quinta-feira, julho 07, 2016

A hora do caixa 3 - MARIA CRISTINA FERNANDES

VALOR ECONÔMICO - 07/07

Legalização do jogo é uma ode a Carlinhos Cachoeira

Os projetos que regularizam jogos de azar ganharam uma velocidade inaudita. Um deles deve chegar em fase final de votação antes da eleição que pode fazer presidente dos Estados Unidos um sócio nos negócios do jogo no Brasil. Donald Trump, um dos maiores empresários mundiais do setor, é parceiro de um neto do último presidente da ditadura, João Figueiredo, num hotel da Barra da Tijuca, zona sul fluminense, candidato a sediar um cassino de luxo.

Não é a geopolítica, no entanto, que parece impulsionar as duas Casas do Congresso a votar os projetos em tramitação. O da Câmara é um projeto que tramita há 25 anos, de autoria de um deputado do PMDB de Santa Catarina que deixou a Câmara em 2003. Tem como atual relator um deputado do PP de São Paulo que foi genro do empresário Sílvio Santos, que, além do SBT, é dono de um hotel no Guarujá, no litoral paulista, também construído com infraestrutura para abrigar um cassino.

O PP, partido que lidera os investigados da Lava-Jato, também encabeça o projeto em tramitação no Senado. O texto é de autoria do presidente do partido e tem a relatoria de outro personagem de inquéritos policiais.

O presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), pautou a matéria com prioridade de votação em plenário saltando a Comissão de Constituição e Justiça onde o líder do governo, senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), contrário ao projeto, apostava que ele pudesse vir a ser questionado. Se aprovado, vai para a Câmara, onde pode vir a ser acoplado àquele que deve ser passar hoje na comissão especial da Casa.

Há filigranas que os diferenciam, mas, no essencial, unem-se pela firme oposição dos órgãos de controle e fiscalização do Estado. Representantes de todos - Receita, Coaf e Ministério Público - ouvidos em audiências públicas no Congresso manifestaram seu desagrado com o avanço de um projeto que pode fazer com que o combate à lavagem de dinheiro, depois de enfrentar tantas tempestades, morra na praia.

Em depoimentos e notas técnicas, desmontaram os principais argumentos dos defensores dos cassinos, o de que a lei regulamentará um serviço que já existe clandestinamente e pode ser fiscalizado da mesma forma que qualquer outra atividade econômica. Os representes dos três órgãos disseram não dispor de estrutura para fiscalizar o que definiram como uma atividade de alto risco.

No assédio a parlamentares somam-se desde grandes empresas que exploram o jogo em outros países até representantes da CBF, mas a nota técnica da Procuradoria Geral da República desmistifica o discurso do aporte de investimentos: "O jogo que se pretende legitimar não será uma atividade econômica aberta a novos empreendedores. Ele já tem dono. O contraventor comanda um estado paralelo que se mistura, e algumas vezes se sobrepõe, ao estado oficial. Nada mais se fará do que legitimar uma atividade que se impôs pela violência e pela corrupção, regularizando-a em benefício de organizações mafiosas que atuam com planejamento, divisão territorial e atuação espúria de forma estruturada e contínua".

Contra o argumento - que já mobilizava o governo desde a gestão Dilma Rousseff - de que o Estado, quebrado, precisa levantar recursos, dois pesquisadores da FGV (Carlos Ragazzo e Gustavo Ribeiro) publicaram artigo demolidor. Em resposta ao potencial de arrecadação de R$ 15 bilhões calculado pelos defensores do projeto, demonstram, com base em pesquisas realizadas em países com jogo legalizado, que a arrecadação pretendida não compensaria os gastos extras com tratamento de viciados, prevenção e combate a crimes correlatos.

O lobby da legalização, que era capitaneado no Planalto pelo ex-ministro(dos dois governos) Henrique Eduardo Alves, chegou a sensibilizar o então ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, mas encontrou no colega da Justiça, José Eduardo Cardozo, o principal adversário. No governo Temer, a legalização já recebeu o aval de ministros palacianos como Geddel Vieira Lima e Eliseu Padilha e da Agricultura, Blairo Maggi, mas tem a objeção do chanceler José Serra, e dos ministros do Trabalho, do Desenvolvimento Agrário e da Indústria e Comércio. No Congresso, a oposição ao projeto reune uma improvável aliança entre partidos de esquerda, um punhado de tucanos, alguns pemedebistas, e bancadas religiosas. O embate decisivo que deve ser travado no plenário da Câmara, no entanto, ainda tem resultado incerto.

A velocidade com que os projetos caminham no Congresso às vésperas das primeiras eleições sem financiamento empresarial das últimas duas décadas, dissemina a suspeita daquilo que Marlon Reis, do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, chama de ´caixa 3´. Enquanto o ´2´ desvia recursos públicos para a campanha do candidato, este não passa pela contabilidade eleitoral. No ´caixa 3´ o gasto é feito paralelamente e registrado apenas nas contas a pagar ao crime.

O terceiro dos caixas eleitorais chegou ao conhecimento do grande público no início do primeiro governo Luiz Inácio Lula da Silva quando o então assessor da Casa Civil, Waldomiro Diniz, foi preso sob a acusação de achacar o empresário do jogo do bicho Carlos Augusto Ramos, que passaria à história como Carlinhos Cachoeira, o reincidente.

Preso no episódio Waldomiro Diniz, Cachoeira manteria suas atividades no submundo do financiamento eleitoral. Novamente flagrado pela PF, derrubaria um senador do DEM (Demóstenes Torres) e devastaria a antessala de dois governadores, do Distrito Federal (o petista Agnelo Queiroz) e de Goiás (o tucano Marconi Perillo). Posto em liberdade, voltaria a delinquir em associação com um velho parceiro da empreitada (Delta) e seria preso na semana passada na operação ´Saqueador´.

A acelerada tramitação dos projetos de legalização do jogo é um desagravo ao velho bicheiro. Desde que a atividade foi proibida por Eurico Gaspar Dutra, o Congresso tenta devolver o jogo à legalidade. Há 70 anos, o veto rimou com a campanha "pela moral e pelos bons costumes" com que se pretendeu varrer o getulismo. A proposta chega a plenário junto com retirada da urgência do pacote anticorrupção. Se o governo do constitucionalista Michel Temer resolver avalizar o trâmite sob as bênçãos do ´novo centrão´ não poderá se valer do mesmo slogan, mas já tem enredo para compor uma ode a Carlinhos Cachoeira.

Maria Cristina Fernandes é jornalista do Valor.

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