terça-feira, outubro 31, 2017

Criminalidade e democracia - FERNÃO LARA MESQUITA

O Estado de S.Paulo - 31/10

Em todos os tempos e todos os lugares essa gente do poder voa quando o povo lhe dá asas.


O que leva o ser humano ao crime é uma questão controvertida, mas a da segurança pública é bem mais objetiva. Nós com 29,5, eles com 4,2 assassinatos por 100 mil habitantes, apesar de todas aquelas armas, as idas e vindas dos Estados Unidos no tratamento desse problema podem ter algum valor didático.

Na esteira da luta pelos direitos civis nos anos 50 e 60 a Suprema Corte, refletindo a “narrativa” política dominante na época, aprovou medidas para reforçar os direitos dos condenados. Sendo o crime “consequência da má distribuição de renda” e a política penal “enviesada por preconceitos de classe e raça”, era hora de o sistema se voltar precipuamente para a reabilitação das “vítimas da sociedade”.

A nova orientação resultou num declínio acentuado da população carcerária, mas a partir do meio da década as taxas de crimes violentos (incluem mais que assassinatos) começaram a subir. Foram de 200,2 por 100 mil em 1965 para 363,5 no fim da década e 487,8 por 100 mil em 1975.

O movimento pelos direitos das vítimas do crime decolou junto com o de libertação feminina, que denunciava as Cortes por culparem as vítimas nos crimes de estupro. Mas muito mais gente se sentiu embarcada nessa inversão. Surgiam associações por todos os lados exigindo o fim do prende e solta do Judiciário. Os “Pais de Crianças Assassinadas”, as “Mães Contra a Direção Alcoolizada”, a “Organização Nacional de Assistência às Vítimas do Crime” (NOVA)...

No mesmo 1975, Robert Martinson, do New York City College, publicou a primeira pesquisa nacional séria de resultados de programas de reabilitação. Eram praticamente nulos. Os fatos diziam que era impossível prever racionalmente a periculosidade futura de alguém pelo seu comportamento na prisão e que a reincidência era praticamente a norma para os criminosos que tinham tido penas encurtadas. Àquela altura, com todos os mecanismos de redução e de “penas alternativas” os condenados estavam cumprindo apenas 37% de suas sentenças na média nacional. O movimento focou, então, no conceito de “Veracidade das Sentenças”. Tanto para dar satisfação às vítimas quanto para desincentivar o crime, dizia-se, era necessário deter o prende e solta e o faz de conta do Judiciário e fazer com que as sentenças expressassem as penas que de fato seriam cumpridas.

Mas a execução foi mais difícil que a formulação da ideia. A discussão arrastava-se ainda quando em 1981, com Reagan presidente, os instrumentos de democracia semidireta, que andavam meio esquecidos, voltaram triunfalmente à cena com a revolta nacional contra impostos iniciada pela Proposition n.º 13 (dê um google que o caso é ótimo), uma lei de iniciativa popular contra um aumento abusivo do imposto sobre propriedade (IPTU) na Califórnia. Rapidamente o exemplo migrou para a área da segurança pública. Em 1982 os eleitores da Califórnia aprovaram, com a Proposition n.º 8, uma “Carta dos Direitos das Vítimas do Crime”. Ela começava por afirmar oficialmente que “a prisão serve para punir os criminosos”. Além de baixar a idade para tratar como adultos os criminosos juvenis violentos, ela estabelecia o conceito “Três Crimes e Você está Fora” (“Three Strikes and You’re Out”), dobrando a pena para o segundo e dando prisão perpétua a quem cometesse o terceiro. Na sequência, 21 Estados passaram leis populares impondo sentenças mínimas e critérios rígidos para a progressão de penas. “Comitês de sentença” independentes e instâncias de recurso contra reduções determinadas por juízes foram tentados. E a população carcerária começou a aumentar.

Com a “Epidemia do Crack”, que lá ocorreu nos anos 80, a situação tornou-se explosiva. Antigos hospitais, quartéis e depósitos foram transformados em presídios, às pressas. Estados como Michigan e Iowa passaram problemas tão graves que acabaram por criar mecanismos de “progressão de pena de emergência”, libertando prisioneiros escala de crimes acima toda vez que os níveis máximos de lotação dos presídios eram ultrapassados.

O movimento de refluxo teve início com a diferenciação entre traficantes e usuários e o estabelecimento de penas alternativas só para estes. Passo a passo, anos 80 afora, a nova tendência – “a segurança da sociedade vem em primeiro lugar e a conveniência do infrator deve estar subordinada a ela” – foi-se firmando com as penas de reclusão aumentando para crimes violentos e as alternativas se generalizando preferencialmente para crimes contra a propriedade.

Reconhecendo que o pêndulo tinha ido longe demais na volta do excesso de leniência, os californianos, em reformas sucessivas, também acabariam por revogar definitivamente a regra dos três crimes, em 1996. Mas com as experiências acumuladas o país chegou, em 1994, ao Violent Crime Control and Law Enforcement Act, assinado por Joe Biden, que recomendava 60 reformas incorporando o conceito de “Veracidade das Sentenças”, criando restrições mais bem definidas para a progressão de penas, institucionalizando os comitês de condicional para substituir a solitária discrição do juiz nessa tarefa, criando um fundo nacional para a construção de prisões e contratação de policiais, definindo crimes de ódio e dando outras providências.

As reformas nos Estados e nos municípios prosseguiram, então, a partir de um novo patamar mais claro e seguro para todos, pois o sentido do sistema de democracia semidireta é imitar a condição humana de mobilidade e ajuste permanente. O que ele tem de melhor é a força para trazer de volta à Terra as autoridades que o poder sem limites põe voando na estratosfera e obrigá-las a atacar os problemas que afligem a população pela vertente que lhes for indicada por ela. O resto acontece por ensaio e erro, como é adequado à nossa espécie, que, para além de estar sempre mais propensa ao erro do que ao acerto, vive num ambiente tão dinâmico que cada “solução” é sempre apenas o início do próximo problema.

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