quarta-feira, outubro 07, 2015

Concurso de mentiras - ROBERTO DAMATTA

O GLOBO - 07/10

Competidores eram craques. Jamais hesitavam nas patranhas e pouco gesticulavam ou ficavam descontrolados


Um concurso foi organizado para descobrir o maior mentiroso do mundo. Como todos mentimos, a questão era a de patentear as diferenças flagrantes, não as filigranas que nos fazem falsos e traidores.

Como atração, os participantes teriam duas semanas em hotel de luxo, além das melhores comida, bebida e companhia. Os mentirosos inscritos combinaram de mentir mentindo para que o mais mentiroso somente surgisse como vencedor no último dia e hora do conclave.

Os organizadores sabiam que a mentira era uma moeda corrente. Sabiam igualmente que havia países onde a verdade se contrapunha cabalmente à mentira, mas conheciam outros onde mentira e verdade eram o tijolo da vida pública e a primeira praticada por profissionais, pois, se a verdade fosse a norma, o conjunto entraria numa grave crise..

Ninguém ignorava que a mentira e a verdade nem sempre correspondiam ao falso e ao verdadeiro porque uma mentira bem contada virava verdade e lei; e grandes e extravagantes mentiras — tais como “eu não tenho preconceito”, “jamais roubei”, “tudo foi feito dentro da lei”, “eu não sabia” — podiam, com o tempo, virar verdades.

Antes dos geniais publicitários, eles bem sabiam que uma mentira tornava-se verdade quando repetida e que uma verdade podia virar mentira caso fosse associada a uma sistemática ausência de sinceridade — esse tremendo confronto de fatos que assola quem busca ser verdadeiro.

Sabia-se que a luta entre verdade e mentira era fundacional do universo humano. A mentira do Oeste podia ser a verdade do Leste, e a lorota do Sul, artigo de fé no Norte. Como saber quem somos, se não acreditarmos em mentiras, reiteravam sérios os 11 membros do Supremo Conselho Transcendental da Mentira? Quando se proferia “eu minto!”, falava-se uma verdade ou uma mentira? Antes de existir sociedade, argumentavam, já existia a mentira que não era uma questão de história ou cultura, mas de ontologia.

O concurso tinha o alto patrocínio de um banco local, que se concebia mentirosamente como pobre para justificar a verdade da roubalheira dos seus diretores ricos e mentirosos. O mito do país pobre escondia a burla dos programas feitos para os pobres. Mas isso, riam entre si, seria uma enorme mentira verdadeira ou uma extraordinária verdade mentirosa?

Para o concurso, foram congregados cem mentiroso qualificados por meio de documentos falsos. Como estamos cansados de saber, a mentira tem requisitos, vestimentas, caras, rituais e gestos adequados.

Os competidores eram craques. Jamais hesitavam nas patranhas e pouco gesticulavam ou ficavam descontrolados, pois sabiam que a sinceridade e a fala nervosa e tremulante eram mais amiga dos pobres do que dos bem postos e estes, por oficio e destino, eram obrigados a mentir naquela terra de mentira. E onde se mentia para todos e muito mais para si mesmo, pois a automentira, que levava à riqueza, à fama e ao poder, era parte permanente dos seus sonhos e projetos.

— Que venha o primeiro mentiroso! —ordenou o presidente da comissão de dentro do seu terno impecável de falsa casimira inglesa.

Os cem mentirosos se entreolharam confirmando o combinado de mentir, mentindo para prolongar o gozo das benesses prometidas. Não deveria ocorrer uma mentira traiçoeira, pois, mentindo, todos ganhavam.

Após as palavras solenes da abertura, um velho mentiroso caminhou até a tribuna. Olhou em volta, deu um trago no seu mata-rato e soltou em alto e bom som a sua mentira:

— Eu nunca toquei punheta!

Um enorme urro de decepção saiu do peito dos mentirosos. Estava acabada a farra programada. Adeus às libações e bródios em companhias agradáveis que todos esperavam. Traição, pensaram alguns. Mentira, gritaram os mentirosos. Anulem a fala, queria um outro grupo. A mentira inaugural acabara com o concurso antes mesmo do seu começo.

Mas quando os juízes se preparavam para conceder o primeiro lugar ao mentiroso indiscutivelmente verdadeiro, eis que se escuta um berro do outro lado da assembleia:

— Eu jamais tive contas bancárias no exterior! — disse um senhor mentiroso, tentado pela verdade que media suas palavras.

PS: Como tudo isso é uma mentira da mentira, deixo para os queridos leitores e leitoras, bem como para todos os que ficam entre eles, a decisão final. Pois os especialistas em mentira não sabiam de verdade quem era o vencedor desse concurso.

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