quinta-feira, outubro 02, 2014

Eleição é coisa séria - NELSON PAES LEME

O GLOBO - 02/10


Ninguém, em sã consciência, nomeia um bandido para seu procurador privado. Por que o desdém com a outorga pública a mandatários representada pelo voto?


Os indivíduos de uma espécie dispõem de movimentação própria limitada e pouco perceptível, como a rotação da Terra, por exemplo. Tudo o que ocorre entre os indivíduos, até o sexo e a alimentação, é decorrência de imposição anterior das próprias espécies e da movimentação coletiva à qual pertencem. Os pensadores sociais que mais se aproximaram dessa constatação singela, no caso da espécie humana, foram Durkheim, com sua “consciência coletiva”, e Jung, com seu “inconsciente coletivo”. Há uma ordem universal preconcebida e preestabelecida com rigor imutável que torna o indivíduo de qualquer espécie dependente desta, mesmo depois de morto biologicamente. Isto porque a morte de um indivíduo não significa a morte da espécie, como comprovação incontestável dessa hipótese. Já o contrário é inexorável: a extinção de determinada espécie não consegue poupar seus indivíduos, o que é outra prova dessa interdependência entre o monos e a polis, como assinalam os filósofos pré-socráticos em seus preciosos fragmentos. Portanto, as coletividades estão hierarquicamente acima das individualidades. A polis grega é a matriz, até semântica, da ciência política, como é sabido. E nessa matriz, o voto das coletividades em torno de uma liderança candidata (vindo de candura e não de arrogância ou prepotência) é a maneira mais adequada e eficaz da representação individual e coletiva ao mesmo tempo. O mandato que se outorga a um representante, nas democracias, deve ser revestido até de maior solenidade e de maior responsabilidade do que os poderes que se outorgam a alguém, no plano individual, por uma procuração, para representação na vida privada.

Ninguém, em sã consciência, nomeia um bandido, um marginal ou mesmo uma pessoa de caráter duvidoso para ser seu procurador privado. Por que, então, esse desleixo e até esse desdém com a outorga pública a mandatários representada pelo voto? Ao contrário, o mandato público requer até muito maior cautela e consciência que o mandato privado. O mandatário público, ao inverso do privado, lidará com verbas na casa de bilhões e, às vezes, trilhões. Um mandatário privado se restringe, no máximo, a milhares ou a milhões. O mandatário público lida com a saúde, a educação, a segurança, a energia, o transporte, a água, a fiscalização dos alimentos, a infraestrutura, a moeda, o crédito, a preservação do meio ambiente e a qualidade do ar que respiramos, entre tantas outras relevâncias. Um mandatário privado nunca se ocupa de temas tão abrangentes. Muitas vezes o mandato privado se restringe a um único e específico ato.

Quando um mandatário privado lesa seu outorgante, vira procurador infiel e se submete aos rigores da lei. Mas isso é muito raro se comparado aos desmandos e à corrupção generalizada constatados nos mandatários públicos. No Brasil da impunibilidade geradora da impunidade, essa prática já virou quase regra. Dilapida-se a coisa pública, os bens e o dinheiro públicos com a mais completa desfaçatez (e até cinismo) sem qualquer punição imediata. Com as raras e honrosas exceções de praxe. De quem é a culpa primeva? Óbvio que do eleitor. Do outorgante do mandato público irresponsável e leviano. Em duas palavras: nossa culpa.

Desde o fim da ditadura militar, elegemos pelo voto universal direto e secreto (essa nossa procuração pública outorgada na solidão da cabine eleitoral e no sigilo da urna lacrada) apenas quatro mandatários para dirigir nossos destinos. O primeiro deles vinha ungido pela mística da mudança e foi deposto nas ruas por corrupção. Assumiu o vice, que evitou o retrocesso institucional. O segundo, um intelectual de peso internacional, governou por dois mandatos, reformou a economia e consolidou a democracia, mas não conseguiu fazer seu sucessor. O terceiro, um operário sindicalista, também em dois mandatos, promoveu um simulacro de crescimento e de integração social, mas sua equipe central foi parar na cadeia. A quarta, uma técnica da mesma burocracia partidária, sem qualquer experiência como mandatária, entrega um país pior do que encontrou. Estamos às vésperas de eleições gerais no Brasil. Ainda dispomos de leis muito precárias e de instituições muito tíbias e muito frágeis em nossa infante democracia. Cabe a nós, coletivamente, o aperfeiçoamento dessas leis e dessas instituições para reger o político, o social e o econômico. E não há outro caminho senão a representação, o mandato, o voto consciente e ponderado, abstraído do “marketing político”, essa aberração cosmética produzida em estúdios como qualquer personagem novelesca de ficção. Já conseguimos a Lei da Ficha Limpa e isso foi conquistado através de incisiva campanha coletiva. O voto consciente é o desdobramento natural da ficha limpa, nesse sentido. Se cada brasileiro conseguir dois votos conscientes dessas pobres vítimas do fisiologismo corporativista e do paternalismo clientelista e eleitoreiro, certamente teremos uma representação bem melhor do que esta que substituiremos nesse próximo pleito. Por isso, a política é importante e transcendental. E, nela, o voto consciente e cauteloso é, por certo, a maior arma de defesa dos verdadeiros interesses dos indivíduos e da coletividade. Um tema sério para a reflexão autocrítica de cada eleitor.

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