segunda-feira, junho 13, 2016

A condição do gosto - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 13/06

Outro dia ouvi uma das maiores confissões de amor que as mulheres podem fazer aos homens. E isso anda raro em meio a tantas tensões que rasgam o mundo dos afetos nesse espaço do contemporâneo.

Imagine você ouvir duas mulheres inteligentes e lindas, uma loira e outra morena, falando para você, ao mesmo tempo, como "detestam" o fato de não conseguirem parar de gostar de homens. Ao lado do tema específico dessa "confissão de amor" ao sexo masculino, mas intrinsecamente ligada a ela, foi a afirmação de uma delas que só gente desavisada acredita que exista uma coisa chamada "opção sexual".

E aí uma das minhas interlocutoras fez uma afirmação muito importante para épocas de delírios de gênero como a nossa, como se identidade sexual fosse algo como escolher marca de desodorante: sexualidade é condição, não escolha.

E por que ela disse isso? Aí vem a confissão: qual mulher, se pudesse, escolheria gostar de um "traste" como o homem? Os adjetivos são conhecidos (alguns deles, não sem razão): egoísta, narcisista, mulherengo, mentiroso, dependente da mulher a vida inteira, e por aí vai...

Neste instante, me lembro de uma conversa com um Exu —cujos trechos inclusive narrei nesta coluna há alguns anos—, Seu Catatumba, que, como todo Exu, é um especialista em mulher. Quando perguntado pela causa de sua morte, ele respondeu: "Morri de mulher... marido traído".

Segundo nosso sábio, quando uma mulher chora diante de alguém que ela ama, ela pode sim estar feliz; quando ri, ela pode sim estar triste. "Linhas retas" não são o elemento natural numa mulher, seja no corpo, seja na alma. Ou seja, Descartes (1596-1650) aqui de nada serve, melhor Pascal (1623-1662): "O coração tem razões que a própria razão desconhece".

Aqui, retorno para as minha colegas de trabalho. Claro que eu estava diante de uma confissão de amor enlouquecido pelos homens. Uma alma superficial pode duvidar do que eu estou dizendo. Uma mulher, e sua natureza voltada ao detalhe e ao oblíquo, bem sabe que o que eu estou dizendo é a pura verdade.

Quanto mais elas, na sua beleza natural, "desciam o cacete" nos homens, na minha frente e de outro colega, mais ficava claro a "condição sexual" a qual uma delas fizera referência.

Acredito que a fala dessas duas mulheres sobre a "condição do gosto" deveria iluminar muito psicólogo e sociólogo por aí, que parecem estar investindo na pura e simples aniquilação dessa diferença sexual que move a espécie desde a mais distante ancestralidade. Por que tanto ódio ao sexo?

Dizer que se ama algo como "condição" e não como escolha é dizer numa palavra tudo que precisa ser dito "contra" o blablablá geral que tomou conta do debate sobre sexualidade nas últimas décadas. Reconhecer como condição algo que não é escolha é reconhecer a mais profunda natureza do desejo humano.

E de onde vem essa bobagem toda que nega a condição humana (sexual incluída)? Como sempre, de muitas causas, mas podemos citar duas, pelo menos. Ambas ligadas uma a outra, claro.

Seguramente, uma das causas, no plano ético e político, é esse homem "irreal", derivado dos delírios do filósofo inglês John Stuart Mill (1806-1873). Liberal e utilitarista, Stuart Mill imaginava um homem "livre" escolhendo a sua volta, com o mínimo de interferência possível do passado, dos preconceitos e dos limites à capacidade humana de fazer "escolhas racionais", conceito tão caro aos utilitaristas. Daí, com um pouco de esforço e imaginação, chegamos à ideia de que sexualidade se escolhe assim como quem escolhe a cor de uma calça.

Diretamente ligada a esta causa, uma mais econômica e comportamental, talvez causa da primeira citada acima, se pensarmos segundo o materialismo social de Marx, é a própria sociedade de consumo: todos somos consumidores que exercitamos nossa liberdade de escolha.

Pra deixar esse "bobo do consumo" feliz, dizemos pra ele que, na vida sexual e em outros tantos terrenos onde sofremos, nada é condição, mas sim tudo é escolha e construção social.

Posso ainda ouvir as risadas das duas lindas.


GOSTOSA


Duas ferrovias - J. R. GUZZO

REVISTA VEJA


Os viajantes que vão de Zurique, de outras cidades da Suíça e da maioria dos países da Europa para Milão e para o norte da Itália já estão rodando a até 250 quilômetros por hora na linha de trem que passa pelo novo túnel do Monte São Gotardo, a mais recente maravilha da engenharia mundial — com quase 60 quilômetros perfurados na rocha bruta, é o túnel mais longo do mundo, e sua construção tornou-se uma epopeia comparável à da travessia subterrânea do Canal da Mancha, entre Inglaterra e França. Enquanto isso, no Brasil, a última notícia que o público pagante teve em matéria de estrada de ferro foi o anúncio, dias atrás, de que o Tribunal de Contas da União proibiu qualquer entrega de dinheiro do Erário à "Ferrovia Transnordestina" apresentada desde o governo
do ex-presidente Lula como um monumento à redenção do Nordeste; seria também uma prova de que foi preciso um operário chegar à Presidência deste país para ensinar que grandes obras não podem ser feitas só no "Sudeste". A decisão foi tomada porque a Transnordestina assumiu a proporção de calamidade fora de controle em matéria de agressão ao Tesouro Nacional, incompetência técnica absoluta e desrespeito ao cidadão. O resumo real do que aconteceu aí é o seguinte: dez anos após anunciadas as obras, não existe ferrovia nenhuma. Em compensação, existe uma dívida de 35 bilhões de reais.

Sempre se pode dizer: "Não dá para comparar a Suíça com o Brasil". Não dá mesmo — não é realista, não é lógico e é inútil. A Suíça é uma coisa, o Brasil é outra, e não existe nenhuma previsão, pelo menos por enquanto, de que fiquem mais parecidos algum dia em termos de conduta por parte do poder público. Ainda assim, o caso das duas ferrovias oferece uma excelente oportunidade para pensar um pouco nessa coisa ruim chamada "governo". Tudo bem, ninguém está querendo por aqui que os governantes tenham um desempenho semelhante ao de lá; mas, francamente, também não há nenhuma obrigação de serem tão ruins desse jeito. A Transnordestina, lançada em 2006 para ligar os portos de Pecém, no Ceará, e Suape, em Pernambuco, além de abrir um novo acesso ao mar para o interior do Piauí, deveria ser entregue em 2010. Não foi. Já estamos em 2016 e nada — não há no momento nem sequer um palpite sobre a data de entrega. Descobriu-se que as obras foram iniciadas sem um projeto de engenharia coerente. Não existe nenhuma dificuldade geográfica especial na área (nada de túneis a 550 metros de altitude, por exemplo), mas dos 1700 quilômetros da estrada só há trilhos em 600, onde não passa trem algum. Sua função, no momento, é serem estragados pelo tempo ou furtados para a venda a peso do seu aço. O novo túnel do maciço de São Gotardo, aberto ao público dias atrás, foi entregue seis meses antes do prazo contratado e custou o que deveria custar — o equivalente a pouco mais de 10 bilhões de dólares. Por uma dessas coincidências da vida, a soma é praticamente igual aos 35 bilhões de reais de dívida que as empresas estatais responsáveis pela Transnordestina têm a apresentar como resultado de seus esforços até agora. Dá o que pensar. Quando a Suíça resolve fazer uma estrada de ferro, as pessoas passam a andar de trem; no Brasil, ficam devendo. É lindo, isso.

Também chama atenção, no caso, um fenômeno curioso, que provavelmente só acontece no Brasil: quanto mais a tecnologia avança no mundo desenvolvido, mais as obras públicas brasileiras demoram para ficar prontas. Numa época em que a ciência da engenharia é capaz de vencer os mais ingratos desafios da natureza, dentro dos prazos e dos orçamentos previstos, é como se o Brasil estivesse vivendo no tempo da régua de cálculo e do trator a gasolina; no ritmo de trabalho seguido pelos dois últimos governos, a Ponte Rio-Niterói ainda estaria em obras. Estradas como a Transnordestina, segundo apontou o TCU, apresentam "vícios de construção" e "erros primários" de técnica ferroviária. A transposição de águas do Rio São Francisco é uma coleção de ruínas. Usinas hidrelétricas geram energia inútil, porque não há linhas de transmissão — e por aí se vai. Para piorar, o governo que não faz é o mesmo governo que não deixa fazer, na sua paixão contra o resultado prático e no seu pânico diante de qualquer benefício público feito pela iniciativa privada. Nesse meio-tempo, o mundo continua a girar. A primeira ferrovia do São Gotardo é de 1882; por lá, já estão na terceira. Por aqui, a grande discussão é saber se os que não fizeram vão voltar ao governo para continuar não fazendo.


Onde o povo está - PAULO GUEDES

O GLOBO - 13/06

A implementação descentralizada das políticas públicas é uma exigência e também uma garantia de serviços mais eficientes



Por que nunca antes, em qualquer lugar do mundo, houve um programa de combate à inflação que durasse décadas? Por que estaríamos condenados à mais longa sequência de bilionários escândalos políticos da História? “Enormes somas passando pelas mãos do Estado”, diria Marx. “Impunidade”, diriam Barbosa e Moro. “Faltou a dimensão fiscal”, diria o Prêmio Nobel em Economia de 2011, Thomas Sargent. Estariam todos certos.

A ininterrupta escalada dos gastos públicos como porcentagem do PIB foi um problema estrutural herdado do antigo regime militar e agravado por sucessivos governos de uma obsoleta social-democracia, que lubrifica fisiológicas alianças com o descontrole de gastos. Foi essa falta de compromisso com o controle dos gastos públicos o calcanhar de aquiles de todos os nossos programas de estabilização. Levando sempre ao aumento dos juros e à elevação dos impostos na tentativa de frear a aceleração inflacionária, derrubou investimentos e nossa dinâmica de crescimento a longo prazo.

A corrupção na política e a armadilha do baixo crescimento na economia são as duas faces de um governo central hipertrofiado e disfuncional. A proposta de emenda constitucional para o controle dos gastos públicos federais é fundamental para escaparmos a essa armadilha. As degeneradas práticas políticas sob investigação da Lava-Jato estão também associadas à concentração de poder no Executivo federal, à hipertrofia da engrenagem estatal e à centralização administrativa.

São legítimas as ampliações de gastos de uma democracia emergente em saúde, educação e previdência. É meritória a democratização dos orçamentos públicos com programas de transferência de renda. Mas a implementação descentralizada das políticas públicas é uma exigência e também uma garantia de serviços mais eficientes. Controles locais, menos corrupção.

O povo vive nos estados e nos municípios, e não em Brasília. O dinheiro da saúde, da segurança, do saneamento e da educação precisa ir aonde o povo está. A reforma administrativa do Estado para enxugamento radical do número de ministérios e descentralização de recursos fiscais para estados e municípios, apoiada por um pacto federativo, torna possível essa troca de eixo na sustentação parlamentar e na gestão dos recursos públicos.

Falando sério - VALDO CRUZ

FOLHA DE SP - 13/06

BRASÍLIA - Michel Temer disse que falava em tom de brincadeira, mas, no fundo, o recado era bem sério e deveria ser assumido por todos que desejam que o país saia da crise.

Em discurso na semana passada, o presidente comentou que, caso algo aconteça e ele não permaneça à frente do Palácio do Planalto, o país estará salvo da atual crise se a sua equipe econômica for mantida.

Presidente interino, Temer conta com o "time de primeira grandeza" que escalou na área econômica como um dos trunfos para virar definitivo até o final do atual mandato.

Ele costuma perguntar. "A Dilma volta e tira o Padilha, Meirelles, Ilan Goldfajn, Pedro Parente, Maria Silva, Carlos Hamilton, Manuseto de Almeida?" De fato, imaginar tal hipótese é de assustar a qualquer um.

Ops, menos à presidente afastada e seus seguidores, aos quais Dilma promete uma guinada à esquerda se voltar ao Planalto. Como assim? Sua política econômica quebrou o país e ela ainda promete mais da receita.

O fato é que, se a equipe econômica de Temer tiver tempo necessário e apoio suficiente para reorganizar suas áreas, em pouco tempo o país volta a crescer. O primeiro teste virá em breve, quando Henrique Meirelles enviar ao Congresso a proposta de teto para os gastos públicos.

De longe, temos hoje o pior Legislativo da história recente do país. Viciados em gastos, de preferência para suas bases eleitorais, nossos atuais parlamentares, com raras exceções, adoravam a política fiscal irresponsável de Dilma Rousseff.

Agora mesmo, nos gabinetes do Congresso, o que já se ouve são reclamações sobre a ideia de limitar o crescimento dos gastos. Cada um querendo preservar sua área de cortes. Deveriam olhar para o rombo deste ano e pensar um pouco mais.

Enfim, esta turma precisa encarar a realidade de terra arrasada deixada pela administração petista. Não dá mais para viver no mundo dos sonhos enquanto o desemprego cresce. É hora de falar sério.

Os privilégios dos servidores - RUTH DE AQUINO

REVISTA ÉPOCA

Somos viciados em privilégios. No Brasil, todo mundo tem, ou busca, um privilégio para chamar de seu



Uma hora esta caixa-preta será aberta. O debate da Previdência Social já mudou as leis em vários países. Não há como nenhum Estado pagar aposentadoria integral de supersalários a funcionários e seus viúvos e viúvas e dependentes. Aposentadorias, pensões e benefícios pagos pela Previdência representam cerca de 20% dos gastos do governo. Vai piorar. Não dá.

Se é para equilibrar contas públicas e não quebrar o país, essa vaca terá de deixar de ser sagrada. Além de prender os ladrões sem-vergonha da República, o Brasil precisa da reforma da Previdência. O Brasil e o resto do mundo, que hoje envelhece muito. Não é para fazer maldade, mas para não perpetuar privilégios e desigualdades até os 100 anos de idade. Há, em países menos hierarquizados, uma estrutura de saúde e acolhimento digna e mais democrática para os velhinhos.

A estabilidade dos servidores – direito adquirido, previsto na Constituição – é outro tabu a discutir. A impossibilidade de demitir um servidor colide com a meritocracia e estimula a acomodação. Alguns países acabaram com a estabilidade, outros a flexibilizaram ou adotaram contratos temporários. O desempenho do servidor passa a ser controlado, premiado ou punido.

O foco do serviço público deveria ser a satisfação do cliente e não a garantia do servidor num emprego vitalício. Há casos em que o servidor se torna mero aproveitador de um cargo ou emprego ao qual só comparece para assinar o ponto ou nem sequer comparece por ter outras fontes de renda. Uma minoria, sim, nascida de um sistema de privilégios.

É um assunto explosivo. Na semana passada, recebi vários protestos de servidores à minha coluna (“O trem da vergonha nos Três Poderes”) que criticava os reajustes e aumentos aprovados pela Câmara a 16 categorias de funcionários públicos, num momento de ajuste fiscal. Dá para entender a mágoa de alguns, quando eu chamo os servidores de “casta privilegiada”. Generalizações são mesmo injustas. Se pensarmos nos professores e policiais, que cuidam de educação e segurança, não há nada de privilégio no dia a dia deles.

Alguns desses leitores não tinham reajuste em seus vencimentos havia vários anos e, com a aprovação do pacote e a bênção do presidente interino Michel Temer, poderão repor as perdas da inflação. Aumentos reais estavam embutidos no pacote de bondades. É importante que os servidores tenham em mente que trabalhadores do setor privado estão abrindo mão de direitos trabalhistas e até de reposição de perdas, para se adequar à crise e evitar demissão. Os autônomos – exceto profissionais liberais como os médicos – tampouco conseguem repor a inflação.

O leitor Alcides Pestana escreveu que “esses jornalistas vivem à caça de notícias deste naipe, será ódio?”. O leitor Fábio Vicente disse que “o ódio pelo servidor público nasce da incapacidade de ser aprovado em concursos os quais (sic) a concorrência chega a mais de 2 mil candidatos/vaga”. O leitor Roberto Tavares disse que “chamar os servidores públicos de casta é um desrespeito com a categoria. Se acham que somos privilegiados, demonstrem que são capazes e façam concurso público”.

Muitos servidores se acham mesmo superiores só porque fazem concurso público. Frequentemente alegam, a seu favor, que “dão o máximo para servir o país”. E isso lhes dá direito a estabilidade e aposentadoria integral? O leitor Paulo Roberto de Almeida, em reação a um editorial do jornal O Estado de S. Paulo, “O déficit da previdência pública”, escreveu: “Eu sou um funcionário público e, para que fique muito claro, quero deixar explícito, mais uma vez, que sou contra: 1) estabilidade no setor público 2) privilégios de qualquer tipo em relação ao setor privado 3) salários exorbitantes 4) outros abusos e vantagens típicos do mandarinato que caracteriza o Brasil. Acho que vai demorar para corrigir, se é que um dia se corrigirão essas iniquidades”.

Há muitas maneiras de enriquecer no Brasil. A mais rápida é se tornando vereador, deputado, senador, prefeito, governador e presidente – ou dando a sorte de ser mulher, marido, filho ou parente de qualquer um deles. Não só pelo que ganham, mas pelo que desviam, mamam e roubam (não todos, mas...). Uma outra maneira, mais lenta, de se dar bem na vida financeiramente é: conseguir um emprego público. Faça concurso, e mais concurso, insista. Assim você não poderá ser demitido e vai ganhar tanto penduricalho e benefício em seus vencimentos ao longo da vida que ficará garantido. Mire nos Tribunais de Contas.

No livro Estado, democracia e administração pública no Brasil, o autor, Marcelo Douglas de Figueiredo Torres, escreve: “A defesa de velhos e insustentáveis privilégios geralmente se esconde sob o seguinte argumento: se é para corrigir o problema A, também deveremos atacar simultaneamente os outros problemas B, X, Y ou Z. É cristalino que essa posição é absolutamente fundada na defesa dostatu quo. Na prática, o raciocínio é o seguinte: se é preciso acabar com os privilégios dos funcionários públicos, também devemos resolver as questões da sonegação fiscal e dos incentivos tributários, da corrupção, dos favorecimentos na execução orçamentária, dos subsídios aos grandes agricultores, dos empréstimos camaradas do BNDES, dos lucros aviltantes do setor financeiro e assim por diante”. É claro que é fundamental melhorar a gestão da Previdência. Mas não basta.

O Brasil, dos iletrados aos pós-doutores, sabe que corrupção não se combate com altos salários, mas com leis, valores éticos e morais, corregedorias eficientes. E com o controle social. O problema é que nossa sociedade é viciada em privilégios. Todo mundo tem, ou busca, um privilégio para chamar de seu.


Para viver às próprias custas - RAUL VELLOSO

O GLOBO - 13/06

Cabe, agora, recalcular a dívida estadual


Por envolver uma mistura de aspectos conjunturais e estruturais, o tema das dívidas estaduais tem recebido tratamento inadequado. O fato é que, tanto a União como os estados tiveram de lidar com a brutal queda de receita que a maior recessão de nossa história lhes causou, sem dispor dos instrumentos de ajuste que só o setor privado detém. Ao mesmo tempo, cabe enfrentar um problema financeiro estrutural que vem se agravando nas contas estaduais, e que se manifesta pela inviabilidade de eles continuarem pagando o serviço da dívida renegociada nas bases estabelecidas mais recentemente pela União.

No setor privado, sabe-se o que ocorre nas recessões: demissões, reestruturações etc. É a lei da sobrevivência. O espaço para demitir pessoas no setor público é, contudo, mínimo. Aumentar impostos em épocas como a atual cheira a suicídio político. O Banco Central tende a financiar os déficits da União inicialmente emitindo moeda, e depois procura enxugar a liquidez adicional via títulos de curtíssimo prazo para não pagar juros escorchantes.

Num segundo momento, a União apresenta um programa de ajuste para compensar o aumento da dívida pública. Sem essa válvula de financiamento, os estados, que se tornaram meros departamentos financeiros subordinados à União (veja mais sobre isso em raulvelloso.com.br), correm atrás de receitas extraordinárias e adiam pagamentos, na esperança de que a recessão acabe logo. O Estado do Rio teve o efeito adicional da forte queda do preço externo do petróleo, que reduziu outra fonte importante: os royalties. Daí deter o maior buraco financeiro do momento.

Assim, da mesma forma que o Banco Central foi chamado a emitir moeda para financiar os déficits primários gigantescos da União em 2015 (R$ 117 bilhões) e o que se projeta para 2016 (R$ 170 bilhões), algo análogo terá de ser feito como forma de dar tratamento isonômico aos entes subnacionais. E também para evitar uma total desorganização das respectivas administrações. Se a União os colocou num cercado em que comanda todos os seus atos financeiros relevantes e toma uma plêiade de decisões que atinge frontalmente seus orçamentos — tais como o recente reajuste do teto do STF ou o aumento do piso dos professores —, não pode deixar de socorrê-los do furacão devastador causado pela gestão Dilma Rousseff, e deve, obviamente, explicar tudo isso à sociedade.

Além de não poderem inclusive tocar nas receitas cativas transferidas aos respectivos Judiciário, Legislativo, Ministério Público e Defensoria Pública, ou mexer nos gastos vinculados à educação, saúde etc, o que resta é pouco. Ao final, os estados são instados a atrasar, sistematicamente, pagamentos de salários, aposentadorias e outros dispêndios críticos, que abocanham a quase totalidade de seus orçamentos, algo que já vem ocorrendo, e que a União, graças à “maquininha do BC”, não precisou fazer. Há pouco, viu-se, no Rio, que o IML parou pela segunda vez de receber cadáveres, e é dramática a imagem de velhinhos na TV mostrando longas prescrições de remédios que não conseguem mais pagar por não receberem em dia.

A saída óbvia é dispensar os estados de efetuar o pagamento do serviço da dívida à União em 2016 e 2017, admitindo dois anos de recessão brava, e aproveitar para corrigir a inviabilidade do último esquema de renegociação de dívidas efetuado em 1998-2000, que, entre outras coisas, exige um pagamento mensal da ordem de 13% das receitas estaduais, algo que, na prática, se mostrou inviável. Cabe, agora, recalcular a dívida estadual com essa carência e no mesmo prazo original (ou seja, não deve haver extensão de prazo), com Tabela Price e juros compostos de IPCA mais 4% (algo já de consenso), mas admitindo um pagamento máximo de serviço da ordem de 6% das receitas, segundo meus cálculos (para reconhecer a dificuldade estrutural), e não os 13% anteriores. Chega-se, então, ao novo estoque, abaix o do atual em x% e variando conforme o caso.

Até poderíamos jogar o problema para debaixo do tapete. Só que os mercados sabem que ele existe, e colocam esse efeito em seus cálculos. O importante é condicionar qualquer socorro à adoção de políticas que, em conjunto com as que a União já está preparando, ponham um ponto de parada na evolução futura da razão dívida pública total/PIB. Sugiro a leitura de minha proposta de remanejar recursos dos orçamentos estaduais, via um fundo de estabilização previdenciária, na minha página da internet anteriormente referida.

Temo que o governo aceite enfrentar o financiamento do buraco pelo caminho acima sugerido, mas empurre para a frente o problema estrutural da dívida mal dimensionada, por temer uma repercussão negativa do tipo: “Estão mais uma vez perdoando dívida de gastadores” etc. Entendo, contudo, que estamos diante de uma oportunidade única de preparar os entes subnacionais para uma nova etapa em que, sujeitos a salvaguardas, possam se libertar do paternalismo da União à custa de assumir a responsabilidade de viver às próprias custas.

Raul Velloso é economista

Meirelles ou o caos - VINICIUS MOTA

FOLHA DE SP - 13/06

SÃO PAULO - As trepidações iniciais do macarrônico ministério Temer estimularam interpretações de que seu governo poderia inviabilizar-se rapidamente. Dois centímetros abaixo da superfície, entretanto, o movimento é de relativa solidificação.

A substituição do PT pelo PMDB no comando da coalizão, bem como a de petistas e seus satélites de esquerda por tucanos e seu séquito de direita na base, conferiu maior coerência ao bloco governista.

A necessidade de reenquadrar as finanças públicas e reorientar a economia para o mercado tornou-se impraticável com Dilma Rousseff no Planalto e o PT a liderar o governo no Congresso. Com Temer e a base deslocada para a centro-direita, o programa de reformas começa a andar.

Formou-se uma das mais fortes e coesas equipes econômicas liberais da Nova República. A Lava Jato, ao derrubar Romero Jucá do Planejamento, acabou por reforçar o comando de Henrique Meirelles.

José Serra, que no Planejamento resistia à condução da economia no primeiro FHC, desta vez integra a solução no Itamaraty. A promoção da abertura externa harmoniza-se com a linha da Fazenda.

Os parlamentares brasileiros, mesmo os de centro-direita, são gastões e paternalistas em sua maioria. Não aceitam só por boniteza o projeto de restrição fiscal e abertura econômica. Fazem-no sobretudo por necessidade —porque a alternativa é o abismo da incerteza política absoluta.

É render-se a Meirelles ou desfazer o último laço que segura o sistema. Depois de Dilma havia Temer, mas após Temer ninguém sabe. Políticos lutam pela sobrevivência num ambiente hostil. Têm ojeriza ao vácuo de previsão sobre seu futuro.

Assim Meirelles se torna o fiador de última instância do statu quo político. Tamanha hipertrofia de um ministro não ocorria desde que Delfim Netto assumiu a pasta no agonizante governo Figueiredo. Poder incontrastado nunca dá em boa coisa.


Os pingos nos is - FABIO GIAMBIAGI

O GLOBO - 13/06

Incomoda-me a postura falsamente neutra que tende a colocar no mesmo nível a gestão de governo 1995-2002 com o que aconteceu depois



Volto aqui a lidar com as questões nacionais. Não tenho procuração para defender a gestão FHC. Embora tenha exercido uma função subalterna no governo dele em 1995, seria despropositado me considerar parte da sua equipe. Feito o esclarecimento inicial, o leitor que porventura tiver acompanhado meus artigos nos últimos 20 anos sabe da minha identificação com as políticas implementadas por FHC, cujo governo defendi, sem ter me furtado na época, entretanto, a criticar a política fiscal implementada até 1998. Além disso, estou ligado, por comunhão de ideias e vínculos de amizade, a boa parte das pessoas que ocuparam posições de destaque na equipe econômica naqueles anos.

Por isso, incomoda-me a postura falsamente neutra que tende a colocar no mesmo nível a gestão de governo 1995-2002 com o que aconteceu depois. Ao dizer isto, quero ressaltar o papel que uma boa equipe, competente e honesta representa para o desempenho de um governo. Só para citar os casos mais conhecidos, vou lembrar nomes cujo espírito público, dedicação ao trabalho e qualidade técnica seriam reconhecidos em qualquer burocracia pública das mais avançadas do mundo: Malan, Gustavo Franco, Arminio Fraga, Amaury Bier, Bacha, Lara Resende, Mendonça de Barros, Pérsio Arida, Gustavo Loyola, Murilo Portugal, E. Amadeo, Eduardo Guimarães, Fabio Barbosa, Eduardo Guardia, Martus Tavares, Pedro Parente, Guilherme Dias, Reichstul, Francisco Gros, Elena Landau e os diretores do Banco Central naqueles anos fariam bonito em qualquer país. Todos se destacaram no governo FHC; todos tinham um nome profissional prévio; todos saíram da função pública sem maiores problemas quando as circunstâncias assim o requereram, dando mostras de que não tinham interesse no cargo em si — e todos voltaram à planície e continuaram se destacando nas suas respectivas áreas. Ainda que com todos os problemas de um país difícil de governar e com as tensões inerentes a qualquer grupo — administradas com maestria por FHC —, eles deram uma colaboração decisiva para vencer a hiperinflação, revezaram-se para “tocar o barco” durante oito anos, legaram um país com a economia essencialmente estabilizada — noves fora a bagunça de 2002, associada às estripulias da campanha eleitoral — e depois foram cuidar da vida, com pleno sucesso. Eles tinham o sentimento de ajudar o país, senso de pertencimento a uma equipe e cumpriram com zelo a sua missão. Eram anos em que havia liderança, equipe, projeto e rumo.

O que veio depois? Aqui é preciso fazer uma distinção. Na equipe de Lula em 2003 e nos primeiros anos, havia nomes com algumas daquelas características: Henrique Meirelles, Joaquim Levy, Marcos Lisboa, Roberto Rodrigues e a ótima equipe de diretores do Banco Central. Eles tinham dois denominadores em comum: 1) a competência; e 2) a ausência de identificação com o PT ou com as ideias por este defendidas ao longo dos 20 anos anteriores. Ou seja, não havia um vínculo com o projeto de governo. Enquanto Lula manteve esse time, as coisas funcionaram. O problema é que a política adotada naqueles anos não tinha nada a ver com o partido. Quando o PT começou a dar as cartas, em meados da década, o barco do país começou a desandar — e, quando assumiu de vez o controle, o barco naufragou. Treze anos depois, o que tínhamos no começo de 2016? Falta de liderança, de equipe, de projeto e de rumo. A ideia de que as experiências de FHC e de Lula/Dilma se igualam é um completo equívoco.

Insisto para que o leitor faça os devidos paralelos. De um lado, o que temos? Ex-autoridades que podem ir a qualquer lugar, têm seu papel reconhecido e formaram um elenco estelar de craques que honrariam qualquer equipe. E do outro? Um ex-ministro da Fazenda que teve que sair do governo duas vezes por fatos que não conseguia explicar; outro que não consegue sair para a rua sem passar por constrangimentos por ter levado o país à maior crise da sua história; uma penca de membros do “alto generalato” partidário espalhados pelas prisões do país; e o vazio mais absoluto.

Liderança, equipe, projeto, rumo. Havia no passado; deixou de haver depois. Em momentos em que o país precisa reencontrar o caminho do progresso, é bom estabelecer as diferenças. A formação da equipe de Temer, nesse sentido, dá espaço para recuperar certo otimismo.

Fabio Giambiagi é economista

Mentalidades - DENIS LERRER ROSENFELD

O Estado de S. Paulo 13/06

O Brasil vive um processo particularmente complexo de transição de uma mentalidade patrimonialista, “aprimorada” em seu caráter bolchevique graças aos governos petistas, para uma mentalidade moderna, própria de um Estado em que começa a vigorar o império da lei. Ou seja, estamos presenciando uma difícil transição do governo de uma classe política acostumada a manipular leis e instituições, como se estas devessem estar a seu serviço e proveito, para um governo ancorado em instituições, cuja validade transcende a ação direta dos políticos.

As gravações do ex-senador Sérgio Machado dos senadores Renan Calheiros, Romero Jucá e José Sarney são, nesse sentido, particularmente ilustrativas. Com efeito, elas exibem intenções e tentativas de manipulação das leis e instituições, como se ações junto a ministros e juízes fossem de natureza, por si sós, a alterarem todo um processo judicial. De fato, estavam e estão acostumados a um tipo de comportamento que se espelha numa concepção patrimonialista, como se a coisa pública não estivesse a serviço da coletividade, mas de seu proveito próprio e pessoal.

Não se trata, aqui, somente da questão de se tal comportamento configura ou não um crime determinado como obstrução de Justiça, mas de um tipo de atitude que se pauta, como se fosse seu direito próprio, em considerar leis e instituições como se pudessem ser modificadas a seu bel-prazer. Mais especificamente, habituaram-se à impunidade como se as leis a eles não se aplicassem. Espantam-se com o que está acontecendo, pois não perceberam que o País está mudando, e essa mudança está fortemente ancorada numa sociedade que está dando um basta a essa mentalidade.

Caberia, aqui, uma observação relativa ao suposto “patrimonialismo” petista. Lê-se frequentemente, inclusive em intelectuais de esquerda, que o PT teria incorrido nas práticas dos partidos políticos tradicionais, como se, em sua pureza, ele tivesse sido seduzido pelo atraso. Os petistas procuram se desresponsabilizar pelo que fizeram dizendo ter feito somente mais do mesmo. Igualam-se para se eximirem de sua própria culpa. Tal posicionamento tem, ainda, o objetivo de manter a pureza da ideia de esquerda, como se esta pudesse simplesmente ser recuperada sem nada reconhecer de feito próprio.

Ora, a corrupção petista é fruto do aparelhamento partidário do Estado, com o intuito de, progressivamente, levar a cabo uma transformação socialista da sociedade brasileira. Ela é bolchevique. Para eles, esse aparelhamento e a sua corrupção seriam meros meios de uma progressiva mudança revolucionária. Ou seja, a corrupção, para além dos benefícios pessoais, seria um instrumento de captura da sociedade e de controle, para isso, de seus meios de comunicação privados. Nessa perspectiva, a corrupção petista, de caráter político revolucionário, inscreve-se na tradição patrimonialista para dela tirar proveito. A corrupção e o aparelhamento partidário do Estado pertencem à própria ideia de esquerda, fazem parte de sua essência.

O que é particularmente interessante no cenário político atual é a clivagem estabelecida entre a sociedade e a classe política. A primeira se caracteriza por valores não patrimonialistas, exigindo de seus representantes um comportamento condizente com a proteção pública dos recursos públicos. Não mais admite que os recursos da saúde, da educação, do saneamento, da habitação, entre outros, sejam drenados pela corrupção, desviados de seus objetivos específicos.

Ela abomina o fisiologismo, a barganha de cargos e todo este espetáculo explícito de negociação ou de negociatas de posições, emendas e outras benesses em detrimento do bem público. Para isso, foi às ruas e criou as condições do impeachment. A sociedade brasileira não se deixou corromper, e talvez seja este o nosso maior ativo, um patrimônio propriamente nacional. Ela clama, portanto, por um novo Estado, livre do patrimonialismo histórico brasileiro e de sua vertente petista. Ela já efetuou uma mudança de mentalidade, que não ocorreu ainda na classe política, que dela fica a reboque.

A Operação Lava Jato, por sua vez, é a expressão desta nova mentalidade que já opera no nível propriamente estatal. Ela começa a fazer valer o governo das leis e instituições, resgatando a ideia propriamente republicana de coisa pública. Sua tradução mais imediata é a punição de poderosos, daqueles que viviam à margem da lei, desrespeitando as instituições e considerando a coisa pública como se fosse privada. A impunidade, graças a ela, está sendo progressivamente abolida, trazendo agentes políticos e empresariais às suas respectivas culpas e responsabilidades. Tudo isso, evidentemente, surpreende, precisamente por revelar o surgimento de uma nova mentalidade num setor da burocracia estatal, no caso, no Judiciário, no Ministério Público e na Polícia Federal.

A sociedade se sente na Lava Jato representada. Na verdade, esta não teria condições de ser bem-sucedida se não contasse com esse imenso apoio social. O País se modernizou socialmente. Goza de uma ampla liberdade de expressão, com jornais independentes, investigativos e de opinião, em linhas gerais em defesa do avanço da democracia. Para todos os efeitos, não se trata de um movimento social dirigido contra um partido determinado, mas de afirmação de novos valores e princípios, voltando-se contra qualquer partido que não seguir esses novos valores. Ontem o PT foi o foco principal, hoje é o PMDB, talvez amanhã seja o PSDB ou qualquer outro partido. A moralidade pública tornou-se um princípio da sociedade e esta exige que a classe política se paute por este novo padrão político.

A ética na política é atualmente uma bandeira social. Exige a prudência que a classe política e o novo governo entrem em sintonia com uma sociedade portadora de uma nova mentalidade.

Ideia delirante - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S. Paulo 13/06

Dilma Rousseff está cada vez mais perdida em seus devaneios. Percebendo que a versão de que é vítima de um “golpe” não colou, a presidente afastada investe agora numa tentativa desesperada de reverter no Senado a clara tendência pela decretação de seu impeachment. Está propondo uma ideia estapafúrdia: se for reconduzida ao Planalto, convocará um plebiscito sobre a antecipação da eleição presidencial. Aprovada nas urnas a tese da eleição, renunciará. E um novo presidente da República – ou uma nova presidente, sabe-se lá – se encarregará, com a legitimidade que ela acusa Michel Temer de não ter, de concluir o mandato.

A ideia de promover eleições, especialmente quando o País está mergulhado numa crise geral, tem algum apelo popular. Principalmente se for apresentada como um ato de generoso desprendimento por parte de uma mulher que se apresenta como injustiçada por seus inimigos, mas disposta a entregar nas mãos do povo os destinos do País.

A eleição presidencial antecipada já está prevista na Constituição, se ocorrer a vacância dos cargos de presidente e vice-presidente. Se essa vacância ocorrer nos dois primeiros anos do mandato – no caso, até 31 de dezembro próximo – será automaticamente convocada nova eleição, para presidente e vice, “noventa dias depois de aberta a última vaga”, segundo o artigo 81 da Constituição. Acontecendo a vacância dupla a partir do início do segundo ano de mandato, a eleição se dá indiretamente, pelo Congresso Nacional, em 30 dias.

Para que haja eleição direta como propõe Dilma – mas não como ela necessariamente quer –, é preciso que não haja presidente nem vice-presidente. Como não passa pela cabeça de Michel Temer renunciar à Vice-Presidência, as coisas são menos simples do que Dilma expõe. Ela também se diz disposta a “convocar” a consulta popular, mas essa prerrogativa é exclusiva do Congresso, a partir de qualquer uma de suas duas Casas, como estabelece o artigo 14 da Constituição Federal. O que significa que, se está falando sério, Dilma terá primeiro que convencer os senadores ou os deputados a aprovar a convocação do plebiscito, o que tem de ser feito por pelo menos um terço dos deputados ou senadores.

Enquanto exercia a Presidência, principalmente a partir do início do segundo mandato, Dilma sempre teve enorme dificuldade para fazer passar no Congresso propostas em que tinha interesse. Nada leva a crer que será diferente na hipótese remota em que ela acabe sendo reconduzida ao Planalto. Estariam os parlamentares interessados em eleição presidencial antecipada?

Michel Temer exerce a Presidência, substituindo a presidente afastada de acordo com o que estabelece a Constituição. Não tem nenhuma razão para renunciar. Assim, a eleição antecipada que Dilma afirma desejar só será possível se aprovada por um plebiscito que não se limitaria a convocar a consulta, mas também declararia a vacância dupla – o que seria, na verdade, a cassação do mandato do vice-presidente. Em resumo, o golpe imaginário, de que Dilma se queixa de ser vítima, seria aplicado, de verdade, em Michel Temer.

Assim, mesmo que Dilma esteja realmente disposta a cumprir o que promete – convencer o Congresso a convocar o plebiscito e, aprovada a eleição antecipada, renunciar à Presidência –, a viabilidade prática dessa ideia é, no mínimo, extremamente duvidosa. Se o julgamento final do processo de impeachment pelo Senado for realizado, como está previsto, em agosto, restarão menos de cinco meses para que – com uma eleição municipal prevista para outubro – sejam realizados ainda este ano, primeiro, o plebiscito e, em seguida, se for o caso, a eleição para escolher quem concluirá os dois anos de mandato que Dilma ainda teria. De quebra, teria que ser resolvido o problema de saber quem ocupará a Presidência da República no meio tempo entre a renúncia da desprendida Rousseff e a posse do novo chefe de Estado. O presidente da Câmara dos Deputados, seja ele Eduardo Cunha, seja Waldir Maranhão? Arre!


Não à volta da mordaça - EDITORIAL CORREIO BRAZILIENSE

CORREIO BRAZILIENSE - 13/06

Entre muitas conquistas, a Constituição de 1988 garantiu a liberdade de expressão aos cidadãos e aos veículos de comunicação. Desde então, setores organizados da sociedade têm exigido um Estado, cada vez mais, transparente. Mobilizam pessoas, vão às ruas e cobram explicações do poder público sobre as políticas e obediência aos direitos consolidados pela Carta Magna. Desde 2011, está em vigor a Lei de Acesso à Informação, que abriu os arquivos do Estado aos indivíduos, principalmente aos que foram ou tiveram familiares vítimas do regime de exceção.

Há poucos dias, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowiski, acabou com os chamados processos ocultos, que omitiam da opinião pública os processos contra autoridades, entre elas presidente da República e parlamentares. Foi mais um passo importante para dar transparência dos atos daqueles que ocupam cargos público e, por isso mesmo, devem satisfação do que fazem à sociedade.

O Código Penal tem dispositivos que asseguram a reparação ao indivíduo que se sente ofendido na sua honra, dignidade ou se vê caluniado, seja pela mídia, seja por publicações nas redes sociais. Não faltam instrumentos para coibir abusos e punir as difamações. Mas há setores inconformados com as mudanças e querem ressuscitar a lei da mordaça ou a censura, que, durante a ditadura militar, ocultou barbaridades cometidas contras as pessoas e impediu o livre exercício da imprensa.

Esse tempo passou. Há 31 anos, o país vive em regime democrático, no qual os ocupantes de cargos públicos não compõem casta acima de qualquer cidadão. Ao contrário. Servidores públicos, em todos os âmbitos, têm a obrigação de dar explicações, cumprir as leis e prestar serviço de qualidade aos contribuintes. Chamou a atenção o episódio dos juízes e promotores do Paraná contra jornalistas da Gazeta do Povo que divulgaram os rendimentos dos magistrados cujos valores ultrapassam o teto fixado para o funcionalismo, no legítimo trabalho jornalístico de relevante interesse público.

A reação dos magistrados ocorre na unidade da Federação, centro das investigações da Operação Lava-Jato, que desnudou o maior esquema de corrupção instalado dentro da Petrobras e vem devassando a vida de políticos, empresários, empreiteiros e os colocando na cadeia por um conjunto de crimes, que aviltou a sociedade brasileira. Uma ação que rompeu com a impunidade no país.

No Congresso, tramitam pelo menos seis projetos - um deles de autoria do presidente afastado da Câmara, Eduardo Cunha - que buscam punir e retirar das redes sociais comentários que entendam depreciativos. Mais: desejam a remoção de links que permitem aos usuários acesso aos fatos relevantes e comprometedores da vida pregressa dos políticos. Ou seja, querem preservar a imagem artificial com que conquistaram incautos eleitores que os guidaram ao Legislativo - espaço, hoje, seriamente contaminado pela corrupção.

O comportamento de agentes de parte do Judiciário e do Legislativo não têm espaço no estágio alcançado pela democracia brasileira. A crise política e econômica pouco ou nada interferiu no funcionamento dos Três Poderes, prova de amadurecimento das instituições. Quem não deseja ser alvo de denúncias tem um caminho a seguir: não infrinja as leis vigentes, principalmente se exercer ou almejar cargo relevante na República


Querida, deu errado! - RICARDO NOBLAT

O GLOBO - 13/06

"É uma guerra, tem sido uma guerra." 
Michel Temer, presidente interino da República, sobre o primeiro mês do seu governo.
Primeiramente... Se Dilma tivesse chances de voltar ao cargo do qual foi afastada, ela não acenaria, como o fez em entrevista à TV Brasil, com a proposta de convocação de um plebiscito para que os brasileiros digam se são favoráveis a uma eleição presidencial antecipada. Caso ocorresse, a eleição serviria à escolha de um presidente para completar o mandato de Dilma. O que significa...

QUE DILMA TEM plena consciência de sua impossibilidade de governar até o dia 31 de dezembro de 2018, como deveria. O impeachment passou na Câmara com os votos de 71,5% dos 513 deputados, obrigando-a a se afastar do cargo. Foi admitido no Senado com os votos de 67,9% dos 81 senadores. Esse percentual tem tudo para ser maior no ato final do julgamento dela.

DILMA CAIU PORQUE pedalou contra o Tesouro, fez um governo desastroso e perdeu apoio político. Quer voltar por pouco tempo, preocupada apenas com sua biografia. "Querida, deu errado. Você só tem de escolher por qual porta sair" ensinou Lula a Dilma no dia em que ela se despediu do Palácio do Planalto. Hoje, refugiada no Palácio da Alvorada, espera que a sorte mude seu destino.

PARA ELA, BEM QUE os brasileiros poderiam se encantar outra vez com a ideia de Diretas já! Ou seja: nem Dilma, nem Temer, mas um terceiro. E já! E assim, devolvida temporariamente ao poder, Dilma sairia mais tarde dali pela porta de quem abdicou de direito adquirido pensando acima de tudo no país - Dilma, a generosa; Dilma, a abnegada; Dilma, a estadista.

HAVERIA OUTRA PORTA pela qual a ex-presidente poderia sair: ado rotundo fracasso do governo provisório de Temer. Ela nunca admitirá que torce para que Temer fracasse, mas não faz outra coisa, não deseja outra coisa. Dane-se o país, se esse for o preço a pagar para dar um lustro no que se dirá de Dilma no futuro. Golpeada, Dilma caiu, mas o golpista-mor, também. Vítima e algoz. Lorota!

TEMER É VISTO COM muita desconfiança, e é natural que seja. Ele é do PMDB, partido tão encrencado na Lava-Jato quanto o PT. Por duas vezes foi vice de Dilma, responsável, assim como Lula, pela dramática situação econômica, política e moral que o país atravessa. Temer é uma esfinge. Mas Dilma, não. Decifrada, a maioria dos brasileiros deu-lhe as costas.

LULA ESTÁ PERDIDO. H disso dão testemunho os que convivem com ele, e os que o escutam falar nos raros atos públicos a que comparece. No da última sexta-feira, que lotou apenas quatro quadras da Avenida Paulista, no Centro de São Paulo, nem Lula nem ninguém perdeu tempo em comentar a proposta de plebiscito com Diretas já! Daqui a dois anos haverá diretas. Antecipá-las para quê? Para o PT perder?

AGORA A DERROTA SERIA certa. Este ano ou em 2018, não se sabe se o PT contaria com Lula como candidato. Sérgio Moro deve saber. Ou oministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal. Lula poderá escapar de ser preso para que não se dê ao PT um aspirante a mártir. Não mais uma jararaca de vida curta, talvez um São Sebastião flechado. Mas livrar-se da Lava-Jato, esqueça. Ele não se livrará.

SE TEMER NÃO FOR alvejado por uma bala perdida ou, pior, certeira, dessas que ultimamente produziram severo estrago na imagem de influentes caciques do PMDB, seguirá capengando na direção do seu Santo Graal - um ajuste nas contas públicas e a aprovação de algumas reformas econômicas. É pouca ambição? Não, não é. Nas atuais circunstâncias, é muita.

COLUNA DE CLAUDIO HUMBERTO

DEMORA NA DEMISSÃO DE PETISTAS TRAVA O GOVERNO

Aliados de Michel Temer reclamam que o governo continua “infestado” de petistas. Nos ministérios e demais órgãos federais, apesar da troca de titulares, o comando da burocracia permanece com militantes do PT, que sabotam ações do governo. Isso sem contar casos como os da estatal EBC e do plano de saúde Geap, cujos gestores se beneficiam da criação malandra de “mandato” para se agarrarem às boquinhas.

OLHO DA RUA
O Palácio do Planalto tranquiliza os servidores: “todos os petistas serão demitidos”. É só questão de tempo, diz o ministro Geddel Vieira Lima.

DESENCARNANDO
Temer “foi obrigado a trocar o pneu com o carro em movimento”, reconhecem os aliados, mas é preciso deixar sabotadores para trás.

FORÇA DO APARELHAMENTO
“O desaparelhamento do PT não se faz de uma hora para a outra”, justifica o líder do governo, deputado André Moura (PSC-SE).

MONITORAMENTO
O governo já monitora, para levar à Justiça, os casos de perseguição de chefetes petistas a subordinados que apoiaram o impeachment.

MARIDÃO DE JANDIRA TINHA RELAÇÕES COM MACHADO
Jandira Feghali (PCdoB-RJ) levou R$ 410 mil da Queiroz Galvão, uma das empreiteiras investigadas no roubo à Petrobras, mas autoridades suspeitam que a ligação da deputada ao ex-presidente da Transpetro Sergio Machado, que providenciou as doações suspeitas, decorria das relações dele com seu marido Severino Almeida, presidente de uma Conttmaf, entidade de trabalhadores da área de atuação da Transpetro.

NÃO É NOVIDADE
Em 2005 e 2006 Jandira Feghali destinou R$ 3,8 milhões em emendas que beneficiaram outra entidade, um sindicato presidido pelo maridão.

BANDA DE MÚSICA
Enquanto Jandira tocava de ouvido com empreiteira, seu irmão Ricardo Feghali, músico do Roupa Nova, arrumou R$2 milhões da Lei Rouanet.

COMUNISTA CAVIAR
Jandira ganhou R$ 300 mil da Energia Verde e R$ 110 mil da Siderúrgica Vale do Pindaré, empresas ligadas à Queiroz Galvão.

PASSANDO O RODO
A Câmara abrirá processos contra “mortadelas chiques”, aspones de deputados que posam de manifestantes nos corredores e no Salão Verde. Podem ser demitidos. A Polícia Legislativa monitora a situação.

MUITOS CACIQUES
Servidores da presidência da Câmara estão perdidos com tantos chefes. Além do afastado Eduardo Cunha, atendem a Waldir Maranhão, que é sem nunca ter sido, e Fernando Giacobo, o 2º vice.

PRESIDENTE ADIVINHO
Michel Temer deve ser adivinho. Juntou parecer do jurista Luiz Fernando Pereira dizendo que chapa vitoriosa não pode ser cassada por denúncias da Lava Jato. Um mês depois, a própria Odebrecht coloca Dilma, a cabeça de sua chapa, na cena do crime do “petrolão”.

NEM PILOTO DE AVIÃO
Nomeado ministro do Esporte, Leonardo Picciani (PMDB-RJ) foi o deputado federal que mais gastou com a emissão de passagens aéreas, até maio. Ele torrou R$ 89,81 mil. É quase um piloto de avião.

TOM MAIOR
O senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES) subiu o tom contra petistas e dilmistas na comissão do impeachment. Surpreendeu até mesmo os “apaixonados” Lindbergh Farias (PT-PE) e Gleisi Hoffmann (PT-PR).

POR NOSSA CONTA
O deputado Zeca do PT (PT-MS) queimou R$ 3.202,89 em um único posto de combustível, no mês passado. Nada demais se tivesse coçado o próprio bolso, mas quem paga é o coitado do contribuinte.

SEMANA DE GRITARIA
A Comissão do impeachment se reúne esta semana para ouvir testemunhas. Dilmistas tentam estender o fim das oitivas, previsto para dia 20. Já senadores pró-impeachment acham o prazo uma eternidade.

CÓDIGO DE MINERAÇÃO
Ambientalistas acreditam que o desastre da barragem de Mariana tende a acelerar a votação do projeto do novo código de mineração. O deputado Laudívio Carvalho (SD-MG) é o relator da proposta.

FASE 31
Os suspeitos habituais andam cansados das noites de insônia: começa a terceira semana sem a 31ª fase Lava Jato sair às ruas.

FIM DAS FÉRIAS