domingo, fevereiro 02, 2014

Kafkalifórnia - TONY BELLOTTO

O GLOBO - 02/02
Cenas de uma viagem em família a São Francisco


1. Ao chegar em Los Angeles constatamos que nossas quatro malas sumiram. A empresa aérea americana, com o mau humor típico de seus funcionários, não nos fornece maiores explicações. Abrimos um protocolo. Seguimos no voo de conexão para São Francisco cientes de que só contamos com as roupas do corpo para a primeira fase de nossa viagem de férias. Pela janela do jato avistamos uma nuvem em forma de interrogação. Na minha mochila, atestando uma irônica sincronicidade, um livro de Franz Kafka*.

2. Kafka, o escritor tcheco de língua alemã, é célebre por sua prosa enigmática e perturbadora, sobre a qual o crítico alemão Günther Anders disserta: “A fisionomia do mundo kafkiano parece desloucada (trocadilho entre verrückt, particípio passado de verrücken, ‘deslocar’, e o adjetivo verrückten, que significa ‘louco’). Mas Kafka deslouca a aparência aparentemente normal do nosso mundo louco, para tornar visível sua loucura. Manipula, contudo, essa aparência louca como algo muito normal e, com isso, descreve até mesmo o fato louco de que o mundo louco seja considerado normal.”

3. A falta das malas em nada — ou quase nada — atrapalha os passeios da família pela mais bela e liberal das cidades americanas no primeiro dia da viagem. Lembramos que o santo que nomeia a cidade é o mais desapegado dos santos e que devemos tomar o extravio das malas como uma sugestão de aprimoramento espiritual. O fato de ainda vestirmos as mesmas roupas com que saímos do Rio nos ajuda a vivenciar com mais intensidade as horas passadas na livraria City Lights, onde nasceu o movimento beat e, de certa forma, o movimento hippie. Na imensa loja de discos Amoeba — um supermercado em que só se vende música —, talvez a última grande loja exclusiva de discos do mundo, podemos, com nossas roupas surradas, nos deliciar como monges freaks por corredores lotados de discos. Como uma recompensa à nossa resignação, duas das malas — as malas do casal — aportam no hotel durante a madrugada com a aparência de aves cansadas.

4. Ao acordar de sonhos intranquilos, volto a Kafka, que me espreita da mesa de cabeceira do quarto do hotel: no texto de introdução de “A metamorfose”, o escritor Modesto Carone, também tradutor do livro, cita uma tirada de Roberto Schwarcz sobre a novela perfeita, considerada a obra-prima do tcheco de afiada língua alemã: “É uma história que começa mal e termina pior ainda”.

5. No dia em que partimos de carro pela Highway One em direção a Los Angeles, a terceira mala já retornou à órbita familiar, apesar de inapelavelmente danificada, pois alguém se incumbiu de arrebentar-lhe a trava de segurança. Seu conteúdo, porém, permanece intacto. A quarta mala, entretanto, continua desaparecida em algum ponto do quadrilátero formado, em suas linhas horizontais, por México e Canadá, e pelos oceanos Atlântico e Pacífico nas verticais. As paisagens deslumbrantes da costa californiana são suficientes para afugentar momentaneamente a comparação de nossa família com a família Griswold, de “Férias frustradas”, a comédia de 1983 que mostra a odisseia dos Griswold em busca do Walley Park.

6. O rádio no carro desfila clássicos do rock de todos os tempos. Leões marinhos nos acenam das pedras à beira-mar. Em Big Sur, uma placa no acostamento da estrada nos lembra de que o escritor Henry Miller viveu ali por muitos anos. Esqueço Kafka por algumas horas e me deixo levar pela surf music de Dick Dale. O sol da Califórnia se parece com o sol dos incas.

7. Só em Los Angeles, uma semana após nossa chegada aos Estados Unidos, a quarta mala é devolvida. Estávamos a ponto de começar a preencher o relatório final, aquele que dava a mala como irremediavelmente perdida, quando a última mala adentrou o quarto do hotel com passo claudicante e aspecto de alienígena de Roswell. Comemoramos abraçados, dando pulos. Seria o extravio das malas apenas uma estratégia da companhia aérea para, ao devolvê-las, proporcionar um júbilo não programado aos seus clientes?

8. A viagem, ao contrário de “A metamorfose”, termina com um final feliz no Havaí. Outros membros da família juntam-se a nós num grande luau afetivo. Para alguém que na adolescência descia de skate as ladeiras da Avenida Ruy Barbosa em Assis, interior de São Paulo, fantasiando que dropava uma onda de Pipeline, conhecer as praias míticas do north shore de Oahu tem o sabor de uma revelação. Nas areias de Waimea, como num cinema transcendental de Caetano Veloso, volto a Kafka interrompendo a leitura de vez em quando para observar as manobras agudas dos surfistas poetas: “Na luta entre você e o mundo, apoie o mundo”, ensina o mestre tcheco. Aloha.

* Essencial Franz Kafka, Companhia das Letras/Penguin Classics. Seleção, introdução e tradução de Modesto Carone.

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