quinta-feira, setembro 28, 2017

O Brasil é o único certo? - JOSÉ PASTORE

O Estado de S.Paulo - 28/09


Uma das características mais marcantes da indústria moderna é a produção em redes que são compostas por diversas empresas e profissionais que operam de modo articulado. Olhando de fora, as redes exibem relações bastante assimétricas, congregando empresas de vários portes e funções variadas. Cada uma é autônoma, mas a interação entre elas é baseada no cumprimento de regras técnicas e laços de confiança.

As redes de produção no setor de confecções operam dessa maneira e respeitam as especificações técnicas do corte dos tecidos, da costura e do acabamento. As empresas compradoras provêm assistência técnica às oficinas que executam o trabalho.

Em sua maioria, os trabalhadores são jovens e mulheres de baixo nível educacional. Mas, com o avanço das tecnologias, eles ampliam seus conhecimentos e melhoram a renda. Assim tem sido na Ásia, no Leste Europeu e nas Américas (Gary Gereffi, International trade and industrial upgrading in the apparel commodity chain, Journal of International Economics, 1999).

Os grandes beneficiários do trabalho das redes de produção são os consumidores, que compram roupas bonitas, variadas a preços toleráveis.

Esse modo de trabalhar aparentemente não agradou ao Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Norte, que abriu uma ação civil pública contra uma empresa que há anos opera dentro de uma rede de produção composta de oficinas autônomas nas quais os seus empregados (quando existem) são devidamente registrados.

A alegada ilicitude estaria no fato de haver entre as empresas da rede de produção uma “subordinação estrutural”. Isso porque os integrantes da rede trabalham seguindo os padrões técnicos estabelecidos pelas empresas que cuidam do design e do corte das roupas. No caso em tela, as oficinas cresceram e se desenvolveram a ponto de criar roupas de moda própria vendidas no varejo e no atacado para diferentes compradores. Para tanto, contraíram empréstimos, compraram equipamentos e inovaram por conta própria.

O Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Norte fixou o valor da ação em quase R$ 38 milhões, mais a obrigação de a empresa penalizada contratar os empregados das unidades produtivas da rede pagando a eles salários e encargos sociais atrasados, com multa e correção monetária – uma conta que vai longe e, pior, põe em risco os empregos de milhares de jovens e mulheres que têm ali a melhor maneira de ganhar a vida.

Definitivamente, o conceito de subordinação estrutural não casa com a industrialização 4.0 baseada em redes de produção. No caso das confecções, são redes enormes que respondem por uma parcela expressiva do PIB e do emprego. Mundialmente, o setor fatura mais de US$ 1 trilhão por ano e emprega mais de 25 milhões de trabalhadores diretos (Karina Fernandez-Stark e colaboradores, The Apparel Global Value Chain, Duke University, 2011).

Nas redes de produção, a integração entre empresas é essencial e nada tem que ver com esta ou aquela subordinação. E o setor de confecções não é o único que trabalha de modo integrado. Há pouco tempo fui atendido numa clínica em Nova York cujo médico enviou a radiografia de meus pulmões a uma clínica da Índia, que forneceu o diagnóstico em menos de uma hora, ajudando o médico e eu mesmo. É a integração de empresas e especialidades. Jamais sonhei haver entre as clínicas uma subordinação estrutural! Será que o Brasil é o único certo no mundo?

Está na hora de as autoridades do Poder Judiciário serem mais realistas e ajudarem a preservar os empregos, em lugar de destruí-los.

Texto de Santo Agostinho criou a culpa cristã frente ao sexo - CONTARDO CALLIGARIS

FOLHA DE SP - 28/09

Texto de Santo Agostinho criou a culpa cristã frente ao sexo, afirma autor


Li um extraordinário ensaio de Stephen Greenblatt, na "New Yorker" de 19 de junho: "How St. Augustine Invented Sex", como santo Agostinho inventou o sexo.

Greenblatt é um autor de quem tento não perder nada, desde que li "The Swerve", de 2012 ("A Virada - O Nascimento do Mundo Moderno", Companhia das Letras —esgotado, como pode?).

"The Swerve", para mim, está na lista dos 200 livros que é necessário ter lido para não morrer idiota.

Enfim, no ensaio da "New Yorker", Greenblatt aponta nas "Confissões" de santo Agostinho (fim do século 4) a origem das dificuldades da cultura cristã com os prazeres da carne.

O artigo está ligado ao novo livro de Greenblatt: "The Rise and Fall of Adam and Eve" (Norton, 2017), o surgimento e a queda de Adão e Eva, em que trata da aparição e eventual queda, na nossa cultura, do casal com o qual a Bíblia começa —sua história, suas imagens e sua inquietante exemplaridade.

Discute-se até hoje: há quem diga que eles são exemplo da miserável desobediência humana, e há quem diga que eles são os antepassados do Prometeu de Goethe, criaturas rebeldes a seu criador e orgulhosas de sua humanidade.

É o dilema de Adão e Eva: servidão e vergonha? Ou heroísmo da liberdade?

Tanto faz que a gente acredite ou não que eles foram realmente o primeiro casal criado. O que importa, para Greenblatt, é que sua fábula foi, durante séculos, uma maneira maravilhosa de agitar questões essenciais.
No sucesso da história de Adão e Eva, a função de Agostinho é crucial.

Inicialmente, Agostinho achava que o Gênesis era uma história para boi dormir.

Só depois de sua conversão, ele descobriu que Adão e Eva expulsos do Éden lhe eram muito úteis 1) para fundar a ideia de um pecado original (com o qual todos nasceríamos, por causa do pecado do casal inaugural) e 2) para que o tal pecado original fosse identificado com o tesão carnal.

Ou seja, pela desobediência de Adão e Eva, todos nascemos com a tara do desejo sexual.

O batismo nos livra do pecado original. E o que faremos para nos livrar do desejo sexual?

Ainda estou lendo o novo livro de Greenblatt. Enquanto isso, o artigo da "New Yorker" me mandou de volta para as "Confissões".

Minha primeira leitura do texto se dera no primeiro ano de faculdade. E minha lembrança era parecida com as quartas capas das inúmeras edições de bolso das "Confissões": um texto moderno, uma maneira de o autor interrogar suas próprias entranhas mais íntima e cativante que a de Montaigne nos "Ensaios".

Pois bem, pasmei. Um pouco porque o tempo passou e um pouco pelo prisma de Greenblatt, encontrei outro livro, inquietante e mórbido. Agostinho escreve para justificar a repressão, que ele se impõe, de seu próprio prazer carnal e de um passado que ele considera devasso e do qual ele não nos diz quase nada (homossexualidade? Promiscuidade? Vai saber).

Ele se consagra à castidade, seguindo o desejo de sua mãe, com quem, aliás, ele conhece uma espécie de êxtase orgásmica simultânea. E se defende contra seu próprio desejo transformando-o em pecado original de todos os humanos, do qual é necessário que todos se redimam.

Claro, o sexo é necessário para a reprodução, mas, para o cristão, os órgãos sexuais deveriam responder ao intelecto como qualquer outro órgão (sem tesão involuntário, então) e funcionar sem paixão e sem gozo especial, como quando alguém peida à vontade (exemplo dele, sorry).

Pela ficção seria difícil construir um relato tão exemplar do que é uma neurose.

Agora, que eu saiba, não há outros casos de um relato mórbido grave que tenha tido um sucesso comparável. Agostinho conseguiu mesmo transformar o asco doentio por seu próprio tesão em condenação do desejo sexual numa cultura inteira, por séculos.

As encruzilhadas da vida são curiosas.

Agostinho inventou um deus que pudesse ajudá-lo a reprimir seu desejo carnal.

Eu, desde a adolescência, deixei de acreditar no deus de Agostinho justamente porque me parecia absurdo que ele se preocupasse em reprimir o desejo carnal de quem quer que seja e especialmente o meu. Ou seja, ele chamou deus para que o auxiliasse na luta contra seu próprio prazer. Eu achei que realmente não precisava de um deus que fosse oposto a meus prazeres.

Alguém dirá que por isso irei ao Inferno. Veremos. Por enquanto, o fato é que Agostinho atormentou a vida de centenas de milhões. Eu, não.

Leiloeiro de obras prontas - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 28/09

Teve algum sucesso o leilão de usinas hidrelétricas e de áreas de exploração de petróleo, nesta quarta-feira (27). Há dinheiro para investimento no Brasil.

A ressalva "algum sucesso" se deve ao fato de que foram vendidas obras prontas, na prática. É mais fácil leiloar aeroportos, como o governo fez em março. Ou hidrelétricas prontas faz décadas, caso parecido ao da venda de um posto de gasolina em avenida movimentada, mal comparando, mas não muito.

Este governo decerto limpou o entulho que bloqueava negócios de petróleo. Mas, tiradas essas bobagens de Lula e Dilma Rousseff, trata-se de negócio mapeado em décadas de investimentos e pesquisas da Petrobras. Problema maior é destravar concessões e investimentos em negócio novo.

Há quem diga que neste governo, ou seus economistas e engenheiros, se faz mais reforma econômica que na década anterior. Tudo bem. Mas este mesmo governo criou e aprovou um plano radical de redução do gasto público, em especial de investimento, de privatização e de enxugamento de crédito dos bancos estatais. Pode fazer sentido, mas é preciso colocar algo no lugar, logo.

Talvez o investimento destrave no médio prazo, com as mudanças regulatórias. Talvez a empresa privada seja mais capaz (nem sempre. Oi? Eike? Concessionárias picaretas de estradas?). Mas temos um problema urgente e grave de escassez de investimentos, o que retarda a volta do crescimento e pode jogar no escuro a recuperação que vier (de onde vai vir o investimento em energia elétrica?).

Sim, é mais difícil fazer leilão de estradas novas, conserto de licitações micadas, acordos de leniência. Mas está tudo atrasado. Pior ainda é o caso teratológico das ferrovias, mixórdia de privatização porca dos anos FHC, de uma estatal de histórico corrupto e incompetente, a Valec, e de programas doidivanas de expansão sob Lula e Dilma.

Estão atrasadas as novas regulamentações de mineração, gás, teles. Os assuntos parecem esotéricos, mas é assim que se pode ressuscitar o investimento, dar uso a uma fonte de energia abundante (gás) e até fazer com que o seu celular tenha conexão melhor com a internet (teles).

Sem nova regulação das concessões de telefonia, o investimento fica abaixo do potencial. Sem criação de um mercado e "regras de trânsito" para o gás não haverá investimento privado

O código mineração está empoeirado faz mais de 20 anos. Dilma fez um projeto de mudança em 2013, enterrado por rolos do PMDB e pelo impeachment. Agora tramita como medida provisória, mas o lobby das empresas diz, bidu, que novos impostos vão provocar redução dos investimentos.

Tais regulações são infernalmente complexas e não dependem apenas do governo, claro, mas deste indizível Congresso e até do Supremo.

Além do mais, é fácil ser levado na conversa dos lobbies (faltam centros independentes de análise). As novas concessões podem virar carta de corso, dar em espoliação do consumidor ou do ambiente. Alguém pode comprar uma medida provisória. Logo, a exigência de pressa tem de ser qualificada. Mas a míngua do gasto público em obras e os atrasos das concessões de infraestrutura estão criando um vácuo que pode asfixiar a economia.

A síndrome do pica-pau - LUIZ PAULO SILVEIRA

DCI - 28/09
Inovação e educação são as chaves para o desenvolvimento, isso é fato. Como benchmarks desta máxima, basta citarmos os Estados Unidos e nações que fizeram bem o dever de casa, como a China e a Coreia do Sul. Podemos comparar, por exemplo, a posição de cada um destes países no último ranking mundial de empresas inovadoras, divulgado anualmente pela revista Forbes, e a posição dos mesmos no ranking do nível de educação entre os adolescentes de 15 anos nos 75 países monitorados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE ).

O campeão Estados Unidos lidera a lista com nada menos do que 49 das 100 empresas campeãs, enquanto que a educação de seus adolescentes ocupa a 31ª posição.

China, por sua vez, possui sete empresas no ranking. Porém, está correndo atrás do prejuízo: seus adolescentes conseguiram a 10ª posição no ranking de educação, bem à frente dos americanos. A Coreia do Sul apresenta um bom desempenho, com adolescentes bem classificados, em 9º lugar. Já o Brasil aparece no ranking de inovação com apenas uma empresa e quase desaparece na classificação de educação, em 63º lugar.

Isso nos traz um claro sinal de que a nossa capacidade de competir em um cenário de economia global está seriamente comprometida. Bom para nossos filhos? Certamente não. Na verdade, uma péssima herança.

A corrupção, por um outro lado, tem demonstrado ser uma doença endêmica da sociedade brasileira. Em países democráticos, esse câncer só se propaga às custas da ignorância e da falência geral do sistema educacional - impondo uma miopia progressiva tanto na população desocupada quanto na mão de obra qualificada.

Vejamos aqui o caso dos auditores e avaliadores independentes, fundamentais para o desenvolvimento do mercado de capitais. As grandes empresas brasileiras que se encontram atualmente envolvidas em escândalos de corrupção são, pasmem, todas auditadas. E sem ressalvas no parecer! Obras são contratadas em contratos superfaturados. Companhias são avaliadas muito acima do seu valor de mercado. Enfim, os corruptores ativos aproveitam-se da ignorância do sistema - que fica completamente cego.

A falta de qualificação no ensino, principalmente nas empresas de serviços, favorece a contratação de mão de obra "com diploma" cada vez mais deficiente e despreparada. Ou seja, os famosos "pica-paus" das empresas de auditoria já não picam ou enxergam mais nada. E as empresas de avaliação? O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua equipe ministerial e de assessores diretos foram no mínimo irresponsáveis ao mudar o padrão contábil brasileiro, baseado no custo histórico, para o padrão internacional, baseado no valor justo.

Tal medida foi implementada sem que houvesse uma normatização ou a preocupação com a criação de um curso ou equivalente sobre o assunto em nosso sistema de ensino. Isso foi em 2007, e nada mudou até hoje.

Educação é o caminho. Educação maciça e de qualidade, em todas as direções e níveis. É o sangue que circula nutrindo, protegendo e renovando o organismo.

Sem educação de boa qualidade, nossa sociedade estará exposta a toda sorte de males, enquanto desfilamos por aí de terno e gravata, com um diploma embaixo do braço, meros fantoches dos oportunistas de plantão.

Como avaliar estes leilões - CELSO MING

O Estado de S.Paulo - 28/09
A análise dos leilões das quatro usinas da Cemig e da 14 ª rodada de concessões de petróleo realizados hoje não pode restringir-se ao resultado de caixa, embora ele também tenha sido expressivo e deverá contribuir para a redução do rombo das contas públicas.

Mais importante do que isso é a nova postura da administração econômica, que abandonou a retranca postergadora e protecionista que prevaleceu ao longo do período Dilma, e a resposta positiva dos interessados.

O leilão das hidrelétricas da Cemig trouxe mais capital estrangeiro e provavelmente agregará mais eficiência na administração desse patrimônio. Podem-se esperar agora mais investimentos como, por exemplo, a instalação de placas flutuantes ao longo dos reservatórios para geração de energia elétrica de fonte solar, que aproveitará melhor as linhas de transmissão já existentes.

Nas unidades leiloadas deixarão de imperar o patrimonialismo e cupinchismo dos chefes políticos da hora, situação que as deixará menos vulneráveis à corrupção e aos cabides de emprego. E essas conquistas não são pouca coisa.

O interesse demonstrado pelos concorrentes ao leilão, num setor tão fortemente abatido pelo intervencionismo, poderia ser maior não fosse a relativamente baixa qualidade dos ativos brasileiros tal como avaliada pelas agências de análise de risco.

Mas ficou clara entre os participantes a recuperação da confiança nas instituições e nas leis brasileiras. Embora continuem sendo esperados recursos judiciais contra a transferência definitiva dessas hidrelétricas, este obstáculo não foi considerado fator impeditivo à realização dos leilões. E à medida que crescer a participação de outras empresas, o setor elétrico ficará menos exposto ao jogo predador dos políticos. O leilão das usinas da Cemig deve ter melhorado a atratividade do próximo leilão das distribuidoras da Eletrobrás e, também, de energia nova agendado para dezembro.

Quanto ao leilão de novas áreas de petróleo, em terra ou nas áreas da plataforma marítima acima da camada de sal, há dois fatos positivos importantes a considerar. O primeiro deles é o de que o governo recuperou o sentido de urgência, abandonou a inércia dos governos anteriores, à espera pela melhora de preços do petróleo. O segundo tem a ver com flexibilização das regras do jogo. Foram reduzidas as exageradas exigências de conteúdo local (encomendas às empresas brasileiras), que vinham aumentando substancialmente os custos de investimentos de produção.

Felizmente, prevaleceu o entendimento de que é preciso tirar o atraso e apressar os investimentos, não só para reativar o emprego num setor prostrado pela imobilidade, mas, também, para proporcionar mais receitas com royalties que tanta falta vêm fazendo nos orçamentos combalidos dos Estados e prefeituras.

A Agência Nacional do Petróleo já tem agendados para este ano mais dois leilões de áreas e outros dois, para 2018 e 2019. Também se propõe a fazer duas rodadas de venda de campos maduros em terra, no Recôncavo.

O sucesso do leilão de hoje deve ser visto como espécie de prévia para o resultado do leilão de 27 de outubro, que contemplará cobiçadas áreas do pós-sal na Bacia de Santos.

CONFIRA

Avanço real do crédito


Os dados mais recentes divulgados pelo Banco Central hoje mostram notória expansão do crédito, especialmente às pessoas jurídicas. Os números do gráfico ao lado estão deflacionados. Acusam um crescimento de 2,5% ante a agosto de 2016 no segmento das concessões livres às empresas. Isso significa aumento tanto da demanda por financiamentos como da disposição dos bancos em ampliar suas operações de crédito. É mais uma indicação de que o setor produtivo está se recuperando.

O jogo da vida - GUY PERELMUTER

O Estado de S.Paulo - 28/09
Para seu trabalho de graduação na Academia de Artes e Design de Bezalel, em Israel, Eran May-raz e Daniel Lazo produziram um curta chamado "Sight" ("Visão") no ano 2012. A história mostra, em um futuro não muito distante, o mundo como um ambiente de execução de aplicativos de realidade aumentada através de lentes especiais. Tarefas simples como preparar uma refeição tornam-se jogos com resultados compartilhados nas redes sociais, assim como encontros entre o personagem principal e uma jovem, no qual as próprias interações entre ambos são pontuadas por aplicativos especificamente preparados para esse tipo de ocasião.

A fusão da realidade aumentada com o conceito de gamification ("gamificação") é uma combinação poderosa que deve alterar de forma significativa como aprendemos, estudamos, ensinamos, treinamos e nos exercitamos. Considerando a importância que a maior parte das pessoas dá às suas respectivas redes sociais - Facebook, Twitter, Instagram, LinkedIn - e a busca pelo maior número possível de seguidores, contatos, compartilhamentos, "likes", "re-tweets" e afins, a manifestação da "vida em sociedade" ironicamente parece cada vez mais vinculada à vida digital.

Vamos analisar ambos os elementos - realidade aumentada e gamification separadamente. A realidade aumentada, conforme já vimos, é a tecnologia que permite que elementos digitais sejam apresentados no mundo real, seja através de um smartphone, tablet, óculos especiais ou qualquer dispositivo com uma câmera aliada a um processador. O conceito tornou-se popular quando o jogo Pokémon Go foi lançado, permitindo que os jogadores encontrassem criaturas digitais circulando pelas ruas das cidades. Já gamification pode ser explicado como a transformação em um jogo de determinada tarefa que exista fora deste contexto de entretenimento e competição - não esquecendo que a própria definição de "jogo" é alvo de discussão há pelo menos cem anos. Para nossos propósitos, vamos utilizar o conceito proposto pela pesquisadora e designer norte-americana Jane McGonigal: todos os jogos possuem objetivos, regras, um sistema de feedback e a participação é voluntária.

O objetivo da gamificação é, em última instância, aumentar o engajamento do usuário de determinado sistema ou serviço visando, entre outras coisas, melhorias operacionais, maior produtividade e aumento na capacidade de retenção de informações. De acordo com um trabalho de pesquisa publicado em dezembro de 2014 por Andreas Lieberoth da Universidade Aarhus na Dinamarca, a eficiência desta técnica está ligada à nossa tendência em mudar de postura em relação a situações apresentadas como jogos ou desafios: quando isso ocorre, nosso lado competitivo e curioso tem a chance de atuar para buscar realização e status (mesmo que este status seja representado por badges virtuais, como é frequentemente o caso).

Fazer exercícios físicos e ganhar pontos virtuais, responder a perguntas em fóruns de discussão e acumular "pontos de experiência" (os "experience points"), realizar recomendações de hotéis e restaurantes para sites como o TripAdvisor, tornar-se o "prefeito" de determinados locais no FourSquare e manter a disciplina de hábitos saudáveis através do aplicativo de sua preferência são apenas alguns exemplos de como a criação de uma dinâmica de jogos em tarefas do dia-a-dia pode ter consequências surpreendentes e positivas.

O aprendizado infantil em particular é um dos campos mais explorados pelo conceito de gamification, com o objetivo de melhorar e estimular o interesse nos temas estudados. Atividades como aprender a ler, a fazer contas e a identificar sons tornam-se jogos capazes de reter a atenção das crianças, aumentando seu foco e a eficiência com a qual aprendem. Este é apenas um dos elementos tecnológicos que estão alterando significativamente a área de Educação em todo o mundo - e este será nosso tema para semana que vem. Até lá.

*Fundador da GRIDS Capital, é Engenheiro de Computação e Mestre em Inteligência Artificial

Instituições de controle funcionam mal e atrapalham a democracia - MATIAS SPEKTOR

FOLHA DE SP - 28/09

Reza a lenda que nossas instituições de controle estão funcionando. Segundo esse argumento, a melhor prova do vigor institucional da democracia brasileira seria a Operação Lava Jato, o processo que está levando a classe política a responder por seus atos.

Não é isso, no entanto, que a evidência mostra. Em meses recentes, as revelações de juízes e procuradores descortinaram um quadro mais completo.

Sem dúvida, houve enorme avanço institucional nos últimos 30 anos de vida democrática, mas o sistema brasileiro de pesos e contrapesos não funciona bem.

O Poder Executivo tem sua própria liderança na cúpula do Judiciário. Os Tribunais de Contas podem ser cooptados ou comprados. As comissões parlamentares de inquérito são inócuas, e os Tribunais Eleitorais que deveriam julgar as finanças de campanha são peças de ficção.

O trabalho do Ministério Público depende de quem ocupa a chefia da pasta e um ministro da Justiça empedernido pode afetar em cheio a capacidade investigativa da Polícia Federal. Congressistas podem pôr as leis do país à venda e, quando o fazem, operam em conluio com o Executivo, distribuindo orçamentos e oportunidades de negócio ilegais.

Tais mecanismos subvertem e enfraquecem a democracia brasileira. O resultado é uma situação na qual os cidadãos votam em eleições livres e competitivas, a imprensa reporta sem censura e, mesmo quando um general boquirroto expressa sua vocação golpista sem reprimenda do governo de plantão, não há motivo para alguém temer o retorno de uma ditadura. Mas, ao mesmo tempo, as regras do jogo democrático enfrentam volumes colossais de disfunção.

O problema é que, sem pesos e contrapesos, qualquer democracia definha. Quando faltam controles eficientes, o resultado é um governo de quadrilhas, sejam elas de esquerda, centro ou direita. É o império dos grupos de interesse.

As revelações mais recentes mostram que a democracia brasileira está mais longe do que se pensava de Portugal e Espanha, dois países que conseguiram abandonar seu passado de autoritarismo, corrupção alta e políticas públicas de qualidade baixa. Estamos mais perto do que achávamos de Rússia e Turquia, onde o entulho autoritário contamina o que lá existe de democracia.

É hora de reconhecer o problema de nossas instituições de controle. Frágeis, elas têm futuro incerto. A Operação Lava Jato não é regra, mas exceção. A impunidade continua sendo a moeda corrente da política brasileira.
Hoje, nada garante que o futuro será melhor. A coalizão do atraso —nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, nas indústrias e nos serviços— continua pisando forte para manter tudo como está.

Deus ajuda quem cedo madruga - ZEINA LATIF

O Estado de S.Paulo - 28/09

Algumas ideias equivocadas são repetidas com frequência, atrapalhando o necessário amadurecimento do País na discussão da agenda econômica.


Para muitos, a queda da inflação era inevitável devido à dura recessão. Além disso, o Banco Central seria supostamente sortudo por conta da safra agrícola recorde e do ambiente externo benigno que permitiu a queda da cotação do dólar. Já a recuperação da economia em curso ocorreria de qualquer forma, pois tudo que cai sobe.

Nada disso. Os riscos de descontrole inflacionário e de um “alçapão no fundo do poço”, como alertado por importante gestor de recursos, eram concretos ao fim do governo Dilma.

O problema dessa visão, além da injustiça com o time econômico e os operadores políticos, é que ela passa a ideia de que nenhum avanço houve. Tudo que se colheu até agora seria fruto de sorte e acaso. O corolário é a recomendação de uma mudança da agenda econômica. Esse é o perigo, pois a agenda de ajuste fiscal precisa ser aprofundada e aperfeiçoada, e não afastada.

As críticas à estratégia do governo de eleger o ajuste fiscal estrutural como pedra fundamental para tirar o País da crise se mostraram frágeis. Importante lembrar que o time econômico de Dilma tentou avançar nessa agenda, mas não conseguiu. Assim, perdemos o grau de investimento.

O ajuste fiscal atual não é o ideal. Por depender de reformas estruturais, o ajuste é lento. E houve concessões a grupos de interesse, como no ajuste do funcionalismo, o que acabou por comprometer os investimentos públicos. Ainda assim, o saldo é positivo. Há amarras constitucionais que reduzem o risco de irresponsabilidade fiscal e que deverão estimular mais reformas. Além disso, há maior transparência na gestão da política fiscal, sem pedaladas e restos a pagar inflados.

Não há como negar a importância da deflação de alimentos e do recuo da cotação do dólar para a queda da inflação, cuja velocidade surpreendeu. Porém esses argumentos desconsideram a essência da desinflação ocorrida. A reorientação da política fiscal e a postura zelosa e crível do BC são o alicerce da desinflação, que começou pelo recuo das expectativas inflacionárias do mercado financeiro.

A redução das projeções de inflação dos analistas não é sinal de apoio a qualquer governante, mas sim fruto da forte concorrência que os estimula a atualizarem com frequência seus cenários. De preferência de forma a conquistar posição elevada no ranking do BC de melhores previsores de inflação.

Não tivesse ocorrido a reorientação da política econômica, a inflação não teria cedido de forma consistente, a Selic não estaria em queda e a retomada não estaria acontecendo. Mesmo com toda sorte do mundo.

A inflação de alimentos não caiu apenas por conta da safra agrícola e a cotação do dólar não recuou apenas por conta do cenário internacional. Ambos refletem em boa medida o acerto da política econômica.

Se a safra é recorde, mas a falta de perspectiva de ajuste das contas públicas gera pressão inflacionária, a inflação não cai de forma duradoura, nem mesmo a de alimentos. Da mesma forma, o recuo da cotação do dólar não teria ocorrido, pelo menos não na mesma intensidade. Em um quadro doméstico desastroso, o real teria se descolado das moedas de demais emergentes.

Conseguir se beneficiar da sorte é privilégio de poucos.

Em janeiro, defendi neste espaço que o efeito da arrumação da política econômica poderia surpreender e a taxa Selic atingir 7,5%. Poderá ser ainda menor. O fôlego de juros de um dígito, no entanto, dependerá do ajuste fiscal estrutural. A taxa de juros neutra, que mantém a inflação estável, depende fundamentalmente de fatores estruturais, como o potencial de crescimento do PIB, a demografia e as perspectivas de longo prazo da política fiscal. Este último é o X da questão.

A sociedade aos poucos compreende a importância do cuidado com as contas públicas. Agora começa a enxergar o benefício. Não podemos perder essa oportunidade

A lei não é o limite - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 28/09

Na decisão de afastar o senador Aécio Neves, o voluntarismo e o ativismo que há tempos acometeram uma parte do Supremo parecem ter atingido o estado da arte. Cabe ao Senado desfazer a lambança


A decisão da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), por 3 votos a 2, de afastar Aécio Neves (PSDB-MG) do Senado e de mandar que ele cumpra recolhimento domiciliar noturno é tão absurda, em tantos sentidos, que não resta alternativa ao plenário do Senado senão desconsiderá-la, pelo bem do equilíbrio entre os Poderes, pelo respeito à Constituição e para salvar o Supremo desse vexame. Esse tribunal, cuja atribuição primária é zelar pelo cumprimento das diretrizes constitucionais, afrontou a Carta Magna como poucas vezes se viu nesses tempos já bastante esquisitos, em que o “direito achado na rua” se sobrepõe ao que está na lei.

A Procuradoria-Geral da República (PGR) havia pedido em julho, pela segunda vez, a prisão de Aécio e a suspensão de suas funções parlamentares, sob a acusação de corrupção e obstrução de Justiça, com base na delação do empresário Joesley Batista. Na primeira vez, o pedido foi parcialmente aceito pelo ministro Edson Fachin, relator do caso no Supremo, que afastou o senador de seu mandato, algo que somente o Senado poderia fazer, e ordenou que ele deixasse de ter contatos políticos, mas evitou mandar prendê-lo por considerar que não havia flagrante de crime inafiançável, único caso em que um parlamentar no exercício do mandato pode ser preso. A esdrúxula decisão do ministro Fachin foi revista pelo colega Marco Aurélio Mello, que na ocasião lembrou o óbvio: “Cumpre ser fiel aos ditames constitucionais e legais, sob pena de imperar o descontrole institucional, com risco para a própria democracia”.

Agora, ao avaliar o segundo pedido de prisão feito pela PGR, a Primeira Turma do Supremo não apenas reafirmou a punição a Aécio, atropelando a Constituição, como alguns de seus integrantes resolveram dar lições de moral ao senador.

O mais eloquente foi o ministro Luiz Fux. Ao dar um dos três votos contrários a Aécio, Fux disse que o senador deveria ter “se despedido” do mandato quando foi acusado, mas, como “ele não teve esse gesto de grandeza, nós vamos auxiliá-lo a pedir uma licença para sair do Senado Federal”. Se tudo o mais já não fosse grave o bastante, o ministro resolveu fazer blague com coisa séria.

Já o ministro Luís Roberto Barroso votou de acordo, segundo ele, com a coerência. Barroso argumentou que “seria uma incongruência” manter em prisão domiciliar os supostos cúmplices de Aécio – entre os quais sua irmã, Andrea Neves – e não punir o próprio senador de forma semelhante, pois “há indícios, bastante suficientes a meu ver, de autoria e materialidade”. Ou seja, o ministro do Supremo parece ignorar que um senador da República, conforme está explícito no artigo 53 da Constituição, só pode ser preso com a autorização de seus pares, razão pela qual sua situação é muito diferente da de seus supostos cúmplices.

Além disso, está clara, tanto no voto de Barroso como no de Fux, a antecipação de juízo condenatório, embora Aécio Neves nem réu seja. O terceiro voto, da ministra Rosa Weber, também foi nessa linha e acrescentou absurdos, ao dizer que Aécio deveria sofrer restrições de movimentos porque descumpriu as determinações do ministro Edson Fachin de não ter contatos com políticos, o que equivaleria, sob qualquer aspecto, à cassação de direitos políticos do senador. A arbitrariedade desse voto é evidente: basta lembrar que há um deputado, Celso Jacob, que está preso em regime semiaberto e continua a exercer o mandato na Câmara, com autorização da Justiça. Ou seja, enquanto um condenado pode continuar a fazer política, um senador que nem réu ainda é não pode.

Há ainda outros problemas práticos gerados pela decisão do STF. O Senado terá um voto a menos, já que inexiste regra para a substituição nesse caso. Além disso, enquanto não for julgado, Aécio pode se candidatar a deputado e, se vencer, não poderá entrar no Congresso, porque o Supremo o proibiu. E, caso Aécio resolva ignorar as determinações do Supremo, não há como sancioná-lo, pois não há previsão legal sobre o que fazer nesse caso, já que a decisão dos ministros foi uma invencionice jurídica.

Em resumo, o voluntarismo e o ativismo que há tempos acometeram uma parte do Supremo parecem ter atingido o estado da arte. Cabe ao Senado desfazer a lambança.

Terreno perigoso - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 28/09

Um senador da República pede R$ 2 milhões a um empresário, a serem entregues por meio de intermediários de um e de outro. Uma mala de dinheiro chega às mãos de um primo do político e, algumas transações depois, ao caixa de uma empresa ligada à família de um colega de Senado.

Documentados e incontestáveis, os fatos lançam suspeitas gravíssimas sobre a conduta de Aécio Neves (PSDB-MG), gravado pelo delator Joesley Batista, da JBS.

Denunciado sob acusação de corrupção passiva, alvo de inquérito que investiga lavagem de dinheiro, o segundo colocado nas eleições presidenciais de 2014 não foi capaz de oferecer explicações satisfatórias para o episódio —uma tarefa, convenha-se, inglória.

A alegação de que tudo não passou de mera transação privada, destinada a custear a defesa de Aécio Neves na Lava Jato, é frágil diante de tantos procedimentos, para dizer o mínimo, heterodoxos.

Deixando-se de lado a soma envolvida, cabe perguntar por que o uso de dinheiro vivo, de emissários, de uma empresa de terceiros.

Ou, ainda, por que o tucano recebeu pleitos de Joesley Batista por influência na Vale —privatizada há 20 anos— e se gabou de ter acabado de nomear, na prática, o presidente da empresa.

Tudo isso pesado, deve-se dizer que o Supremo Tribunal Federal embrenhou-se em terreno perigoso ao decidir, nesta terça (26), afastar o senador do cargo, além de impor seu recolhimento domiciliar noturno e entrega do passaporte.

O placar de 3 a 2 na primeira turma da corte dá ideia da controvérsia em torno da deliberação.

Previstas no Código de Processo Penal, tais medidas foram justificadas pelo risco de uso do mandato para atrapalhar o andamento das investigações; este fora o entendimento do ministro Edson Fachin em maio, agora restabelecido.

Os argumentos que amparam tal juízo, entretanto, dão margem a questionamentos. Já de início havia claro exagero do Ministério Público em considerar tentativa de obstrução da Justiça os movimentos do senador mineiro por mudanças da legislação penal.

Fora isso, há na conversa com Joesley Batista uma crítica de Aécio Neves ao ministro da Justiça por não conseguir selecionar os delegados encarregados das apurações.

A ministra Rosa Weber citou ainda atividades políticas e contatos com outros investigados, em desobediência às restrições originais aplicadas por Fachin.

Criou-se, dessa maneira, uma perspectiva de conflito com o Senado, que pode submeter a seu plenário a decisão do STF. Nesta hipótese, será difícil distinguir o desejo de impunidade e a defesa legítima de um mandato popular protegido pelo texto constitucional.

Estabilidade do servidor, até quando? - GUSTAVO GRISA

O GLOBO - 28/09

É pouco admissível que, com exceção de carreiras específicas, uma pessoa ingresse em determinado serviço e tenha a expectativa de continuar a exercê-lo por décadas

Restam poucas dúvidas, hoje, de que a reforma do Estado brasileiro seja a grande causa nacional. Mas temos grandes dificuldades em encontrar padrões efetivos de mudança que tragam resultados para a evolução institucional, com menos despesas fixas e melhor resposta à realidade e evolução da sociedade.

Uma das questões que precisam ser discutidas é a estabilidade praticamente irrestrita no emprego público. Ainda mais, a “empregabilidade”, eufemismo usado para tornar praticamente estáveis aqueles empregados públicos que não têm estabilidade garantida pela Constituição brasileira, e são protegidos por suas corporações, assim como a prática de incorporação de vantagens e gratificações. Afinal, quando o cidadão comum ouviu falar de dispensa de empregados públicos em empresas, repartições mistas ou públicas, em função de crises, adaptações, ou fim de função, algo comum na economia real?

É de se pensar a adoção gradual de modelos alternativos para as funções públicas ou mistas que não sejam as carreiras típicas de Estado, como diplomacia, Forças Armadas, Polícia Federal, Advocacia da União, Receita etc. Em muitos países já se se adota, para funções específicas no serviço civil, universidades ou empresas mistas, o princípio do tempo de prestação de serviço: há um processo seletivo público para funções que duram três, cinco ou dez anos, sendo que, após este período o contrato é extinto, assim como o vínculo, e a própria função pode ser descontinuada, fundida ou revisada.

Em tempos de trabalho flexível, é pouco admissível que, com exceção de carreiras específicas, uma pessoa ingresse em determinado serviço e tenha a expectativa de continuar a exercê-lo por décadas, com a mesma descrição de cargo ou função, até a sua aposentadoria. É preciso que a flexibilidade também chegue ao setor público, buscando valorizar os bons colaboradores, eliminar aqueles que não apresentam espírito público e comprometimento, reciclar equipes, tornar funções finitas e temporárias. Desfazer o acúmulo genérico de pessoal e de funções.

Buscar solução para a Previdência na direção de um único modelo nacional, sem privilégios. Questionar o formato dos concursos públicos, se o modelo de “função de longo prazo” se sustenta. Prevenir a criação de novos desequilíbrios que projetam situações que, já se sabe hoje, serão inviáveis, ou impagáveis.

A reforma do Estado brasileiro não está estrita somente à discussão do “Estado mínimo”, mas passa, principalmente, por uma nova visão de funcionalidade que precisa incluir novas políticas de contratação e progressão.

Gustavo Grisa é economista e especialista do Instituto Millenium

Carta de Palocci pressiona PT a fazer reflexão - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 28/09

Pedido formal do ex-ministro para ser desligado do partido deveria servir para estimular debates sobre o futuro de uma legenda que está sendo dominada pelo caudilhismo

O jogo e os embates políticos costumam ser marcados por momentos que fazem trepidar partidos, levando-os ou não à reflexão. Podem ser entrevistas ou mesmo atos inesperados, discursos ou documentos explosivos, como o que acaba de divulgar o ex-ministro Antonio Palocci, outrora poderosa liderança do PT, que, por meio de carta divulgada terça, pede desfiliação à presidente da legenda, senadora Gleisi Hoffmann, também ré na Lava-Jato.

A rigor, é a segunda carta de impacto produzida por Palocci. A primeira foi aberta, chamava-se “Carta ao Povo Brasileiro”, divulgada na campanha de 2002, lançada depois que o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva foi convencido a se comprometer a não alterar as bases da política econômica, que vinha funcionando, de FH.

Foi um passo fundamental para que o candidato, antes radical, conseguisse aplainar resistências e temores. Mais ainda: quando assumiu, em 1º de janeiro de 2003, Lula colocou Palocci na Fazenda, e o prometido foi cumprido, com o esperado êxito. Depois, sabe-se como tudo desceu a ladeira, com a volta de velhas ideias populistas.

Em entendimentos com o MP para fechar acordo de delação premiada na Lava-Jato, Palocci prestou depoimento, gravado em vídeo, em 6 de setembro, que já fora devastador para Lula e o partido. Como a previsível reação do lulopetismo que controla o PT foi processá-lo, Palocci, então, escreveu a carta em que pede o desligamento da legenda e ainda alinha sérios pontos para reflexão da militância.

Um deles: “(...) somos um partido político sob a liderança de pessoas de carne e osso ou somos uma seita guiada por uma pretensa divindade?”. Ou seja, Lula. Palocci lamenta não poder responder agora a questionamentos do partido, porque, devido à negociação do acordo de colaboração premiada, é forçado a guardar sigilo.

Mas, na carta, confirma a reunião estratégica, no Planalto, no final de 2010, em que Lula, na presença dele, de Dilma e do presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli, determina que o programa de montagem de sondas para o pré-sal seja usado como fonte de propinas para a campanha presidencial.

Escreve Palocci: “(...) Lula encomendou as sondas e as propinas, no mesmo tom, sem cerimônias, na cena mais chocante que presenciei do desmonte moral da mais expressiva liderança popular que o país construiu na nossa história.” O ex-ministro também confirma propinas pagas a Lula pela Odebrecht.

Se não pedisse desfiliação agora, ele seria mesmo expulso, como costuma acontecer com quem acusa o líder Lula dentro do partido. Para o ex-presidente e a legenda, foi infeliz coincidência a carta ter sido divulgada enquanto a defesa de Lula entregava à Justiça supostas provas de que o ex-presidente pagou aluguel pelo imóvel vizinho em São Bernardo.

Num caso à beira da comicidade, advogados de Lula apresentaram suspeitos recibos com datas inexistentes e rasuras estranhas. Agrava-se a situação do líder supremo e de sua legenda, porque reforça-se a conclusão de que o apartamento foi mesmo pago pela Odebrecht. E Palocci conhece bem esta e outras histórias. Enquanto isso, o partido ganha ainda mais ares de instrumento controlado pelo caudilhismo