segunda-feira, fevereiro 03, 2014

A utopia dos conselhos comunitários na Venezuela - ARMANDO JANSSENS

O GLOBO - 03/02

No ano passado, essas organizações receberam mais recursos quetodas as prefeituras do país juntas



Hoje em dia, os conselhos comunitários fazem parte da paisagem nacional. Em quase todos os bairros, povoados e aldeias, e até em áreas de classe média, eles estão presentes. Foram e são promovidos pelo Estado. Definem-se por um conjunto de leis e regulamentos que ainda se devem ir ajustando à grande fantasia de um Estado comunitário. Pretendem ser a máxima expressão do socialismo do século XXI e, segundo seus promotores, vão se converter, com o tempo, em núcleo dinamizador de toda a sociedade: nos aspectos políticos, sociais, econômicos, culturais e até éticos. É um sonho utópico que, desde há um par de séculos, consegue reunir, em alguns lugares, um grande número de dependentes, até que a dura realidade mostre sua limitação e seu inevitável fracasso.

Nos últimos anos, destinam-se para sua implementação grandes recursos econômicos. Calcula-se que, no ano passado, os conselhos comunitários receberam mais recursos que todas as prefeituras juntas, o que dá uma ideia da importância que o governo e o partido oficial lhes dão como instrumento revolucionário da sociedade venezuelana.

Como se sabe, há tempos funcionam organizações de bairro com diferentes denominações e metodologias de trabalho. São instrumentos sociais idôneos no processo de criar uma base de cidadania e de convivência democrática num país que, nos últimos 60 anos, teve um crescimento de população excepcional e tenta se converter numa nação integrada e desenvolvida. Todos esses grupos têm em comum: organizar as pessoas para trabalhar em conjunto nas necessidades mais prementes, representar a comunidade em sua interlocução com as instâncias oficiais. São as juntas paroquiais, associações de vizinhos, grupos culturais, clubes esportivos, cooperativas e muitas outras diferentes denominações. Formam um colorido conjunto de uma rica sociedade em crescimento pluralista. Vivem do trabalho voluntário, com poucos meios a seu alcance, mas com uma grande entrega que nasce de uma genuína preocupação social.

Também, em décadas passadas, os partidos e os governos do momento tentaram se apropriar ou meter sua mão nessas organizações. Tais intentos custaram-lhes caro em sua credibilidade democrática, com resultados conhecidos. Quando o reconheceram, era tarde demais.

Mas hoje em dia vivemos um grau superior e oblíquo da mesma história. Não se trata apenas de uma tentativa de se aproveitar dessas organizações, mas de convertê-las numa estrutura do Estado e de seu partido, em grande parte politizada e ideologizada. É o contrário do pretendido anteriormente. Em lugar de a sociedade se originar do povo, agora é o Estado e o partido que se apropriam das comunidades e de suas expressões, por meio de uma estrutura legal, política e financeira. E tudo isto acompanhado de um discurso ideológico que se repete com insistência até o cansaço. A tão desejada pluralidade e a convivência dos cidadãos são encerradas em estruturas das quais, progressivamente, nada escapa. Até produzem, em muitas instâncias, um ambiente de medo de ser considerado opositor. Sem desconhecer a dedicação e o entusiasmo de muitos de seus integrantes, sem querer e saber se convertem em peões do Estado onipotente.

Desta maneira, perde-se a soberania desses conselhos que, pouco a pouco, se acoplam às diretrizes vindas de cima, perdendo sua própria iniciativa e criatividade. Apesar de haver eleições para cargos de direção, sabe-se muito bem que tipo de gente escolher para assegurar a necessária fidelidade. O fato de poderem ter acesso a recursos do Estado para projetos comunitários, e às vezes são recursos substanciais, desperta a ânsia de muitos integrantes ou grupos. Até onde se pode observar, o manejo elegante do dinheiro e sua alocação oportuna — com as exceções de sempre — são o calcanhar de aquiles dessa dinâmica. O desejo do poder, tão presente entre nós, e o afã de se aproveitar dele, não existem apenas nas altas esferas da sociedade, mas também é algo comum em nossas comunidades populares. Sem o desenvolvimento de capacidades que equilibrem e orientem suas atitudes e atividades, estamos gerando um desmoronamento humano que, mais cedo ou tarde, terá suas consequências.

Eis aqui um amplo campo de trabalho para as organizações sociais que dispõem de capacidade de formar e organizar. Um espaço de atuação e de influência que não se pode desconhecer. Com frequência há discussões sobre se a sociedade civil organizada deve apoiar os conselhos comunitários devido à dependência destes do Estado e do partido oficial e a sua marcada tendência ideológica. O argumento afirmativo é o de não apoiar de forma indiscriminada conselhos dependentes, mas apoiar positivamente líderes e integrantes que manifestem desejo de se formar em tarefas comunitárias.

Evidentemente, os conselhos comunitários não são bolhas de liberdade, muito pelo contrário. São dinâmicas impostas, diferentes de nossa concepção de uma sociedade libertária. Apesar disso, também neles podemos encontrar mentes abertas e espaços de ação que permitem promover mudanças em direção a uma verdadeira sociedade de todos.

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