sábado, outubro 12, 2013

O Papa e Woody Allen - ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA

O GLOBO - 12/10

No mundo de hoje, o que é, onde está, para que serve o poder?



Na obscuridade da noite voa um fantasma e abre as asas sobre a humanidade. Todos o conhecem. Mas o fantasma se esfuma com a aurora para renascer à noite nos corações. Quem é o fantasma que nasce à noite e morre ao amanhecer?

O sombrio enigma, proposto pela princesa Turandot na ópera de Puccini, servia para afastar pretendentes, já que ela repudiava a ideia do casamento. Um príncipe desconhecido acertou: “O fantasma é a esperança.”

Com esse diálogo, citado de memória, o Papa Francisco na entrevista concedida à revista dos jesuítas “Civiltà Cattolica” explicou que não gosta da palavra otimismo, prefere esperança que, para ele, não é um fantasma e não morre a cada dia.

A entrevista do Papa é um alento para quem vive o tempo presente e, à força de esbarrar em crueldades, impunidades e injustiças, corre o risco da desistência.

Suas palavras corajosas de acolhimento e compreensão, sem julgamento e condenação, dirigidas às mulheres e aos homossexuais merecidamente repercutiram mundo a fora. Falou-se menos da sua contundente denúncia da economia mundial que, segundo ele, nos está levando a uma tragédia. “Vivemos as consequências de uma decisão mundial, de um sistema econômico que tem no centro um ídolo que se chama dinheiro. A idolatria do dinheiro está roubando nossa dignidade.”

Foi preciso a estatura de um líder espiritual para reabrir uma questão em que está em jogo a civilização e que vinha sendo escamoteada, se apagava no esquecimento, exceto para quem ainda dorme em barracas, faz a fila da sopa ou procura inutilmente um emprego.

Não pensei que um dia encontraria afinidades entre Woody Allen e o Papa Francisco. Descubro que, se não partilham os mesmos gostos, certamente partilham um mesmo desgosto.

Seu último filme, “Blue Jasmine”, é uma fábula moderna, que mistura o caso Madoff com personagens inspirados em “Um bonde chamado desejo”, de Tennessee Williams. Um pouco de Blanche em Jasmine, tinturas de Kowalski no namorado da irmã de Jasmine, para melhor contar a escroquerie que tomou conta da América e roubou a dignidade dos que trabalham, espalhando tragédia.

Na cena final, Jasmine, milionária nova-iorquina que inventara a si mesma cobrindo-se de grifes, cúmplice do marido vigarista, vigarista ela mesma, agora arruinada, despossuída de tudo, incapaz de viver a vida real, senta-se em um banco de praça, desfigurada, falando sozinha de seus tempos de fortuna, metáfora da loucura e da perdição em que mergulhou o capitalismo financeiro onde a ganância fez-se a regra e o dinheiro é Deus.

Woody Allen descreve esse mundo com os recursos da caricatura no que ela tem de mais poderosa, o encontro da descrição com a crítica em um mesmo traço. A crise financeira de 2008 que se arrasta até hoje inspirou-lhe um filme amargo. O andar de baixo e o de cima da sociedade americana só se encontram nos terremotos, quando o andar cima — Wall Street, Nova York — desaba sobre o andar de baixo, os outsiders da Costa Oeste. Cinco anos depois, ainda há milhões soterrados pelo desemprego.

Enquanto sem escrúpulos espiona o mundo à cata de terroristas, o presidente americano dá guarida, em seu próprio gabinete, a responsáveis diretos por um atentado devastador à economia mundial que, em ricochete, põe em risco a Europa, fortalecendo a xenofobia e a extrema-direita. E parecia que tudo ficava por isso mesmo.

Mas eis que o Papa falou, denunciando a “globalização da indiferença”. O Papa que em sua primeira viagem aportou na ilha de Lampedusa em cujas águas, há anos, naufragam os barcos e as esperanças de imigrantes africanos que, como agora, vêm morrer na praia. Que ameaça fechar o sulfuroso Banco do Vaticano e escolhe a Basílica de Assis, berço da Igreja dos Pobres, para reafirmar sua fé nos gestos do dia a dia das pessoas honestas e solidárias e no tempo escultor de grandes mudanças.

Não se subestime o poder de um Papa em sua crítica às taras da economia mundial. Outro Papa pôs a nu o apodrecimento do regime comunista e lá se foi o muro de Berlim. Entra em cena um ator inesperado cuja audiência vai muito além dos católicos e, fato inaugural, se dirige às pessoas mais do que aos Estados.

No nosso triste país das condenações embargadas, das candidaturas proibidas, da política desgastada, sua fala se traduz em uma interrogação: será a esperança, aqui, o fantasma que morre sempre ao amanhecer ou ainda encontrará encarnação no dia a dia das pessoas honestas e solidárias?

E sugere um novo enigma: no mundo de hoje, o que é, onde está, para que serve o poder?

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