terça-feira, fevereiro 06, 2018

A loucura da arte - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 06/02

'Trama Fantasma' é obra-prima sobre opressão e submissão

Estranha ambição, essa, de quem deseja ser artista. A arte não é um prazer, no sentido prosaico do termo. É uma maldição prazerosa, o que é substancialmente diferente. Basta ler os testemunhos que os próprios criadores nos deixaram —falo dos grandes, não dos amadores. Onde está a alegria pueril?

Não está. Encontramos o tormento da ideia, o tormento da realização, o tormento do resultado. Uma espécie de relação sadomasoquista que, em muitos casos, pode cansar ou destruir. Anos atrás, Philip Roth anunciou que deixaria de escrever.

E depois, em explicação que perturbou os mais românticos, expressou certo alívio por nunca mais ter de enfrentar a página em branco.

É uma desistência, sim. Mas é, sobretudo, um ato de sobrevivência —como abandonar a droga que nos envenena docemente.

Mas a “loucura da arte” não se apaga quando se apaga a arte. Um verdadeiro criador está sempre submetido à tirania do detalhe —uma espécie de vigília obsessiva, uma atenção patológica às “dissonâncias trágicas da vida”. Não é possível despir o terno de escritor e vestir o robe de marido exemplar.

O mesmo Philip Roth, em um dos seus romances (“O Avesso da Vida”, creio), coloca o personagem Zuckerman a caminho do funeral do irmão —e ainda atento às paisagens, aos rostos, às palavras dos outros. Como se, apesar da circunstância funesta, houvesse ali material aproveitável para um vício que não para. Nem a solenidade do luto é respeitada por uma mente que não descansa.

Quanto ao resto, há pouco espaço para o resto. Só os ingênuos acreditam que as relações humanas, sentimentais, conjugais, são arenas de “igualdade”. Nunca são. Mas, quando existe um criador, essa verdade inconveniente é ainda mais verdadeira —e inconveniente.

A arte é a primeira paixão, apesar de todo o sofrimento. Como pode uma mulher (ou um homem) suportar a sombra do lugar secundário? Pela submissão. Ou, então, pelo abandono do criador.

É sobre tudo isso que nos fala “Trama Fantasma”, a obra-prima de Paul Thomas Anderson —ou, melhor dizendo, a obra-prima que eu sempre acreditei que Anderson seria capaz de fazer. O filme estreia no Brasil a 22 de fevereiro. Comece a contar os dias, leitor.

No centro da história, encontramos Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis), costureiro londrino na década de 1950, que tem no trabalho a sua religião. Escrevo “religião” no sentido cerimonial do termo. Mas também no sentido metafísico —como verdade última que ilumina todas as suas rotinas cotidianas.

Como Kant nas suas deambulações por Köningsberg, Reynolds desenha novos vestidos com o café da manhã; depois trabalha no seu “ateliê”; faz um passeio ao final do dia; e, quando termina as suas criações, há um esgotamento físico e espiritual que o derruba momentaneamente.

É durante esse “spleen” que Reynolds, retirado na província para recuperar o ânimo, conhece uma nova musa, a empregada de hotel Alma (Vicky Krieps).

O criador ressuscita e, como sempre, procura repetir o cerimonial da sua vida: silêncio, trabalho e uma companhia feminina “conveniente”. Por “conveniente”, entenda-se: invisível aos seus olhos grande parte do tempo e apenas visível quando ele se digna olhar para ela.

Mas o comportamento dos outros é sempre mais incontrolável do que uma obra de arte. Primeiro, os seus gestos intrometem-se na nossa rotina bem ordenada. As imperfeições banais são amplificadas pela sensibilidade microscópica do artista.

Mas também porque Alma não se ajusta ao periférico papel que está reservado para as mulheres de Reynolds. Que fazer? Submeter-se? Abandoná-lo ou ser abandonada?

Alma recusa ambos. E, recusando, só lhe resta uma luta de vida e de morte pelo controle de Reynolds. Em todos os artistas, e sobretudo nos mais meticulosos, existe sempre um calcanhar homérico a ser descoberto.

“Trama Fantasma” é um prodígio de direção, a que a trilha sonora de Jonny Greenwood confere uma elegância perturbante. Mas são os atores que elevam o filme a uma “peça de câmara” sobre a obsessão e a submissão como o cinema contemporâneo nunca viu.

E, entre os atores, Daniel Day-Lewis merece as linhas finais. O próprio anunciou que “Trama Fantasma” é o seu último filme.

A confirmar-se, faz sentido: em toda a sua brilhante carreira, não existe nenhum outro papel em que o ator e o personagem, o criador e a criatura, nos falem tão intensamente com os mesmos gestos, o mesmo rosto, a mesma voz.

João Pereira Coutinho

Escritor português, é doutor em ciência política.

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