terça-feira, junho 14, 2016

Asfalto selvagem - CARLOS ANDREAZZA

O GLOBO - 14/06

Até quando retardaremos a compreensão de que ter Dilma e Temer, sócios trocados de mal, como presidentes é inequívoco sinal de nossa buraquidão vocacional?


Pouca coisa é mais representativa do Brasil que a qualidade de seu asfalto. Obras monumentais, viadutos, elevados, pontes — e, no entanto, o buraco, os buracos. O legado verdadeiro, permanente: o chão que cede e enterra. O país esfarela-se; esfarelar-se-á. Não importa se a intervenção é recente, se custou uma fortuna, se vestiu alguma fé: a cratera não tarda. (Nelson Rodrigues talvez dissesse que ela sempre esteve ali, a cratera, desde tempos imemoriais, à espera do concreto — à espera da primeira empreiteira brasileira, digo eu.)

O Brasil é um país despavimentado. Física e moralmente. Politicamente. A falta que nos nega uma só ruazinha ao menos nivelada é a mesma que nos impede de formar um ministério limpo; é a mesma que tornou o Senado da República (a câmara alta do Congresso Nacional, casa que deveria ser a tribuna dos notáveis) num porão — numa toca — de protegidos-foragidos sob foro privilegiado.

Falta-nos qualidade asfáltica tanto quanto material humano. A mistura é ruim. Os elementos são insuficientes, pobres, não raro adulterados. Falta-nos densidade na composição — aquilo que daria liga. (Apenas para começar, senso de dever mais do que de direitos.) Empenhamos milhões, votamos aos milhões, para logo termos de recorrer ao jeitinho, ao remendo, ao vice — a uma chapa de aço qualquer que encubra a depressão, o abismo que é a verdadeira vocação brasileira.

Porque — não nos enganemos, leitor — buraco é vocação; não o jogo de cintura, não o improviso, não o rebolar com o qual apenas adiamos o momento (traumático, quiçá redentor) em que encararemos a fissura de que nos ufanamos, o rasgão em que nos atrasamos.

Falemos a linguagem do povo para exemplificar: Dunga, espécie de projeto-piloto para o modelo dilma de gerência, é treinador da seleção brasileira de futebol pela segunda vez em dez anos. Não será já hora de refletirmos sobre o que isso significa? Lulismo, dunguismo — tudo isso é grave, tudo isso é vala. Até quando — pergunta urgente — retardaremos a compreensão de que ter Dilma Rousseff e Michel Temer, sócios trocados de mal, como presidentes da República é inequívoco sinal de nossa buraquidão vocacional?

Um amigo otimista diz que o país saiu de um buraco e se meteu corrido em outro, de PT para PMDB. Discordo. Pois vejo um só valão, maior e mais profundo, escuro, do qual nunca sequer botamos a cabeça para fora, no qual engatinhamos de lado, mastigando farinha de um mesmo saco, incapazes de entender a falha geológica moral em que nos movemos.

Falamos de ponte para o futuro, mas nem uma escadinha erguemos. (Tivemos o Escadinha, porém.) Sem jamais debater-se em busca do fundamento de sua ruína, o Brasil é um país que se recapeia de quatro em quatro anos. Duda Mendonça, João Santana e até Celso Kamura trepam naquelas máquinas horrendas (que o companheiro delúbio da vez terá conseguido numa, digamos, permuta), raspam geral e saem cobrindo os bueiros — uma beleza. É sabido que não nos faltam operadores.

O que nos asfalta é liderança de piche, é raciocínio de brita, é esperança de areia, é alternativa de lama. É Lula, é Dilma, é Marina, é Alckmin, é Aécio, é Ciro. Essa gente sem ideia (sou generoso), parada no tempo (sou generoso), que nunca trabalhou, que não conhece outra forma de ganhar a vida senão desde dentro da máquina pública. Bote-se essa mulambada toda na betoneira e o resultado será o mesmo: o buraco.

Nosso buraco é do tamanho do Estado que nos engessa. Ou não teremos ainda avaliado a imensidão do rombo de um país que leva a sério e discute — como solução para sua inviabilidade eleitoral — o financiamento público de campanha, isso no mesmo exato instante em que fulminado por um escândalo de corrupção que outra coisa não faz senão desmascarar um monumental escândalo de financiamento público de campanha?

Nossa miséria — não tenha dúvida, leitor — é sobretudo decorrente do excesso de governo, essa maldição onipresente; mas o que fazemos, nós, os tatus, cegos cá sob a terra? Reagimos à barbárie promovida pelo Estado gigantesco pedindo mais e mais Estado, dando mais poder aos pilantras que o controlam — nós, as toupeiras.

Uma certeza? Nós merecemos.

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