro – 1,5% no comércio restrito e 0,8% no ampliado – reflete claramente o efeito estatístico das promoções da Black Friday, estendidas de fato durante a maior parte do mês. A linguagem seria mais precisa, no Brasil, se a expressão usada fosse Black November. Com isso, muita gente antecipou em um mês as compras de fim de ano.

No ano, as duas séries de venda foram superiores às de 2016. No conceito restrito o aumento foi de 2%. No ampliado, de 4%. No primeiro caso, o ganho acumulado em 12 meses foi o maior desde os 2,2% registrados em dezembro de 2014. No segundo, foi o mais alto desde fevereiro também de 2014 (6,4%). Nesse ano, a crise já havia atingido brutalmente a atividade industrial, mas o emprego e o consumo só seriam arrasados pela recessão a partir de 2015.

Os novos números do comércio complementam os dados da produção industrial acumulada em 2017. O segmento de bens de consumo fabricou 3,2% mais que em 2016. O melhor desempenho foi o da indústria de bens de consumo duráveis, como veículos, móveis e produtos eletroeletrônicos, com expansão de 13,3%, em grande parte facilitada pelo aumento do crédito a pessoas físicas. Os produtores de bens semiduráveis e não duráveis tiveram ganho bem menor, de 0,9%, mas isso se explica em parte pela menor oscilação do consumo, medido em volume, de produtos essenciais, como alimentos. Ainda assim, as vendas de alguns semiduráveis e não duráveis cresceram de forma sensível no ano. Os aumentos de 7,6% no varejo de tecidos, vestuário e calçados e de 2,5% no de artigos farmacêuticos, médicos e de perfumaria são exemplos da melhora no consumo.

No caso dos duráveis, as vendas de veículos, motos e partes foram 2,7% maiores que as de janeiro a dezembro de 2016. As de material de construção ficaram 9,2% acima das de um ano antes. Este é um resultado aparentemente estranho, porque a indústria de construção permaneceu estagnada na maior parte do ano. As vendas podem ser um sinal de reformas e obras conduzidas pelos próprios consumidores.

Para avaliar com realismo os números tanto do varejo como da indústria é preciso levar em conta a base de comparação – o ano anterior, quando o nível de atividade era ainda muito baixo e o desemprego, muito alto. Os dados aparentemente espetaculares das montadoras de veículos, com crescimento de 17,2% no volume produzido, são mais facilmente compreensíveis quando vinculados à base deprimida.

Mesmo com essa correção de perspectiva, o cenário é de modo geral positivo e estimulante. A inflação contida certamente contribuiu de forma importante para o retorno às compras. Em 2017, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) subiu 2,95% e ficou abaixo do limite inferior da margem de tolerância, de 3%. A preservação da renda real das famílias, combinada com a redução do desemprego e com a melhora de perspectiva, facilitou a retomada do consumo.

Resta um longo caminho para o retorno aos níveis de atividade anteriores à crise. No caso da indústria, a distância é mais desafiadora, porque o declínio do setor começou bem antes do mergulho do País na recessão. Se houver confiança na economia e fundamentos seguros, o percurso será mais firme e mais direto. Os fundamentos dependerão, é claro, da manutenção do programa de ajustes e da realização de reformas indispensáveis à saúde financeira do Estado e à credibilidade internacional do País.