segunda-feira, junho 02, 2014

'Mapa Dibujado por un Espía' - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 02/06

Todos movimentos socialistas começam dizendo que amam a liberdade e acabam matando quem discorda deles


Literatura é um documento histórico? Para mim, a literatura é um documento antes de tudo porque "brota" do solo de uma época, dos modos de vida, das ansiedades, das práticas morais e políticas. Enfim, da "matéria social e psicológica" de quem escreve.

Entretanto, a verdade histórica é mesmo um drama. Existe "fato histórico"? Aliás, como nos ensinou George Orwell em seu brilhante "1984", podemos criar um passado (ou um presente) que não existe, a fim de fazer as pessoas esquecerem o que queremos que esqueçam ou acreditem no que queremos que elas acreditem. A nossa Comissão da Verdade está bem no olho do furacão deste debate. Professores de história ensinam o que querem, contanto que façam a cabeça dos alunos do jeito que querem.

Proponho que todo mundo que queira ter uma ideia do que foi e é Cuba, para além da propaganda ideológica ainda em curso em nossas terras neolíticas, leia Guillermo Cabrera Infante (1929-2005), escritor cubano, mais tarde naturalizado e radicado na Inglaterra devido aos conflitos com a ditadura cubana, "nuestra camarada".

Entre vários títulos, leia "Mapa Dibujado por un Espía", da editora de Barcelona Galaxia Gutenberg, de 2013 ("mapa desenhado por um espião", numa tradução direta). Creio, ainda sem publicação no Brasil.

O livro, publicado postumamente por sua mulher Miriam Gómez, é um documento do ano de 1965 em Havana. Os especialistas discutem se teria sido escrito em 1973 ou antes. Antoni Munné, que faz o prefácio desta edição, suspeita, devido a inúmeros detalhes biográficos de Cabrera Infante, que é mais provável que tenha sido escrito antes de 1968.

O autor, que vivia então na Bélgica como funcionário diplomático, volta a Havana (cidade profundamente amada por ele) devido à morte de sua mãe. E aí começam suas agruras. O livro pode ser lido pelo viés de como Cabrera Infante passa esses quatro meses e pouco em Havana, sem conseguir sair, dormindo com inúmeras mulheres. Mas pode ser lido também como um documento do dia a dia de seus amigos, sua família e dele mesmo.

Uma coisa que chama atenção é o progressivo sistema de controle do comportamento que a ditadura cubana cria por meio de seu Ministério do Interior e seu departamento de "lacras sociales" (vícios sociais). Por exemplo, suspeitos de homossexualidade eram acompanhados diariamente porque eram considerados praticantes de vícios burgueses. Para os revolucionários, os gays eram uma doença social, não muito diferente do entendimento que alguns pentecostais famosos no Brasil têm dos gays.

Cabrera Infante é retirado do avião quando ia voltar para Bruxelas, sem que uma razão seja dada, apenas ordem do Ministério do Exterior (Minrex), no qual ele trabalhava.

Meses passam sem que tenha qualquer resposta da razão de ele ter sido tirado do avião. Ele vai inúmeras vezes ao ministério, mas sem que seja atendido pelas autoridades revolucionárias. Assim é sua aventura kafkiana. Regimes burocráticos movidos pela certeza de representar o "bem social" costumam ser inacessíveis.

Num diálogo especialmente elucidativo, o autor ouve de uma alta patente revolucionária, Haydée Santamaría, qual o entendimento da revolução com relação aos seus supostos 15 mil inimigos presos: "La Revolución no cuenta a sus enemigos sino que acaba con ellos". Todos os movimentos socialistas que começam dizendo que amam a liberdade, a democracia e a justiça social acabam matando todo mundo que discorda deles.

A comida era pobre (basicamente vegetais) e repetida. Todo dia a mesma coisa. Faltava água (banhos eram uma raridade) e apenas a aristocracia revolucionária tinha acesso a carne e luxos semelhantes. A medicina, um lixo, como é até hoje. Café, uma festa! "Radiolas" não funcionavam por falta de baterias (pilhas). Ninguém confiava em ninguém.

O regime chegou a pensar em retirar o pátrio poder das famílias e fazer das crianças "filhos da revolução". Enfim, o horror que quem conhece a história do século 20 sabe, mas que começa a ser omitido para os alunos em suas aulas de história no Brasil.

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