quinta-feira, fevereiro 06, 2014

Sartre e Flaubert, idiotas - MARIO SERGIO CONTI

O GLOBO - 06/02

Acabou a história de refazer a vida e mudar a sociedade. Flaubert e Sartre continuam vivos como exemplo de idiotas ultrapassados


Nunca é tarde. Quarenta e dois anos depois da sua publicação chega ao Brasil “O idiota da família”, o último livro de Jean-Paul Sartre. O notável trabalho da editora L&PM e da tradutora Julia da Rosa Simões recoloca em circulação as ideias de um intelectual do século XX a respeito de um artista do XIX, Gustave Flaubert. O livro é, pois, a síntese de duas vidas maiores e de dois séculos. É o choque da arte pela arte de Flaubert com a literatura engajada de Sartre. O seu método é o da confluência do marxismo com psicanálise, de modo que o estudo não dilua o indivíduo na sociedade. “O idiota da família” é um fracasso monumental.

Começa pela sua legibilidade. São três volumes (publicou-se aqui por enquanto o primeiro) e três mil páginas, com notas explicativas rarefeitas e mirradas indicações bibliográficas. Prossegue no seu arcabouço: “O idiota da família” é a continuação do prefácio que Sartre escreveu no final dos anos 50, intitulado “Questões de método”, para um livro de filosofia que não chegou a terminar, “Crítica da razão dialética”. E termina que o livro não termina. Ele acaba no melhor da história.

A ideia de Sartre era investigar a formação de Flaubert, da sua história familiar à constituição como prosador, e concluir o trabalho com a análise de “Madame Bovary”. A última parte não foi feita porque Sartre teve um ataque cardíaco em 1971, ficou debilitado e, posteriormente, cego. Ademais, com a radicalização desencadeada a partir da greve geral do Maio de 1968, ele aplicou na política toda a força de que dispunha. Explicou-se assim: o engajamento não é a palavra, é a ação.

O livro parte de uma pergunta singela: o que se pode saber de um homem, hoje em dia? Poderia ser qualquer homem. Sartre escolheu Flaubert porque havia inúmeros documentos sobre a vida do romancista, os 13 volumes de sua correspondência e seus primeiros escritos. E também porque, depois da incompreensão na infância ao ler “Madame Bovary”, Sartre veio a ter empatia pelo seu autor. A empatia é melhor que a simpatia e a antipatia.

Nas mãos de um biógrafo convencional, a vida de Flaubert resultaria num volume apimentado de anedotas e fofocas sobre um indivíduo de gênio, e mais um escândalo iria parar na lista dos livros bem vendidos. Com Sartre, não. Ele está longe tanto do comercialismo como do materialismo vulgar. Escreveu um romance filosófico no descrê do protagonista. Prefere chamar o indivíduo Flaubert de “universal singular” — o homem que é universalizado pela história e por sua época, pelo passado e o presente, e nele interfere por meio da sua singularidade.

A história do escritor é passada pelo crivo da psicanálise. Isso está fora de moda, mas é real: a existência precede a essência; as chagas do passado apodrecem no presente; o adulto é fruto do que lhe aconteceu na infância. Sartre mostra que o pai de Flaubert era autoritário e remoto. Já a mãe queria que na sua segunda gravidez, depois do primogênito desejado pelo patriarcalismo, viesse uma menina. Tinha até escolhido o seu nome. Seria Caroline como ela, para superar a morbidez que ela própria viveu na infância. Mas veio Gustave, e só anos depois Caroline, a queridinha.

Flaubert, o indesejado filho do meio, não foi amado pela mãe; e a imago paterna lhe era uma sombra. Desenvolveu uma apatia neurótica cujo primeiro sintoma foi a demora em ler, que só aprendeu aos 7 anos. Por isso, era chamado na família de “retardado”. Teve uma primeira crise nervosa com vinte e poucos anos, que lhe serviu de pretexto, ante o pai, para abandonar a faculdade e se recolher à Normandia, onde comporá sua obra. Sartre chama essa crise de A Queda. Considera-a uma neurose — e não epilepsia, como o grosso dos flaubertianos — e a detecta em todos os escritores franceses do Segundo Império, que é visto por uma perspectiva marxista.

Elucida-se assim o título e a ambição do livro — explicar como o iletrado e retardado da família tornou-se o grande escritor cujo tema por excelência foi a idiotia. Emma e Charles Bovary, Bouvard e Pécuchet, Félicité e Julien (que mata o pai e a mãe) são todos idiotas. Eles se iludem diante da realidade, não a veem na sua inteireza. São pessoas concretas que compartilham uma neurose.

Aí está a arte para o Flaubert de Sartre: “o conjunto de procedimentos que permitem conservar o Ser apodrecendo no álcool do Não Ser”. Ambos conseguiram fazer de si homens diferentes do que queriam a família e a sociedade, as circunstâncias e a História.

Agora é tarde. Tudo isso fracassou, existencialismo, psicanálise, marxismo. Mais: acabou a história de refazer a vida e mudar a sociedade. Flaubert e Sartre continuam vivos como exemplo de idiotas ultrapassados.

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