quinta-feira, maio 04, 2017

O que temos em comum? - CONTARDO CALLIGARIS

FOLHA DE SP - 04/05

Dos filmes que vi no feriado, o que mais me tocou foi "Além da Ilusão", de Rebecca Zlotowski.

Mas deixo de comentá-lo por ora porque o meu Oscar da semana vai a uma propaganda, que me lembrou os bons tempos (1982-2000) em que Oliviero Toscani usava a publicidade para promover os conteúdos culturais que lhe importavam. Em 94, para a Folha, estive na faixa de Gaza, para vê-lo fotografar o catálogo da Benetton usando os refugiados palestinos como modelos (foi um especial do extinto caderno "Mais" (migre.me/wxDHF).

Enfim, a propaganda que ganhou meu Oscar é um breve vídeo criado pela Publicis, para a Heineken: "Worlds Apart" ("Mundos Distantes"). Não perca (migre.me/wxDRd). Seis pessoas, separadamente, declaram e gravam suas convicções. Logo, elas são divididas em três casais de opostos radicais. Um militante ecologista está com alguém que não acredita na mudança climática; um machista assumido, com uma feminista negra; um defensor da "normalidade" heterossexual, com uma transgênero.

Nenhum deles ou delas sabe que está com um outro que pensa muito diferente dele (ou dela). Os casais recebem uma mesma tarefa –construir uma bancada.

Quando a bancada está pronta, eles assistem às gravações iniciais e descobrem assim quem realmente é seu companheiro de empreitada. Eles podem ir embora indignados ou sentar-se e conversar sobre as diferenças entre eles.

O que temos em comum, acima e apesar de nossas diferenças? E, por consequência, quais são os acordos possíveis? E qual a convivência?

A resposta moderna (desde o século 17 mais ou menos) é que nosso fundamento comum é o próprio sujeito pensante –ou, se preferir, a razão, que todos teríamos: uma capacidade que compartilhamos, independentemente das conclusões às quais ela leva cada um de nós.

Ou seja, você, levado pela razão, acredita que o bem da humanidade esteja no comunismo futuro. E você, levado pela mesma razão, acha que o bem está na obediência à revelação divina. Apesar dessas conclusões opostas, será que nossa faculdade de pensar comum é suficiente para que a gente dialogue, conviva e se respeite? Faz 400 anos que essa pergunta paira no ar.

Nessa altura, deveria ser óbvio que a razão compartilhada não nos leva a nada concreto que seja comum. Ela não nos permitiu sequer chegar a uma lista de valores básicos universais. Também descobrimos (graças à Escola de Frankfurt) que essa faculdade de pensar que temos em comum, justamente por ser abstrata, é capaz de qualquer barbárie. Por exemplo, uma burocracia pode ser genocida na mais perfeita racionalidade.

Em 1981, Jürgen Habermas publicou sua teoria do agir comunicativo. Seríamos humanos porque a razão nos permite dialogar, mesmo no dissenso, sem chegarmos a conclusão alguma. Talvez. Mas li Habermas nos anos 1990, em plena guerra da Bósnia. E continuo cético também quanto à capacidade de a gente se comunicar.

Além disso tudo, nas últimas décadas, a psicologia experimental descobriu dezenas de vieses pelos quais nossa razão se envereda e erra, sobretudo quando tentamos pensar junto com outros.

Para o que serve então a razão, se ela não nos levou a nenhum consenso viável? E, se o que temos em comum for a razão, o que podemos esperar para nossa convivência?

Em 1935, Edmund Husserl, escreveu "A Crise das Ciências Europeias"¦", sua última obra, bastante impenetrável, que tento ler pela terceira vez. Para resolver o impasse da razão como faculdade abstrata, Husserl indica que temos, sim, algo em comum, é o "lebenswelt", o mundo da vida –que não é apenas o mundo objetivo, opaco e besta, mas o mundo no qual vivemos, a cada dia. De uma certa forma, é o mundo da banalidade, onde encontramos os outros –certamente mais do que nas discussões sobre os princípios.

Em "Para Ler Sloterdijk" (ed. Viavérita), Paulo Ghiraldelli lembra bem que o cotidiano, a banalidade e o capricho talvez sejam mais importantes do que os grandes princípios na construção do humano de hoje.

Enfim, se fosse professor, usaria a propaganda da Heineken como introdução à história da filosofia moderna. Por exemplo, o agir comunicativo de Habermas seria se os casais sentassem para discutir antes de terem construído a bancada: não daria em nada. E há uma esperança. Sem ironia: o segredo consiste em construir uma bancada com seu vizinho e conversar só depois.

2017, um ano à espera de quase nada - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 04/05

A GUERRA ACABOU, mas não há notícia do começo da reconstrução econômica. Apenas esperanças vagas, sujeitas a desilusões feias, de que o crescimento vá um tico além de 0,5% neste ano.

Melhoras adicionais dependem de imponderáveis extremos, como uma reação exagerada, extraordinária e positiva à baixa dos juros, ou de sintomas dúbios, como inflação em queda para 3%, que pode ser também sinal de hipotermia econômica.

Com crescimento de 0,5%, empobreceremos pelo quarto ano. O tamanho da economia, do PIB, aumentaria menos que o da população, ora em torno de 0,8%.

Assim, é muito improvável que o desemprego pare de crescer até o terceiro trimestre; que o povo sinta diferença na vida antes do Natal.

Os números mais importantes do primeiro trimestre estão na mão; o PIB do IBGE sai em 1° de junho. Há previsões disparatadas do que aconteceu no início do ano, prejudicadas ainda por revisões de estatísticas oficiais. Mas o PIB deixou de encolher, trimestre a trimestre, primeiro resultado positivo desde o fim de 2014.

No geral, não houve surpresa feliz. Alguns resultados melhores e inesperados devem apenas ter compensado lerdezas em outras partes da economia.

A queda abrupta da inflação foi surpresa, ao menos para a centena de economistas que manda previsões para o BC (compiladas no boletim Focus). O dinheirinho do FGTS também, assim como a calmaria na finança global. Não adiantou muito.

Os economistas do Bradesco estimam que o PIB tenha crescido 0,7% no 1º trimestre. Os do Itaú, 1,4%. Por que tratar de previsões de bancões?

Além das estatísticas públicas, essas instituições financeiras dispõem de dados que obtêm no seu trabalho de bancos enormes, com rede extensa de serviços e informações pelo Brasil. Em tese, podem calibrar suas estimativas com temperos da realidade cotidiana dos negócios.

Em tese. As diferenças são brutais. Para o ano, o Bradesco prevê alta de 0,3% do PIB. O Itaú, 1%.

No instituto federal de pesquisa econômica, o Ipea, prevê-se avanço de 0,7%. Na mediana dos economistas do Focus, 0,46%. No Banco Central, 0,5%.

Autoridades econômicas do governo dizem que é isso mesmo, que a vaca apenas fica à beira do brejo onde atolou em 2015 e 2016, "retomada bem gradual".

Todo o mundo condiciona tais projeções à aprovação da reforma da Previdência. Caso contrário, o caldo pode entornar vermelho. O resultado pode ser pior que essa quase nulidade de crescimento.

Previsões de PIB com mais de seis meses de antecedência costumam ser bem furadas. Mas por ora não há à vista sinal de impulso extra, de choque positivo que possa acordar de vez esse Frankenstein catatônico, a economia brasileira.

O investimento do governo diminuirá; concessões para empresas privadas mal haverá. Os bancos não parecem dispostos a se mover antes de metade do ano. O endividamento de empresas e famílias cai, mas a um ritmo ainda muito insuficiente para reduzir dívidas a um nível compatível com despesas em alta relevante.

A massa de salários parou de cair, mas não há indício de que suba a ponto de alterar previsões de consumo das famílias. De exportações não deve vir melhoria adicional.

Resta apenas o imponderável.

Melhor a reforma do que o colapso - CARLOS ALBERTO SARDENBERG

O GLOBO - 04/05

Considerando que no mundo todo, até na Grécia, a idade mínima já é de 65 anos, não se pode dizer que a regra brasileira é dura



A crise da Grécia estourou em 2009. Causas conhecidas: farra geral com o dinheiro público, gastos reais com o funcionalismo dobrando em menos de dez anos, aposentadorias entre as mais generosas e precoces da Europa, serviços públicos precários e economia travada por várias restrições ao investimento privado, incluindo uma legislação trabalhista que encarecia excessivamente o custo de produção. Com uma agravante: descobriu-se naquele ano que os governos gregos há anos maquiavam e escondiam os números das contas públicas.

Em resumo: durante os anos de bonança global do início dos anos 2000, a Grécia recebeu forte ajuda econômica da União Europeia, contou com notável expansão do turismo, tudo resultando em algum crescimento e ganhos de arrecadação. Quando veio a crise global, a casa caiu. Os gregos estavam gastando um dinheiro que, de fato, não tinham. Quando as receitas privadas e públicas desabaram, o buraco apareceu.

A dívida verdadeira passava dos 100% do PIB e, ao final de 2009, estava claro que o governo não conseguiria pagar seus compromissos com instituições internacionais e bancos, locais e estrangeiros. Única saída: apelar para a União Europeia e FMI.

Seguiu-se um período tumultuado, pois os pacotes de ajuda exigiam as tradicionais medidas de ajuste das contas públicas — corte de gastos, reforma da Previdência, privatizações, corte de salários e benefícios do funcionalismo — todas dependendo de aprovação no Parlamento.

Foi assim: governos acertavam acordos com a UE e FMI, que não passavam no Parlamento. Caía o primeiro-ministro, nova formação de governo e assim foi.

Sem programa e acabando o dinheiro, o ajuste começou a ser feito da pior maneira: atrasos e até suspensão de aposentadorias e salários, colapso de serviços públicos e, finalmente, fechamento dos bancos, permitindo-se apenas pequenos saques nos caixas automáticos.

Para encurtar a história: nessa confusão toda, a esquerda chegou ao governo, com o primeiro-ministro Alex Tsipras fazendo campanha contra os pacotes, contra a UE, o FMI, os bancos, capitalismo, o diabo.

Para fazer o quê? A única coisa que restava para evitar o caos: assinou acordos com os credores em troca de pacotes de ajuste. Claro que a implementação foi difícil, acordos foram descumpridos e renegociados, mas a coisa andou.

Fizeram algumas privatizações, aplicaram sucessivos cortes de salários do funcionalismo, eliminaram várias vantagens. E sucessivas reformas da Previdência, cortando benefícios, elevando tempo de contribuição e a idade mínima — para 65 anos, claro.

A situação se estabilizou, mas o problema não terminou. Ainda agora, o governo grego está negociando novos empréstimos — em troca de novos ajustes.

Por exemplo: UE e FMI querem que o governo economize com aposentadorias e pensões um valor equivalente a 1% do PIB ao ano.

No Brasil, a proposta de reforma da Previdência apresentada pelo governo previa a economia de R$ 800 bilhões em dez anos, ou 80 bi/ano, em valores constantes. O PIB brasileiro foi de R$ 6,3 trilhões no ano passado, e 1% disso daria R$ 63 bilhões.

Portanto, a proposta original do ministro Henrique Meirelles previa economia maior do que a exigida dos gregos hoje. Mas não se pode esquecer que os gregos estão já na quarta reforma.

Além disso, o relator da proposta, deputado Arthur Maia, “amenizou” o projeto. Assim, a economia prevista no texto que começou a ser debatido ontem na Câmara caiu para R$ 480 bilhões — ou R$ 48 bilhões/ano, ou 0,75% do PIB do ano passado. Portanto, um esforço menor do que o negociado na quarta reforma grega.

Tudo isso para dizer três coisas. A primeira: o déficit nas contas públicas pode ser escondido, amenizado com aumentos de impostos e dinheiro tomado emprestado — como se fez no Brasil — mas um dia o desastre aparece na forma de uma dívida insustentável. Desastre é o governo deixar de pagar contas, salários e aposentarias.

A segunda coisa: a reforma previdenciária em debate aqui não é draconiana, nem excessivamente dura. Por exemplo: fixa a idade mínima de aposentadoria em 65 anos para homens, mas com as regras de transição partindo de 55 anos e essa idade mínima aumentando um ano a cada dois anos, só se converge para os 65 anos em 2038 (e 2036 para 62 anos das mulheres).

Considerando que no mundo todo, até na Grécia, a idade mínima já é de 65 anos, não se pode dizer que a regra brasileira é dura.

E isso ocorre porque a situação das contas públicas se deteriorou muito mas ainda não chegou à beira do colapso ou do calote. Assim, é possível fazer uma reforma mais arrumada. Isso feito, o país dá o sinal de que está no rumo do ajuste. Sem a reforma, sem esse sinal, a hipótese do colapso torna-se dominante e as consequências danosas aparecem antes.

O que nos leva à terceira coisa a dizer: “amenizar” a reforma hoje significa contratar uma nova reforma em alguns anos.

Carlos Alberto Sardenberg é jornalista

Disputa de espaço - MERVAL PEREIRA

O Globo 04/05

Plenário poderá decidir sobre duração da preventiva. A decisão do relator da Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Edson Fachin, de encaminhar para o plenário a análise sobre o recurso do habeas corpus que negou ao ex-ministro Antonio Palocci é uma resposta regimental à maioria que se formou na Segunda Turma.

Os ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, de tendências ideológicas distintas, mas unidos pelo interesse comum de reduzir o poder dos procuradores de Curitiba e do próprio juiz Sergio Moro, haviam estabelecido uma maioria sólida no entendimento de que as prisões preventivas da Lava-Jato estavam “alongadas” demais.

Mesmo que no caso do ex-ministro José Dirceu esse entendimento que o beneficiou com a liberdade seja uma interpretação também “expandida” da defesa dos direitos civis, há um debate necessário sobre a duração da prisão preventiva que agora o plenário do Supremo terá que enfrentar.

Pelo regimento interno do STF, o relator pode “afetar” ao plenário qualquer caso em que veja necessidade de fixação de parâmetros para uniformização do entendimento.

O falecido ministro Teori Zavascki, quando relator da Lava-Jato no STF, levou ao plenário a decisão sobre o habeas corpus de Eduardo Cunha, que foi negado por 8 votos a 1. Recentemente, o ministro Luís Roberto Barroso levou para o plenário a restrição do foro privilegiado dos políticos, que está na pauta do dia 31 deste mês.

Estava claramente estabelecido um entendimento majoritário na Segunda Turma, que soltou nos últimos dias três presos da Lava-Jato. Mas os casos anteriores, como o do ex-dirigente do PP João Claudio Genu, não tinham a dimensão da prisão preventiva de José Dirceu, que, por suas próprias palavras, continuava sendo um militante político dentro da cadeia.

Condenado a 32 anos de prisão na Lava-Jato, depois de ter sido também condenado e anistiado no mensalão, aguardava a decisão do TRF-4 sobre seu recurso. Ele claramente detém poder político para interferir nas investigações e disposição para atuar contra a Lava-Jato. Prova disso é uma carta de 14 páginas que o jornal “O Estado de S. Paulo” divulgou ontem.

Nela, Dirceu compara os delatores que o acusam a “cachorros da ditadura”, defende uma virada à esquerda do PT, critica o Ministério Público Federal, a Polícia Federal e a ação do juiz Sergio Moro. Qualifica como golpistas o governo Temer e a mídia.

E, diante do risco de o expresidente Luiz Inácio Lula da Silva não ser candidato em 2018, em razão dos processos em que é réu na Operação Lava-Jato, o petista escreveu: “Darão outro golpe, condenarão e prenderão Lula? Serão capazes dessa violência e ilegalidade? Veremos”.

O juiz Sergio Moro colocou-lhe tornozeleira eletrônica, o proibiu de deixar o País, de manter contato com outros investigados da Lava-Jato e de sair da cidade em que ficará em prisão domiciliar. A repercussão negativa da libertação de José Dirceu encheu as caixas de mensagens dos ministros do Supremo, e a discussão no plenário tem outro fator importante: ela é transmitida pela televisão ao vivo.

O ex-ministro Palocci já havia contratado um advogado especializado em delações premiadas para negociar com o Ministério Público um acordo, mas ontem ele o dispensou, o que indica que aguardaria a decisão da Segunda Turma sobre o seu caso, na esperança de ficar em liberdade. Com a transferência da análise de seu caso para o plenário do STF, sem data marcada, Palocci continua na prisão e vê ampliada a chance de não ser solto tão cedo.

Mesmo solto, porém, a situação dele e de outros condenados na Operação Lava-Jato não se modifica, pois o que a delação premiada pode fazer é reduzir a pena que já foi proferida. Sem delação, Palocci e Renato Duque, outro que negocia com o Ministério Público, ficarão presos por muitos e muitos anos.

A única maneira de haver alteração de comportamento dos condenados é a mudança da decisão do Supremo de permitir a prisão em caso de condenação em segunda instância. Se houvesse a possibilidade, que não é previsível, de ficar solto até que a série de recursos se esgotasse até o trânsito em julgado, provavelmente a delação premiada não seria um atrativo.

Foi só depois dessa decisão histórica do STF que o empreiteiro Marcelo Odebrecht decidiu fazer a delação premiada. Portanto a guerra entre a Segunda Turma e Curitiba pode ser neutralizada pelo plenário do Supremo restabelecendo parâmetros aceitáveis pela sociedade para as prisões preventivas, sem prejudicar a Operação Lava-Jato nem colocar em perigo os direitos individuais.

Supremo também é responsável pela Lava-Jato - EDITORIAL O GLOBO

O Globo - 04/05


O conjunto de habeas corpus concedidos pela Corte, incluindo um a Dirceu, atinge em cheio parte da estratégia da operação, inspirada na italiana Mãos Limpas


Mais ameaçadora para a Lava-Jato do que tudo será alguma mudança radical no Supremo com relação ao trabalho da força-tarefa de Curitiba. Daí os temores que surgiram depois que a Segunda Turma da Corte, onde tramitam os inquéritos abertos a partir da operação, concedeu alguns habeas corpus, beneficiando, para começar, o pecuarista amigo do expresidente José Carlos Bumlai; o ex-tesoureiro do PP João Cláudio Genu; Eike Batista e, por último, José Dirceu.

É atingido em cheio um dos pilares do modelo de operação da Lava-Jato, inspirado nas Mão Limpas italianas, que é a prisão cautelar. Legal, diga-se. Sem ela, ficam quase intransponíveis as resistências à delação premiada. Por isso, noticiava-se ontem à tarde que um dos mais importantes chefes petistas, Antonio Palocci, preso em Curitiba, recuaria na decisão de negociar o testemunho.

Não se nega a fundamentação jurídica que levou ao placar de três a dois pela libertação de Dirceu, na Segunda Turma — Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Ricardo Lewandovski, contra Celso de Mello e o relator Edson Fachin. É preciso mesmo levar em conta a elasticidade da prisão preventiva, mas também o risco de que Dirceu, por exemplo, já condenado em primeira instância, possa, em liberdade, dificultar o andamento dos trabalhos em Curitiba. Por isso, Fachin e o experiente Celso de Mello, decano da Corte, foram contra a concessão do habeas corpus. E com base, também, no conjunto da obra do líder petista, ministro de Lula, e em “continuidade delitiva” desde o mensalão.

Considere-se, ainda, o açodamento do Ministério Público em apresentação de denúncias, visível no encaminhamento de nova acusação a Dirceu, às vésperas do desfecho já esperado do julgamento da Segunda Turma, iniciativa tachada de “juvenil” por Gilmar Mendes. Que já havia dito que haveria um “encontro marcado” na Corte com os prazos elásticos das prisões feitas por Moro, sem julgamento em segunda instância.

Por seu lado, biografias de ministros do STF servem para todo tipo de especulação em redes sociais. Mas isso não importa. Também é compreensível, e necessário, o uso de contrapesos na execução judicial, para que os tribunais não sejam de exceção.

Porém, como responsável último pela Lava-Jato, assim como de qualquer processo que lhe chegue, a Corte precisa ter consciência do momento crítico em que se encontra a operação, à espera de acordos de delações premiadas que podem fazer avançar bastante as investigações sobre a ação do esquema lulopetista.

Não há alternativa melhor do que a Lava-Jato e tribunais continuarem a trabalhar. O próprio ministro Lewandowski aconselha a que o Tribunal Federal de Recursos de Porto Alegre, ao qual Moro está ligado, julgue logo recurso de Dirceu à primeira condenação. Decide-se assim se ele é culpado ou inocente.

A real ameaça à Lava Jato - EDITORIAL ESTADÃO

ESTADÃO 04/05

A Lava Jato corre riscos, mas não os que denunciam seus integrantes. A ameaça está no comportamento imperioso de procuradores e na absurda demora do STF para julgar


Assim que a 2.ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), por 3 votos a 2, concedeu habeas corpus em favor do ex-ministro José Dirceu, condenado em primeira instância no âmbito da Lava Jato e preso preventivamente, os procuradores da operação anunciaram, mais uma vez, que todo o esforço da luta contra a corrupção estava sob risco.

É compreensível que os integrantes da Lava Jato procurem defender seu trabalho daquilo que enxergam como ameaça, mas a operação não é tão frágil quanto fazem parecer os procuradores. “Entendo que de modo algum a Operação Lava Jato está comprometida”, comentou o ministro Celso de Mello, um dos votos contrários à concessão do habeas corpus. Para o decano da Corte, o que se espera da Lava Jato é que aprofunde as investigações, “uma vez respeitadas as garantias que a Constituição e as leis da República estabelecem”.

O importante a salientar no caso de Dirceu e de dois outros condenados em primeira instância que foram soltos pelo Supremo – o pecuarista José Carlos Bumlai e o ex-tesoureiro do PP João Cláudio Genu – é que, conforme entendimento do STF, há excesso nas prisões preventivas na Lava Jato, que funcionariam como execução antecipada de pena.

No caso de Dirceu, o Ministério Público Federal considerou que se está diante de um condenado com “notória periculosidade”, demonstrada pela “habitualidade criminosa”, que continuou mesmo depois da condenação no mensalão. O Supremo, porém, fez prevalecer a presunção da inocência até a apreciação de apelação de sentença condenatória.

Ademais, ao suporem que Dirceu pode cometer novos crimes ou comprometer as investigações se ficar solto, os procuradores confessam que, desde agosto de 2015, quando o petista foi preso, não foram capazes de avançar em seu trabalho, que teria continuado vulnerável à intervenção de Dirceu. Tanto é assim que a Lava Jato entrou com nova denúncia contra José Dirceu no mesmo dia em que o Supremo analisava o pedido de habeas corpus – uma “brincadeira juvenil”, como classificou o ministro Gilmar Mendes.

A inquietação dos procuradores da Lava Jato com a soltura de Dirceu resultaria da percepção de que essa decisão seria um indicativo de que outros presos importantes poderiam ser libertados. Se existe, tal preocupação revela que, ao contrário do que sempre sustentaram, os procuradores apostam nas prisões para obter dos condenados as informações que buscam, por meio de delação premiada. Os membros da força-tarefa dariam a entender, portanto, que, se não conseguirem manter atrás das grades os figurões do petrolão, não induzirão os potenciais delatores a dizerem o que sabem e, por isso, será interrompido o fluxo de informações que abastece a operação.

Ora, como ficou claro até aqui, os delatores só decidiram falar quando ficou evidente que passariam muito tempo na prisão se não colaborassem. Ou seja, não era a prisão preventiva que os amedrontava, e sim a possibilidade de ficar muitos anos – talvez a vida inteira – na cadeia. Portanto, sob esse aspecto, pouco importa se Dirceu e outros personagens estão presos, e sim a qualidade da investigação em si. Quanto mais indícios forem reunidos, maior será a colaboração dos que têm algo a contar.

A Lava Jato, porém, há muito tempo parece ter deixado de ser uma investigação policial. A operação parece prisioneira da presunção de que tem um papel a desempenhar no futuro da política e da Justiça no Brasil, razão pela qual qualquer ponderação que ponha em dúvida seus métodos e suas certezas será vista como manobra contra seu prosseguimento. O discurso messiânico de alguns de seus principais integrantes sugere que, para eles, todas as instituições do País estão apodrecidas, com exceção do Ministério Público. Em sua ânsia de sanear o País, a Lava Jato comete erros – e um deles deu um gostinho de vitória a José Dirceu, um dos personagens mais nefastos da história brasileira.

A Lava Jato corre riscos, sim, mas não os que são denunciados por seus integrantes. A maior ameaça está no comportamento imperioso de alguns procuradores e na absurda demora do Supremo para julgar os casos que lhe competem. É isso – e não a revogação da prisão de alguns réus, de acordo com o que manda a lei – que contribui para desacreditar a Justiça.