segunda-feira, maio 01, 2017

A ocupação evita pensar em bobagem; é do cansaço que nasce o caráter - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 01/05

O dia do trabalho é hoje. Mas não vou falar dessas chatices de sindicato, que em muitos casos é coisa de bandido com metafísica social. Sou daqueles que acreditam que, sim, o trabalho molda o caráter, mesmo que seja aquele pequeno trabalho quase invisível do dia a dia.

Uma das razões que considero causa de muita da patifaria que circula entre os jovens e seus pais com mais condição financeira é o fato de não terem de arrumar o quarto.

Estou certo de que uma das razões de a Europa ser tão civilizada é o fato de as pessoas lá não terem acesso a empregada doméstica. O caráter é alguma coisa que brota no silêncio de quem lava louça todo dia. O
caráter não brota numa assembleia de estudantes ou numa manifestação contra a desigualdade social.

Pelo contrário, atividades assim mais deturpam o caráter do que o moldam, porque são atividades em que você só demanda e não dá nada em troca.

Ter direitos não molda o caráter, cumprir deveres, sim. Um dos estragos do mundo contemporâneo é essa histeria por direitos em toda parte.

Todo mundo que vive ou viveu na Europa sabe do que estou falando. E não quero dizer que a Europa seja uma perfeição. Não faço parte do clube de pessoas que entram em orgasmo com a Escandinávia e sua monotonia civilizada. Sinto-me melhor em Portugal e na Espanha e seu caos latino.

Um dia a dia europeu. Você acorda. Se você não deu um jeito na casa na noite anterior, sala, quarto, banheiro e cozinha estarão um lixo. Se tiver um filho pequeno, terá que vesti-lo e alimentá-lo antes da escola. No frio, as camadas de roupa são muitas. Mamadeira pode ser uma constante. Doenças infantis podem criar um problema. Caso tenha marido ou mulher, claro, vocês dividirão esse imprevisto. Quem falta hoje no trabalho? Caso seja um "single parent", não terá escolha, faltará no trabalho.

Claro, você terá de comer, ou o fará num café próximo, mas custa mais caro, e todo dia essa brincadeira poderá sair bem caro. Levar a criança à escola. Buscar ao final do dia. Chegar em casa, dar banho no filho (se forem dois filhos...), preparar comida, colocá-lo para dormir.

Você também tem de tomar banho, preparar a comida, arrumar a casa, limpar a cozinha. Durante o dia, providenciar comida, mantimentos, produtos de limpeza. Roupa a ser lavada. Jogar o lixo fora. Finais de semana?

Lazer, comer, beber. Se quebrar algo na casa, resolver esse problema. Caso compre algo, se quiser que a coisa saia baratinha, terá de levar no metrô sozinho ou sozinha. Carregar, montar. Caso tenha filhos, fazer isso tudo enquanto toma conta do filho.

Não é de se estranhar que os europeus optem cada vez mais por ter menos filhos ou nenhum.

Um traço da vida europeia é que tudo o que você precisar fazer ao longo do dia para manter sua vida funcionando você terá de fazê-lo sozinho, não terá ninguém pra ajudá-lo.

Claro que a existência do Estado de bem-estar social e de razoáveis serviços públicos tornam essa carga cotidiana menos terrível.

Mas nada garante que, com a provável derrocada do Estado de bem-estar social na Europa, apareçam empregadas domésticas de um dia para o outro.

Talvez sírias desesperadas por uma vida melhor comecem a trabalhar com serviços domésticos, ainda assim, as leis trabalhistas europeias tornam o emprego muito caro e proibitivo para um mortal médio.

De qualquer forma, esse cotidiano molda o caráter, sem dúvida.

Sei que está fora de moda dizer isso. Na moda está é ser ressentido, mimado e cobrar direitos de todo mundo.

A ideia de que o trabalho é essencial na formação mínima do caráter é antiga. Na filosofia mais moderna, o inglês John Locke (1632-1704) é um dos primeiros a identificar o trabalho (nesse caso, o trabalho também mediado pelo ganho de dinheiro) como instância moral.

Entre os monges de todas as religiões conhecidas, o trabalho físico sempre foi visto como forma de equilibrar o espírito e a vida moral.

A ocupação e o cansaço evitam que você pense em bobagem e sonhe com o impossível. É nesse silêncio do cansaço que nasce o caráter. No embate com o inevitável.

A lenda da caravela fanstasma - MENTOR NETO

REVISTA ISTO É

Era uma vez um navio muito grande.
Como uma caravela moderna, partiu com destino a um novo mundo.
Mais justo, mais feliz, mais próspero.
Pelo menos era assim que venderam as milhares de passagens.
Só aquele navio, dizia a propaganda, sabia o caminho.
O comandante conhecia os perigos dos mares por onde iriam navegar, mas alegava que enfrentariam apenas marolinhas.
O primeiro terço da viagem foi relativamente tranquilo, apesar de alguns passageiros alertarem sobre tripulantes que não estavam imbuídos do mesmo espírito.
Alegavam que alguns oficiais estavam roubando comida da cozinha.
O comandante ignorou as acusações.
Eram, afinal, seus mais próximos comandados.
O segundo terço da viagem foi bem mais complicado.
As marolas se transformaram em ondas gigantescas e os passageiros mais atentos descobriram que o navio não era tão bem construído como anunciaram nos cartazes das agências de turismo.
Um ou outro passageiro se jogou ao mar, em desespero.
Mas para o comandante o objetivo era chegar ao destino, não importando o estado do navio.
No último terço da viagem, a coisa desandou de uma vez.
O comando passou a ser de uma suboficial.
Inexperiente, arrogante, não ouvia ninguém.
Errou tudo.
Rota, velocidade, combustível, liderança.
O caos se instaurou no navio.
Parte dos passageiros pedia a cabeça da comandante, outra parte achava que era assim, que aquele caos era o preço para chegar a um destino tão especial.
A cozinha era assaltada diariamente pelos oficiais.
O combustível foi quase todo roubado e evidentemente não sobraria o suficiente para chegarem onde queriam.
O navio fazia mais água do que uma jangada.
Centenas de passageiros jogavam botes ao mar.
Curiosamente a tripulação ignorava os problemas.
Para acalmar os passageiros a comandante declarava que tudo estava sob controle.
Mas ninguém entendia o que ela dizia.
O tempo fechado, as tempestades, a água invadindo a sala de máquinas.
Nada parecia assustar a intrépida tripulação.
Ou não faziam ideia de como um navio flutua, já havia quem desconfiasse.
A comida ficou escassa.
A energia foi cortada.
A água também estava racionada.
Centenas de passageiros foram jogados ao mar para que o que sobrou dos mantimentos fosse suficiente para quem restava a bordo.
Afinal, o que importava era chegar ao destino.
Alguém alertou que estavam indo na direção oposta.
Mas a comandante não tinha claro como usar a bússola.
O tempo passou e boa parte dos passageiros tentou se salvar.
Quando tudo estava definitivamente perdido, o navio lentamente afundando, apenas a tripulação e um punhado de passageiros insistia em continuar a bordo gritando:
– Motim! Motim! Motim!
O navio desapareceu sem deixar vestígios.
Ninguém sabe dizer como, onde ou quando.
Apenas sua lenda sobreviveu.
Até hoje, se você perguntar a algum marinheiro experiente, é bem possível que ele tenha visto o navio fantasma em suas viagens.
E quando você quiser mais detalhes, provavelmente ele dirá que viu o navio afundando, numa noite nublada, com jornalistas, blogueiros e artistas se atirando do convés.

Os últimos ratos - RODRIGO CONSTANTINO

REVISTA ISTO É

A pós as delações que colocam Lula e o PT como os grandes responsáveis pelo gigantesco esquema de corrupção que assolou o Brasil, vemos os últimos ratos abandonando o navio em pleno naufrágio. É verdade que alguns ainda insistem, por lealdade. Mas diversos outros já ensaiam uma “autocrítica”, e se afastam malandramente do terrível legado do partido. Não há nada novo aqui. Ao contrário: o fenômeno se repete com uma precisão de relógio suíço. Embusteiros e crentes fanáticos defendem algum populismo qualquer de esquerda, pregam medidas sensacionalistas que delegam ao Estado o poder para curar todos os males do planeta, e depois que a coisa toda fracassa – pois o fracasso é inevitável – eles acusam os líderes daquele experimento pela desgraça. E seguem com a defesa do socialismo.

Os oportunistas agem assim para circularem sempre em torno do poder, feito moscas no mel, enquanto os crentes fanáticos simplesmente não são capazes de enxergar a podridão da própria seita ideológica, necessitando de bodes expiatórios para manter a ideologia pura. Por isso que o socialismo já acumula mais de cem milhões de mortes no currículo, tendo deixado um rastro enorme de miséria, escravidão e terror, mas ainda conta com inúmeros adeptos. Eis a tática que eles usam: “deturparam o marxismo”. Lenin, Stalin, Pol-Pot, Mao, Fidel Castro e mais recentemente Chávez e Maduro, entre tantos outros, desviaram-se do curso socialista, corromperam-se no caminho, e por isso não deu certo. Na versão tupiniquim, Lula e o PT tentaram implantar o modelo socialista, inclusive repetindo diversas vezes que a Venezuela era uma inspiração. Deu nisso.

E agora, diante dos milhões de desempregados, da inflação que destruiu a renda dos que continuaram com trabalho, e dos infindáveis escândalos de corrupção, não pensem que essa turma irá rever seus conceitos, questionar se o modelo em si é ruim, passar a defender menos Estado e mais privatizações e livre mercado. Nada disso!

Vão fazer exatamente o que já estão fazendo: culpar Lula e o PT para preservar o socialismo, o modelo intervencionista, a “justiça social” liderada pelo Estado. E assim podem continuar pregando os mesmos meios, ignorando que levam inexoravelmente a esse fim trágico, em todo canto do planeta. Sai de cena o PT, carregando consigo a culpa sozinho, para que o PSOL ou a Rede possam assumir o papel de vender ilusões como se fossem fresquinhas. A “autocrítica” é um engodo, claro, pois não investiga as verdadeiras causas do problema, não checa as premissas da própria ideologia furada. “Insanidade”, disse Einstein, “é fazer tudo igual e esperar resultados diferentes”. Nossa esquerda é insana, e os ratos já se preparam para embarcar no novo navio dos loucos.

“Insanidade”, disse Einstein, “é fazer tudo igual e esperar resultados diferentes”. Nossa esquerda é insana e já se prepara para embarcar no novo navio dos loucos

Liberdade para os heróis do petrolão - GUILHERME FIUZA

REVISTA ÉPOCA

Depois da ditadura vem a abertura (da porteira). caminhando e cantando e seguindo o cifrão



Os dias eram assim: José Carlos Bumlai, o laranja da revolução, o amigo fiel do chefe da gangue progressista e solidária que arrancou as calças do povo, é solto pelo STF. O próximo da lista da alforria é José Dirceu, identificado como maestro do mensalão e do petrolão, ou seja, um guerreiro do povo brasileiro pelo direito sagrado de garfar os cofres públicos sem perder a ternura. O ideal é que a Justiça dê liberdade logo a todos esses heróis da história recente, para que eles possam começar tudo outra vez. Caminhando e cantando e seguindo o cifrão.

Vamos parar de perseguir esses revolucionários estoicos. Ligue a TV e veja como eles eram lindos. E românticos. O fato de terem chegado ao poder e acabado todos em cana por ladroagem é um detalhe. Ninguém quer ficar lembrando notícia ruim. Se Hollywood pode cultivar Hugo Chávez como salvador do Terceiro Mundo (a Venezuela sangrenta e arrasada não coube no roteiro), por que não podemos continuar envernizando os anos de chumbo? A revolução de Jim Jones também foi linda. Por que ficar lembrando aquele incidente no final, com a morte de uns 900 seguidores por suicídio e assassinato? Mania de botar defeito em tudo.

A libertação de Bumlai é um episódio emocionante, se você imaginar quanto os amigos dele lutaram por liberdade nos anos 1960. Quem disse que utopia não vira realidade? Eis aí: o homem apontado como facilitador dos sonhos pecuniários dos pobres milionários do PT está livre. Valeu a pena sonhar.

Agora o Supremo Tribunal Federal está na dúvida se solta José Dirceu também. Depois da ditadura vem a abertura (da porteira). Eles até já se compararam a Nelson Mandela – ou seja, estão com a maquiagem em dia. Basta dar uma retocada quando o carcereiro chegar e correr para os braços do povo como ex-presos políticos. O Brasil adora esse tipo de herói. A cama de Lula está feita.

Intervalo comercial: a Advocacia-Geral da União está cobrando o ressarcimento de R$ 40 bilhões dos condenados na Lava Jato. Observando o sistema montado pelos governos Lula e Dilma para desfalcar o Erário, e notando a exuberância das cifras em cada uma das incontáveis transações reveladas, você já tinha feito suas contas: nossos doces guerreiros do povo estão bilionários. E deve ter dinheiro escondido até em casinha de cachorro.

Voltando à narrativa da gloriosa revolução socialista contra a direita malvada, a conta fecha de forma comovente. Faça a estimativa do custo de todos os advogados contratados a peso de ouro por nosso batalhão de heróis enrolados com a polícia por anos a fio e conclua sem medo de errar: estão podres de ricos. E é com esses advogados, com essa fortuna e com a boa vontade que esse charme todo suscita nos bons amigos do Judiciário que eles estão articulando a abertura (das celas).

Talvez você se lembre que Dirceu, em pleno julgamento como réu do mensalão, continuava faturando com o petrolão – conforme constatou a Lava Jato. Talvez você tenha registrado que já em 2014, com a força-tarefa de Curitiba a todo vapor desvendando o escândalo, as engrenagens do esquema continuavam em marcha, como se sabe agora, inclusive para abastecer a reeleição de Dilma, a presidenta mulher revolucionária do bem. Parece incrível, mas os dias eram assim.

Diante de uma quadrilha virtuosa como essa, que parece ter como característica especial a desinibição, é providencial que o STF comece a soltar os seus principais integrantes. Afinal, os fatos mostram que eles não vão fazer nada de mais, fora girar sua fortuna, reciclar os laços de amizade e voltar a irrigar seus negócios – que tiveram 13 anos de esplendor e ultimamente deram uma caída, prejudicados por fascistas invejosos.

Contratar pesquisas de opinião mostrando que Lula já é o próximo presidente e manifestos de intelectuais à la carte está pouco. É preciso que a Justiça tire os revolucionários do xadrez, para que Lula não tenha mais de ficar zanzando por aí de jatinho sem saber direito onde pode pousar. Chega de constrangimento.

Que a perseguição a esses homens de bem termine de vez e Lula possa chegar cheio de moral diante de Sergio Moro para dizer que não é nada dele. E depois comemorar com um churrasco no tríplex de Guarujá, que ninguém é de ferro.