domingo, setembro 22, 2013

Ódio ao humano - JOSÉ CASTELO

GAZETA DO POVO - PR - 22/09

Na abertura de A Cidade, o Inquisidor e os Ordinários (Companhia das Letras), novo romance do mineiro Carlos de Brito e Mello, uma das epígrafes, atribuída ao personagem O Decoroso, diz: “Meu veredicto poderia se resumir tão somente a isto: é um homem; está condenado”. A sombra de Franz Kafka, com seus personagens eternamente destinados à punição e ao castigo, ronda pelas dobras do romance de Mello, que guarda a estrutura de uma peça de teatro. Compõe-se de uma sucessão de cenas, montadas na forma de diálogos brutos. Uma escrita ríspida, sem qualquer embelezamento, digna do tema perigoso que se arrisca a tratar: o ódio ao humano e a quaisquer de suas manifestações.

Um inquisidor chega em visita a uma cidade. Vem em busca dos defeitos, pecados e irregularidades que, a seu ver, emporcalham a comunidade. Convoca os cidadãos para que façam seus exames de consciência, isto é, para que se transformem nos carrascos de si mesmos. A cidade se abre como um palco, pelo qual circulam personagens anônimos, todos tratados apenas por seus atributos (ou ausência de atributos): o Decoroso, o Apregoador, o Olheirento, a Impostora, o Prestável, um Bobo. Não chegam a ser humanos — são mais etiquetas através das quais o humano se manifesta.

Outra sombra circula pela narrativa de Mello: a do filósofo francês Michel Foucault, armado com seu panóptico, que a tudo vigia, a todos examina e controla. Ninguém está livre da lei do Inquisidor, nem mesmo o mais discreto dos homens — um Bobo. A lei é severa e universal; é forte e odiosa; é dura e sem nuances. Um Bobo está em pecado porque a bobeira é o contrário do decoro. Não importa se ela não passa de uma fatalidade: ele a carrega e por ela deve pagar. Ao impor sua lei, o Decoroso não abdica de seus caracteres humanos. Afirma, porém, que lida com eles de outra forma, lhes dá outro destino. Sabe que é, ele também, só um homem mediano, mas “quando comparado ao pior, o mediano passa por bom, assim como o remediado aparenta sanidade ao doente, e o arrependido ostenta correção aos olhos do prevaricador”. Conclui, por exclusão: “Então, fico sendo eu o bom, o são e o correto”.

É a mediania que lhe dá a posse da lei — lugar daquilo que não incomoda, do que fica quieto, lugar da ausência e do silêncio. O homem da lei, expõe o Decoroso, é aquele que não se entrega às turbulências e paradoxos naturais ao humano. É aquele que os controla, administra e nega. Tem a seu lado o Apregoador, que leva sua rede de pescar desvios, inadequações e pecados. Os dois fazem uma defesa veemente da morte contra a vida. Afirma o Sr: Decoroso: “Viver é que um grande problema”. Mesmo na bobeira mais extrema — a do Bobo — ainda existe um homem que precisa ser julgado — e eliminado. “A civilização nos oferece recursos como a penicilina e a moralidade, a escova de dentes e a culpa, e não acho que devemos rejeitá-los”, o Decoroso anuncia.

Um sujeito se torna réu porque é bobo. O outro, porque é gordo. Qualquer pequeno deslize, mesmo o mais desprezível (Kafka em O Processo) justifica o julgamento. Grita o Olheirento ao gordo: “A modernidade tem a ver com a esbeltez”. Nenhum excesso, só o necessário. Homens máquinas, devemos seguir sempre os mesmos protocolos e manuais de instrução. Somos filhos da repetição e não da diversidade, pensa o inquisidor. Da ausência, e não da presença. Os que a elas escapam estão irremediavelmente associados ao Mal.

É com coragem que Carlos de Brito e Mello avança em sua narrativa, levando-nos a encarar o pior: que a Inquisição está viva. O mundo contemporâneo também se delicia na procura de culpados. É obcecado pelos deslizes, pelas faltas, irregularidades, crimes. Contra isso, toda uma burocracia se ergue. Recentemente, depois de enviar onze documentos ao setor de administração de um festival literário, e diante de novos pedidos burocráticos (Kafka), me vi obrigado a perguntar: “Será preciso enviar também meu hemograma e o pedigree de meu cachorro?” Isso para fazer uma simples palestra, de hora e meia. O romance de Mello trata de algo que hoje nos (me) oprime: por princípio, somos todos suspeitos e, provavelmente, culpados. E exatamente por isso devemos nos submeter à suntuosa burocracia da moral: documentos originais, certidões negativas, comprovantes, atestados, declarações, papéis que garantam (mas garantem?) nossa imunidade.

Como no romance de Mello, o réu é sempre o outro. Estamos cercados de suspeitos e de pessoas indignas de confiança. A paranoia se transforma em nossa saúde! O Decoroso anuncia: “serei sua fogueira, serei sua tranca, serei seu cativeiro”. Como se oferecesse presentes. Como se fornecesse peças de salvação. Melhor preferir as algemas, garantias de que não nos dedicaremos ao pior. Melhor a morte, que nos protege das instabilidades (riquezas) da vida. Bobo, portanto, é aquele que se afasta das normas (grilhões) da sociedade. Lamenta o Decoroso que, no passado, os bobos eram alegres e conhecidos como bufões, mas hoje são “inúteis e melancólicos”. Tornaram-se perigosos. A bobeira não se refere mais à tolice, mas à enfermidade e ao crime. Só há uma lei, e essa lei não só deve ser cumprida, como deve atemorizar. Chegamos ao medo, avesso da lei, sem a qual ela não pode exercer seu poder.

O Bobo é, por fim, dependurado — como castigo — na antena de um prédio. Ali, imobilizado — o humano visto como pedra — poderá, quem sabe, se reeducar. Ali, com pombos sobre a cabeça, babando seu horror, quem sabe, poderá se igualar aos iguais. A palavra-chave é esta: igual. É o igual que a literatura desafia com sua opção pela divergência e pela diferença. É o igual (repetição pura, paralisia, morte) que Carlos de Brito e Mello interroga com seu belo romance. Um romance que não teme o patético e o risível — a moral, de tão obtusa, tantas vezes se assemelha à piada. Agora é Eugène Ionesco, com seu Teatro do Absurdo, que se esconde entre as páginas do romance. É entre as frestas do absurdo e do inconcebível que devemos procurar aquilo que ainda temos de humanos, e nessa busca a literatura se oferece como caminho.

É o igual (repetição pura, paralisia) que Carlos de Brito e Mello interroga com seu belo romance.

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