sexta-feira, dezembro 11, 2015

O aviso foi dado: pedalar faz mal - LEANDRA PERES

VALOR ECONÔMICO - 11/12

Dois anos e meio antes de as “pedaladas fiscais” justificarem a abertura do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff e pelo menos um ano antes do início da campanha pela reeleição, técnicos do Tesouro Nacional elaboraram, em julho de 2013, um diagnóstico de 97 páginas sobre a situação fiscal e econômica do país. Mantido sob sigilo até agora, o relatório, ao qual o Valor teve acesso, continha um claro alerta à cúpula do governo: “O prazo para um possível ‘downgrade’ é de até 2 anos”; “Ao final de 2015 o TN [Tesouro Nacional] estaria com um passivo de R$ 41 bilhões” na conta dos subsídios em atraso;


 “Contabilidade ‘criativa’ afeta a credibilidade da política fiscal”.

Novos avisos foram incluídos em uma versão revisada, de setembro de 2013. O caixa do Tesouro estava muito baixo e foi citado no documento como “risco para 2014”. Os técnicos do Tesouro projetavam um “déficit sem perspectiva de redução”, falavam em “esqueletos” que teriam que ser explicitados e recomendavam “interromper imediatamente quaisquer operações que produzam resultado primário sem a contrapartida de contração da demanda agregada ou que gere efeitos negativos sobre o resultado nominal e/ou taxa implícita da dívida líquida”.





O trabalho foi concluído em novembro de 2013 e apresentado ao então secretário do Tesouro, Arno Augustin. As 97 páginas do documento original foram resumidas em 16 slides. Em uma linguagem mais suave, as preocupações continuavam lá. Mas o documento foi tratado pela cúpula do Ministério da Fazenda apenas como um ato de rebelião dos escalões inferiores.

Pouco mais de dois anos depois, em setembro de 2015, o rebaixamento da nota do Brasil ao grau especulativo foi anunciado pela Standard&Poor’s, principal agência de avaliação de risco soberano. O descrédito da política fiscal passou a ser considerado um dos principais fatores responsáveis pela recessão de mais de 3% projetada para este ano. As pedaladas fiscais foram reprovadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e alimentam a crise política enfrentada pela presidente da República.

Nos últimos três meses o Valor conversou com mais de 20 autoridades que ocuparam ou ainda ocupam cargos no governo e teve acesso exclusivo a documentos inéditos que permitem recontar a história fiscal do primeiro mandato da presidente Dilma.

O que é possível mostrar agora é que em momentos-chave, como o da adoção da contabilidade criativa de 2012, o esforço da área técnica do Tesouro para barrar novas operações em 2013 e a construção da fábrica de pedaladas de 2014, não faltaram avisos sobre os riscos que o país corria.


Momentos de tensão

O encontro de Arno com os 19 coordenadores-gerais do Tesouro, os seis subsecretários e seus assessores mais próximos para discutir o documento elaborado pelos técnicos com os avisos ao governo é um dos momentos mais tensos dessa história.

A reunião foi marcada para a tarde de 22 de novembro de 2013, na sala do Conselho Monetário Nacional (CMN), que fica no sexto andar do prédio do Ministério da Fazenda. O clima era pesado e ninguém se lembra de haver cafezinho ou de ter bebido água durante a reunião, dois ingredientes que raramente faltam nas reuniões da burocracia em Brasília.

A pauta do encontro tinha cinco itens. O primeiro “ponto de preocupação” era “o risco de ‘downgrade’ e seus impactos”. Os seguintes, a política fiscal e suas consequências; a imagem do Tesouro; e o aperfeiçoamento de processos internos. Por último, o “relacionamento interpessoal”, uma forma educada de se referir às explosões pelas quais o secretário Arno Augustin era evitado por sua equipe.

Naquele momento, quando a burocracia do Tesouro Nacional alertava para uma trajetória fiscal arriscada, a economia brasileira ainda era comandada pela “nova matriz macroeconômica”, definida por um câmbio artificialmente desvalorizado, juros reduzidos na marra e políticas anticíclicas de subsídios e desonerações setoriais.




TRECHO DO RELATÓRIO


Os sinais de que a estratégia não estava dando certo já eram visíveis. O Banco Central (BC) fora forçado a retomar os aumentos da Selic em abril para combater uma inflação que caminhava para o teto da meta, apesar do represamento das tarifas públicas. A receita do Tesouro ainda crescia 13,3% entre janeiro e novembro de 2013, mas as despesas voavam ainda mais altas, com crescimento de 14,1%, e o quadro fiscal já se anunciava mais sombrio porque o governo havia desonerado R$ 70,4 bilhões em impostos a preços da época. No front externo, o banco central dos EUA começara a retirar os estímulos monetários que vinha injetando na economia americana, o que prometia reduzir a abundância de capitais para países emergentes como o Brasil.

Escolhido por ser uma voz moderada dentro do corpo técnico do Tesouro, o então coordenador-geral de Planejamento Estratégico da Dívida Pública, Otávio Ladeira, abriu a reunião com Arno. Coube a ele o alerta de que a política fiscal já entrava numa trajetória insustentável. Quando foi apresentado o sexto slide com um gráfico que mostrava como o mercado vinha perdendo a referência de qual era a meta fiscal perseguida pelo governo, Arno deixou claro que havia convocado a reunião para pôr fim ao que considerava uma rebelião contra a política econômica e não para tratar de cenários fiscais. Enquanto Ladeira expunha a dificuldade de o governo atingir a meta de superávit primário de 2,3% do PIB em 2013, o secretário interrompeu: “Quem disse que não vamos cumprir a meta? O mercado pode projetar qualquer coisa. Eles fazem isso o tempo todo para ganhar dinheiro”, disse.

Hailton Madureira de Almeida, um dos assessores mais próximos a Arno, falou sobre um tema sensível: o desconforto que havia no Tesouro em assinar pareceres que contrariavam a opinião da área técnica, que receava os riscos jurídicos de subscreverem documentos que davam guarida a mágicas contábeis.

Arno matou no peito: cada um deveria escrever exatamente o que considerava correto e necessário. Se ele discordasse, faria um despacho contrário, decidindo como achasse adequado. Mesmo os mais críticos reconheceram naquela atitude a coragem do ex-secretário em assumir pessoalmente as decisões polêmicas.

A coordenadora-geral de Gerenciamento de Fundos e Operações Fiscais, Maria Carmozita Bessa Maia, foi escalada para falar das relações interpessoais. O temperamento do secretário pautava de tal forma a relação com os subordinados que funcionários cogitaram uma ação coletiva por danos morais, que nunca foi adiante. Para espanto de muitos, essa foi a parte mais leve de toda a reunião. “É a única coisa que eu concordo com vocês”, disse um Arno entre contrito e engraçado. Reconheceu que às vezes passava do limite e prometeu tentar domar o gênio.

Depois dos funcionários, foi a vez de Arno fazer uma apresentação. Sua tese era que a política fiscal era fundamental para garantir o crescimento econômico e não levaria o governo à bancarrota, como queriam fazer crer os técnicos do Tesouro.





Os subsídios, por exemplo, traziam retornos ao país. Exibindo um gráfico em que a taxa de investimento foi combinada à liberação de dinheiro subsidiado para o BNDES, Arno argumentou que sem o Programa de Sustentação do Investimento (PSI) a formação bruta de capital fixo do Brasil poderia ter caído para 13% do PIB. Em 2013, a taxa foi 20,9% do PIB. Também gastou tempo mostrando como o desemprego continuava baixo e provava a eficiência da política econômica.

Como das outras vezes em que fora alertado sobre riscos fiscais, o secretário lembrou que a política econômica é definida por quem tem votos e, ali, naquela sala, nenhum dos técnicos havia sido eleito. Quando a reunião vazou para a imprensa, Arno chamou os subsecretários a seu gabinete e, ignorando a promessa de domar o gênio, quis saber quem era o autor do vazamento. Ameaçou abrir processos disciplinares contra todos que “ficaram aí circulando essa apresentação”.

O ex-secretário desistiu da retaliação por concluir que daria mais combustível ao “motim”. Mas preparou o Tesouro para enfrentar as eleições de 2014 sob o mais estrito sigilo e com a política fiscal sob seu absoluto controle. Acabou ali a tentativa da burocracia do Tesouro de conter o processo de desajuste fiscal que deságua neste ano num déficit primário de R$ 119 bilhões, dívida bruta chegando a 70% do PIB e uma trajetória vista pelo mercado como insustentável. Procurados, nenhum dos servidores do Tesouro quis falar ao Valor.


Proximidade ideológica

O processo decisório do governo Dilma, e aí não apenas da política fiscal, foi marcado pela aversão ao dissenso. Ministros e servidores que participaram de decisões importantes descrevem reuniões longas, como 30 ou 40 participantes, em que questionamentos técnicos eram considerados afrontas ao projeto do governo e davam margem a broncas, em vez de discussões.

“Na primeira reunião para discutir qualquer assunto importante, várias pessoas falavam. Na segunda, menos gente. Da terceira em diante, a impressão era que não adiantava nada fazer ponderações. E aí quem discordava preferia ficar calado e deixar a presidente decidir”, conta um ex-ministro. “É um governo de muitas certezas e quase nenhuma dúvida”, complementa outra autoridade do alto escalão.

No primeiro ano do mandato da presidente, durante as discussões para a privatização dos aeroportos de Guarulhos, Viracopos (Campinas) e Natal, essa dinâmica ficou clara. A definição da taxa de crescimento do PIB que embasaria os cenários econômicos da concessão se transformou em um embate ideológico entre a ala desenvolvimentista radical — representada pelo secretário do Tesouro e a então ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann — e o resto do governo. Procurada pelo Valor, a ex-ministra não retornou às ligações.

Arno não aceitava usar um percentual para o crescimento do PIB durante os 20 ou 30 anos do período de concessão que fosse diferente da projeção oficial de crescimento de 4,5% ao ano em 2011. Não foi convencido nem mesmo pela evidência de que em dez anos essa projeção transformaria o aeroporto de Brasília, que no ano passado transportou 18,1 milhões de passageiros por ano, em um dos maiores do mundo. “Vocês são uns pessimistas. Não acreditam no futuro do país”, disse. A presidente Dilma arbitrou pessoalmente a disputa e a média do PIB usada nesses primeiros projetos é de 3,7% ao ano, com picos de crescimento de 5,5% em 2014 e de 4,41% em 2015.





Leandra Peres-Repórter

O preço do pão de queijo nos aeroportos também foi intensamente discutido. O problema, conforme descrição da ministra Gleisi, era que a alimentação, muito cara, não podia ser um empecilho às viagens dos eleitores da classe C que haviam passado a frequentar os aeroportos. A solução foi uma licitação em que as lanchonetes pagam aluguel abaixo do preço de mercado e oferecem um cardápio com 15 itens a preços mais baixos. Em Congonhas, o pão de queijo custava R$ 2,50 na tabela subsidiada de fins de outubro e R$ 5,00 nos demais estabelecimentos.

Arno passou, então, a ser visto pelos colegas de governo como a voz da chefe nas discussões internas. Ele sempre tratou a presidente Dilma como ela gosta de ser chamada, por “presidenta”. Integrantes do governo, no entanto, descrevem cenas pitorescas que mostram a proximidade dos dois. Em uma delas, o ex-secretário do Tesouro teve que se ausentar da sala de reunião para cumprir uma ordem de Dilma: “Arno, seu cabelo está desarrumado, vá lá arrumar”.

No Tesouro, Arno funcionava a Coca-Cola, café e cigarros. Quando deixou o governo em 2015, havia parado de fumar e passara a correr. Suas pistas favoritas eram as matas ao redor da cidade, aonde ia sem levar nem o celular. Um dia, quando ainda estava no governo, contou aos colegas da Fazenda que, ao voltar de uma corrida, o aparelho registrava 17 ligações de Dilma. “Tchê, acabou com meu relax”, disse, arrancando risadas. A característica mais marcante do ex-secretário é seu senso de missão. Nas entrevistas feitas pelo Valor para esta reportagem, Arno foi comumente descrito como “um homem de partido”, “um soldado”, “um cumpridor de tarefas”. “A presidente decidia e ele entregava”, descreve uma autoridade que trabalhou com os dois.

Essa determinação ficava ainda mais visível nas ocasiões em que, derrotado, não hesitou em implementar o que foi deliberado. No primeiro semestre de 2013, por exemplo, quando o governo discutia o lançamento do Minha Casa Melhor, criado para subsidiar a compra de móveis e eletrodomésticos por beneficiários do Minha Casa, Minha Vida, Arno dizia, entre jocoso e crítico, que a mesa listada entre os bens que podiam ser adquiridos no programa era mais cara do que a que ele tinha em seu apartamento. Ao corpo técnico do Tesouro repetia que “o cara não consegue pagar nem a casa, como vai pagar os móveis?”

Mas depois que a presidente bateu o martelo, Arno encontrou forma de financiar os eletrodomésticos sem tirar dinheiro à vista do caixa do Tesouro e sem impacto nas estatísticas de resultado primário: o Tesouro fez um empréstimo de R$ 8 bilhões à Caixa, responsável pelo programa, dos quais R$ 3 bilhões foram separados para cobrir a inadimplência do Minha Casa Melhor.

Não era apenas a fidelidade à presidente e o respeito à hierarquia que definiam as ações do ex-secretário. Colegas de Arno no governo dizem que havia uma proximidade ideológica entre os dois. Economista formado pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o ex-secretário é um desenvolvimentista que acredita na interferência direta do Estado na atividade econômica e tem grande desconfiança do mercado financeiro.

Segundo depoimento ao Valor, o ex-secretário tratava as agências de rating como um instrumento “usado pelos países ricos para impedir políticas de desenvolvimento” de países pobres. A participação de 49% da estatal Infraero nos aeroportos privatizados foi definida pela necessidade de “o governo participar do dia a dia da empresa” porque o governo considerava as agências reguladoras instrumentos ineficazes de supervisão. Como define um ex-ministro: “A presidente achou no Arno alguém que pensa como ela”.

Com o ministro Guido Mantega, Arno formou uma dupla curiosa: ele nunca desautorizou o chefe, apesar de ambos saberem que o secretário do Tesouro tinha voo próprio e respondia diretamente à presidente. Quando a economia começou a dar sinais de desaquecimento em 2012, a resposta do governo veio na forma de mais e maiores estímulos anticíclicos. E no governo a personificação das políticas de desonerações fiscais e empréstimos subsidiados não foi Arno, mas Mantega.


A política fiscal da era Mantega


















Desde 2008, quando demitiu Jorge Rachid da Receita Federal, o ministro havia reduzido o poder da autarquia para definir a política tributária e transferido para a Secretaria de Política Econômica (SPE), comandada à época pelo hoje ministro do Planejamento, Nelson Barbosa.

Em 2012, a Fazenda também viveu uma disputa feroz pela cadeira de ministro entre Mantega e Nelson Barbosa, que havia sido transferido para a secretaria-executiva do ministério. Barbosa, que também tinha interlocução direta com Dilma e foi o formulador de programas como o Minha Casa, Minha Vida, acabou derrotado por Mantega e deixou o governo em maio de 2013. Um dos momentos de embate mais intensos no Ministério da Fazenda ocorreu quando o governo decidiu ampliar a desoneração da folha de pagamentos para o comércio varejista e a construção civil.

Os estudos mostravam que em cinco anos após a desoneração, algumas empresas do varejo estariam pagando mais com a nova regra do que ficando no sistema anterior. Além disso, o ganho acabaria se transformando em margem de lucro das empresas. “As desonerações nunca foram tratadas como um risco fiscal. Eram discutidas apenas como estímulo ao crescimento”, descreve uma autoridade.

Ainda em 2012, o governo também acelerou a liberação de financiamentos a Estados e municípios sob o argumento de que os recursos financiariam investimentos e, portanto, contribuiriam para o crescimento econômico. Foram autorizados R$ 145,7 bilhões em novos financiamentos durante o primeiro mandato da presidente Dilma.

A generosidade do Tesouro nesse período foi marcante. Um ex-secretário de Fazenda relatou ao Valor como levou uma bronca de seu governador por ser “conservador” nos pedidos de empréstimo. A estratégia do governador, ao chegar ao Ministério da Fazenda para reunião com Mantega, era pedir o dobro do necessário, prevendo que o Tesouro iria regatear o valor. Terminado o encontro veio o puxão de orelha ao secretário: “Você é um bobo! Eu pedi o dobro e eles liberaram quase o triplo!”

De acordo com os dados que o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, apresentou ao Congresso neste ano, o dinheiro liberado aos governadores não financiou investimentos, como a antiga equipe econômica esperava. Segundo Levy, entre 2011 e 2014 o montante investido pelos Estados caiu de 1,3% do PIB para 1,02% do PIB. O que subiu foi o gasto com pessoal, que passou de 4,76% do PIB em 2011 para 5,5% do PIB em 2014.

A partir de 2012, os subsídios bancados pelo Tesouro nos financiamentos concedidos pelo BNDES também explodiram depois que o governo reduziu a menos da metade os juros de uma das principais linhas de crédito, o PSI, de 5,5% ao ano para 2,5% ao ano. A medida, patrocinada por Mantega, não era consenso. Arno, por exemplo, discordava da magnitude do subsídio. Mais uma vez a decisão coube ao Planalto.

O governo não podia ignorar que desconhecia o tamanho da fatura que estava criando para o Tesouro, mostra a nota técnica 01/2014 da Coordenação-Geral das Operações de Crédito do Tesouro Nacional (Copec), que hoje integra o processo de julgamento das pedaladas pelo TCU e ainda não havia vindo a público.




TRECHO DO RELATÓRIO


Os técnicos do Tesouro alertam novamente para um “cenário preocupante de contínua elevação desse passivo junto a instituições financeiras” porque o governo vinha acumulando restos a pagar crescentes e desembolsando menos do que o que vencia a cada ano. A portaria ministerial que autorizou o Tesouro a adiar por 24 meses a contabilidade dos subsídios — e mais tarde foi considerada irregular pelo TCU — permitiu que o governo jogasse para a frente uma despesa de R$ 6,3 bilhões entre 2012 e 2013. O documento estima que a conta de subsídios poderia chegar a R$ 62 bilhões no fim de 2016.

Há uma página inteira somente com sugestões para resolver o problema e a recomendação de que o assunto fosse levado “ao conhecimento do senhor Secretário do Tesouro Nacional, de forma que sejamos orientados sob (sic) a estratégia a ser adotada na solução da situação aqui exposta”. Relatos feitos ao Valor dão conta de que o assunto foi apresentado a Arno em mais de uma ocasião e nunca houve resposta.

A pressão dos gastos descontrolados sobre o resultado fiscal de 2012 já havia sido percebida pela área técnica do Tesouro em agosto daquele ano. Dois meses depois, em outubro, a avaliação era de que a meta fiscal de 2,3% do PIB era inatingível, mesmo usando todas as deduções permitidas em lei. Arno, no entanto, não se mostrou sensível às projeções de seus auxiliares.

Foi somente na primeira semana de dezembro, depois de uma reunião em seu gabinete com o subsecretário Marcus Pereira Aucélio, que cuidava da parte fiscal, e o sub Paulo José Souza, que Arno se convenceu de que tinha um problema fiscal. E passou a agir.

Antes do recesso natalino, o Tesouro havia montado uma operação de triangulação entre a Caixa Econômica Federal e o BNDES para viabilizar o pagamento de R$ 7 bilhões em dividendos, além do saque de R$ 12,4 bilhões do Fundo Soberano para garantir o “cumprimento” da meta, o que levou o termo “contabilidade criativa” a novos níveis. “O Mantega queria atingir a meta de superávit primário no fim do ano, não importava como”, diz um ex-integrante do governo.

A contabilidade foi tão atípica que autorizações legais foram publicadas com data retroativa no “Diário Oficial da União” e, pela primeira vez na história, o Tesouro recebeu autorização para fazer um contrato de derivativos. Raphael Rezende, então vice-presidente de risco da Caixa, por onde foi montada uma capitalização de R$ 5,4 bilhões com ações em troca de dividendos, exigiu que a engenharia financeira fosse submetida à diretoria do banco, uma vez que o recebimento de ações em troca de dividendos piorava a qualidade de capital do banco. Arno e o então presidente da Caixa, Jorge Hereda, trataram do assunto diretamente. O banco, em resposta ao Valor, disse que a capitalização ocorreu de forma regular e foi aprovada por “todas as instâncias de governança da Caixa”. Por meio de assessoria, Rezende, que hoje está no Ministério da Integração Nacional, preferiu não comentar o assunto.

Quando as críticas às manobras fiscais começaram a incomodar, Dilma exigiu explicações públicas. Mantega interrompeu as férias numa praia do Nordeste e disse ao Valor: “Tudo o que foi feito é legítimo e está dentro das normas legais”.

A fábrica de pedaladas do Tesouro já existia muito antes da chegada de Arno. No documento produzido pelos técnicos do Tesouro em setembro de 2013, a primeira operação é de 1996, durante o governo Fernando Henrique Cardoso: uma aquisição de R$ 646 milhões de créditos da extinta Rede Ferroviária Federal pela União. Há outras 18 pedaladas citadas sob o título “Perda da Credibilidade Fiscal — Quadro Resumo”.


A credibilidade em questão – 1
Um resumo até 2002*





Com a tecnologia em mãos e sem dinheiro em caixa, o Tesouro passou a atrasar sistematicamente os repasses de recursos para a Caixa pagar o seguro-desemprego e o abono salarial ainda no segundo semestre de 2013, depois que as manifestações populares de junho fizeram a popularidade presidencial despencar.

O então vice-presidente de Governo da Caixa e hoje ministro da Integração Nacional, Gilberto Occhi, assinou ofícios pedindo a liberação de recursos ao Tesouro ao longo do segundo semestre de 2013, o que causou irritação e levou Arno a reclamar com a direção do banco federal. Por meio de assessoria, Occhi disse que não faria comentários sobre o assunto.

Em 26 de dezembro de 2013, a diretoria de Serviços de Governo do banco enviou o ofício 0027 à Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal, que funciona sob o comando da Advocacia-Geral da União (AGU) cobrando exatos R$ 1.799.685,52 em atrasos nos repasses do seguro-desemprego. Não adiantou e em 2014 a situação da Caixa se agravou ainda mais.

O ano de 2014 foi pautado na economia por uma deterioração progressiva das expectativas dos agentes financeiros e produtivos. A meta de superávit primário de 3,1% do PIB, considerada uma ficção desde o início do ano, foi revista duas vezes e o governo acabou registrando um déficit. A inflação foi de 6,4% no ano e o Banco Central elevou os juros até 11,75%. No início de setembro, Dilma “demitiu” o ministro Mantega pela imprensa e o país ficou mais de três meses sem uma liderança clara na Fazenda.

No Tesouro Nacional, Arno havia limitado ainda mais o fluxo de informações. As estimativas de receitas, por exemplo, deixaram de ser repassadas aos subsecretários. O comitê que fazia projeções fiscais deixou de se reunir. O secretário continuou a controlar diretamente cada um dos pagamentos realizados pelo Tesouro Nacional.

Assim como já haviam feito em 2013, o então subsecretário Marcus Aucélio e o diretor de programas, Paulo José Souza, responsável à época pelo caixa do Tesouro e hoje subsecretário da área fiscal, tinham reuniões diárias com Arno: apresentavam a posição de caixa do governo e os pagamentos do dia. O secretário escolhia, então, o que seria pago e a Caixa era quem costumava ficar sem repasses do Tesouro. Aucélio e Souza preferiram não se manifestar.

O governo já discutia as pedaladas fiscais na Caixa muito antes de agosto, quando o assunto veio a público. Durante todo o primeiro semestre de 2014, a pressão foi crescente para que o Tesouro regularizasse os pagamentos, sem nenhum efeito. Somente depois de as pedaladas virarem assunto de jornal é que o governo regularizou a situação.

No início de 2014, quando o conselho de administração do banco se reuniu para aprovar o balanço da instituição de 2013, houve uma preocupação imediata em saber se o atraso nos repasses pelo Tesouro não podiam ser classificados como uma operação de crédito, vedada pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). O Departamento Jurídico da Caixa entendeu que havia respaldo nos contratos com o governo para essas operações.

A essa altura, o BC também estava questionando o banco, com base nos dados do balanço de 2013. A fiscalização viu, em 31 de dezembro de 2013, que a subconta do balanço da Caixa que registrava os pagamentos de benefícios sociais e normalmente tinha saldo negativo na casa de R$ 80 milhões estava vermelha em R$ 2,971 bilhões.

Internamente, a ordem de Arno era ignorar os pedidos não apenas da Câmara de Conciliação da AGU como também da própria Caixa e do BC. Ele se baseava na certeza de que não fazia nada ilegal e os contratos de prestação de serviços do banco com os ministérios setoriais previam o atraso e a remuneração pelo uso do recurso próprio. Quando a temperatura subia, Arno era taxativo: “A Caixa não é obrigada a pagar. Se quiser é só não fazer o pagamento”, disse mais de uma vez. Uma decisão inviável que criaria uma crise sem precedentes para o governo, sem falar no risco para a imagem da própria instituição.

O auge da crise entre o Tesouro e o banco oficial se deu entre maio e junho de 2014. O presidente da Caixa deixou de falar com Arno sobre o assunto. Hereda comunicou a Mantega e ao então ministro-chefe da Casa Civil, Aloizio Mercadante, o risco que o governo corria. O desconforto era tamanho que o Conselho Fiscal da Caixa chegou a ameaçar uma renúncia coletiva. O banco negou o fato em resposta ao Valor, mas a informação foi confirmada ao jornal por duas fontes diferentes — uma delas uma autoridade que participou diretamente das conversas.

Em julho, a pressão sobre Arno aumentou. No dia 10 daquele mês, o jornal “O Estado de S. Paulo”, publicou matéria dizendo que o resultado do Tesouro de maio havia sido inflado em R$ 4 bilhões por uma “conta paralela” mantida por um banco privado. “Esse episódio foi fundamental porque mudou a dinâmica no governo”, descreve um técnico que acompanhou o debate. “A discussão que vinha sendo feita internamente, nos bastidores e em reuniões informais, ganhou urgência”, afirma outra autoridade que conhece bem o assunto.

Com a questão envolvendo bancos privados, o BC fez um pente-fino nos contratos entre o governo e o sistema bancário. Descobriu-se que o secretário do Tesouro “pedalava” também os pagamentos das aposentadorias feitos pelos bancos privados. O saldo negativo variava entre R$ 200 milhões e R$ 600 milhões, ficava descoberto por poucos dias e sempre na virada do mês para engordar o superávit primário. “Quando o Tesouro ia pedalar, o Marcus Aucélio ligava para o Murilo Portugal [presidente da Febraban] e avisava que a operação ia ser feita”, afirma uma autoridade. Isso ocorreu entre fevereiro e maio de 2014.

Pagamentos

O pagamento das pedaladas foi tema recorrente das reuniões entre os ministros Luís Adams (AGU), Mantega (Fazenda) e Alexandre Tombini (BC) durante esse período. Havia pressão dos ministros para que o Tesouro acertasse a conta com o banco estatal e Adams chegou a ter uma reunião a sós com Arno. “O Arno nunca enxergou o risco que estava correndo e nunca concordou que estivesse expondo o governo”, resume um integrante do alto escalão que acompanhou parte das negociações. “Ele simplesmente enrolava, não pagava”, descreve outra autoridade com participação nas conversas.

O BC disse ao Valor que todos os esclarecimentos técnicos e jurídicos sobre as pedaladas foram dados ao TCU. O advogado-geral da União informou que não se manifestará sobre o assunto. Mercadante afirmou não se recordar de encaminhamento da Caixa sobre o assunto e acrescentou que todas as demandas formais recebidas pela Casa Civil eram encaminhadas. A Caixa esclareceu em nota que “não houve empréstimo e, portanto, não se trata de descumprimento de legislação”.

Mantega, por meio de assessores, informou que “atrasos ou postergações não configuram violação à lei fiscal, tanto que todos os governos fizeram. Não houve financiamento dessas instituições financeiras ao governo”.




TRECHO DO RELATÓRIO


O Banco do Brasil também tentava receber do Tesouro. A Diretoria de Governo do banco faz referência a uma reunião de 18 de fevereiro e estima os atrasos na equalização do crédito rural em R$ 7,588 bilhões. Esse ofício faz parte de uma nota técnica produzida pelo Tesouro que também está anexada ao processo das “pedaladas” no TCU. No documento, os técnicos fazem uma ressalva no caso do BB: “Além dessa dívida, há aproximadamente R$ 1,3 bilhão referentes a remuneração, bônus e rebates que se encontram em processo de verificação de valores. Ou seja, a dívida total com o BB é de aproximadamente R$ 9 bilhões”.

Com ações em bolsa de valores, investidores privados e não sendo integralmente do governo, o BB não poderia ter suas cobranças ignoradas. A estratégia de Arno era pedir um “acerto de contas” com o Tesouro, já que a instituição financeira tem dívidas com a União que nunca foram equacionadas. Em resposta à reportagem, o BB afirmou que “não subsidia o financiamento rural” e explicou que os valores devidos como subvenções são disciplinados em portarias da Fazenda, “sendo os pagamentos realizados de acordo com a programação orçamentária e financeira do Tesouro Nacional”.

A preocupação de Arno ao longo de 2014 era produzir números bons na área fiscal para não prejudicar o debate eleitoral. “Tudo no governo em 2014 foi decidido e pensado considerando o calendário eleitoral”, diz um integrante do primeiro escalão à época. “O Arno não pagava a Caixa porque queria um resultado fiscal melhor. Achava que isso melhorava as expectativas às vésperas da eleição”, confirma um colega do ex-secretário.

As contas públicas de 2014 mostram uma deterioração grave a partir de maio desse ano. Mas os dados levantados pelo TCU mostram que o quadro real era muito pior. De janeiro a julho, mês em que começou a campanha eleitoral, as estatísticas oficiais indicavam um superávit de R$ 24,6 bilhões no setor público consolidado. Se o efeito das “pedaladas” tivesse sido abatido, o superávit primário nesse período seria quatro vezes menor: apenas R$ 6,3 bilhões. Dito de outra forma, o resultado das contas públicas estava inflado em 290,5%.


A credibilidade em questão – 2
A situação de 2008 a 2013*




As informações do Tribunal de Contas mostram que, a partir do segundo semestre de 2014, os saldos negativos na Caixa foram se reduzindo. Em agosto, o BC também incluiu as “pedaladas” no cálculo do resultado do setor público, anulando o efeito prático das manobras do Tesouro. Esses dados, no entanto, só foram divulgados nos últimos dias de setembro, às vésperas do primeiro turno das eleições. É que há uma defasagem de um mês entre a apuração do resultado das contas públicas e sua publicação pelo Tesouro e pelo BC.

Na medida em que os pagamentos foram regularizados, o governo teve que abrir mão da meta fiscal de 2014: produziu um déficit de R$ 32,5 bilhões ou 0,59% do PIB, mas não pagou a conta inteira. De acordo com o Tesouro Nacional, em 30 de junho de 2014, ainda havia um rombo de R$ 57 bilhões. Passada a eleição, já em novembro, Mantega discutia em almoço com a equipe da Fazenda as consequências que poderia sofrer por haver referendado a política de represamento de preços dos combustíveis enquanto ocupava a presidência do Conselho de Administração da Petrobras.

Arno argumentou que não havia motivos para preocupação porque o governo é o acionista controlador e o ministro, como representante, podia ditar a política de preços. O ministro, então, foi taxativo: “Quando eu estou como conselheiro da empresa, Arno, o meu compromisso é com a empresa”.

O ex-secretário rebateu e Mantega, numa das poucas vezes em que elevou o tom de voz, disse que Arno estava errado. O diálogo, que poderia ser interpretado apenas como uma diferença de opinião, deixou outra impressão aos participantes da conversa. O “soldado” Arno continuava pronto para novas batalhas.

A disposição de Arno só enfraqueceu quando Joaquim Levy foi confirmado ministro da Fazenda. Arno estava inconformado com a mudança de rumo anunciada pela chegada de um ministro ortodoxo. Antecipando a guinada na política econômica, dizia sem muita preocupação com quem iria ouvir: “Fizemos tudo o que ela pediu e agora ela nomeia o Levy? Isso não vai dar certo. Eu a conheço”. O ex-secretário não falou ao Valor, apesar dos esforços da reportagem.


Nada bom, nem para baixo nem para cima