quarta-feira, junho 19, 2013

Decifrar as mensagens da rua - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 19/06

Estas manifestações já são dos mais importantes fatos políticos e sociais ocorridos desde o início da redemocratização, há 28 anos



A estimativa de que cerca de 240 mil pessoas estavam nas ruas, no início da noite de terça-feira, em 11 capitais, para protestar já é algo significativo. Mais do que isso, são as imagens e o sentido do que aconteceu anteontem neste país, que colocam a data de 17 de junho de 2013 no calendário dos grandes acontecimentos políticos e sociais dos últimos 28 anos, desde o início da redemocratização, em 1985, com a posse de José Sarney na Presidência.

As cenas de violência e vandalismo — ocorridas principalmente no Rio, na tentativa de invasão da Assembleia Legislativa, e na não menos criminosa depredação de bancos e estabelecimentos comerciais na área, além da pichação do Paço, patrimônio nacional — não conseguem reduzir o peso das mensagens que as ruas têm transmitido nestes últimos dias a governos, políticos e partidos da situação e oposição.

A partir da descontrolada ação da PM paulista, na quinta-feira da semana passada, o movimento pelo “passe livre” no transporte público, deflagrado com o último aumento de tarifas, recebeu maciças adesões em escala nacional e passou a ganhar outra dimensão.

Não que a chamada (i)mobilidade urbana já não criasse imensas dificuldades para as pessoas, principalmente as de renda mais baixa, a grande maioria. E não só em função do custo, mas pelo crescente sacrifício físico que milhões de pessoas passam diariamente nas capitais brasileiras para se locomover. É que o movimento, deflagrado e organizado por meio das redes sociais, tem a questão do transporte público apenas como uma chave que destampa e coloca nas ruas a insatisfação acumulada nos últimos anos com uma sucessão de distorções. É a tal sensação difusa de desconforto com “tudo isso que está aí”.

A mobilização política ressurge no Brasil de um movimento subterrâneo, surdo, invisível, mas bastante ativo, a partir da rede mundial de computadores. O fenômeno não é novo, acontece em escala planetária. Mas há peculiaridades regionais. Onde existe liberdade, redes sociais facilitam a organização de grupos na defesa de pautas específicas. Em ditaduras, ajudam a driblar censores, a repressão política.

No Brasil, país democrático, vivia-se um longo período de inércia política. A situação, confortável no poder, e a oposição, também passiva, incapaz de metabolizar a fermentação das insatisfações que há tempos trafegam nas redes. As ruas acabam de atropelar ambos — má notícia para a democracia representativa, ruim para a estabilidade institucional.

É míope a tentativa de capitalização político-eleitoral desta espécie de erupção vulcânica. A questão é tão mais ampla quanto profunda. Devem ser entendidos por suas excelências do Executivo e Legislativo gestos de manifestantes contra cartazes e bandeiras de partidos nas passeatas, mesmo os identificados com a extrema-esquerda. O representante da juventude do PT em Brasília foi escorraçado na tentativa de participar do comando da manifestação à frente do Congresso.

Toda esta mobilização conseguiu atravessar fronteiras geracionais, etárias e sociais. Pode ser que lá na origem de tudo tenham atuado grupos politizados, sem identificação com o estado de coisas na política brasileira. Não importa. Quando casais com filhos pequenos vão às ruas, ao lado de idosos, gente de toda idade, é porque apareceu algo novo no radar da sociedade. Maurício Matheus, a mulher, Thaís, com o filho João, de um ano e meio, foram entrevistados pelo GLOBO, em São Paulo. Preso ao macacão de João, o cartaz: “Não é por 0,20, é por direitos”. Explicou o pai: “É um grito de socorro, precisamos de união e força para vetar os abusos ao povo”. E existem diversas formas de abusos. No desprezo de políticos e governantes pela ética, por exemplo.

Se era urgente, diante do ronco das ruas tornou-se emergencial retomar a reforma da moralização do degradado quadro político-partidário. A Lei da Ficha Limpa foi vitória histórica, conquistada por grande mobilização, também pela internet, em torno de um projeto de origem popular. A vigilância continua necessária, agora para a sua aplicação correta.

É hora de voltar a atacar a pulverização partidária. Por erro técnico de encaminhamento — não pode ser por projeto de lei simples, mas emenda constitucional —, o Supremo rejeitou cláusula de barreira a legendas de rarefeito apoio entre os eleitores, mecanismo usado em democracias maduras. A fórmula elaborada é boa, basta resgatá-la das gavetas: para ter representação no Congresso, toda legenda necessita de, no mínimo, 5% dos votos nacionais e 2% em pelo menos nove estados.

Acabada a pulverização partidária, facilita-se a formação de alianças e reduz-se a margem para o uso de meios espúrios para a obtenção de maiorias. Um antídoto contra mensalões. Outra medida, também disponível nos escaninhos do Congresso — basta vontade política para resgatá-la —, é o fim da coligação em eleições proporcionais, pela qual o eleitor pode ser vítima de uma fraude, por ter o voto contabilizado para quem ele não conhece e em quem talvez não voltasse. A conjugação dessas duas reformas ajudará a restabelecer uma seriedade mínima no jogo partidário. Se vigorassem há algum tempo, o político não teria sido transformado no Judas predileto de manifestantes.

O ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria-Geral da Presidência, setorista de “movimentos sociais”, confessou, na manhã de ontem, ainda não compreender o que acontece. Foi honesto. Seu mundo é o das organizações formais, em que há líderes visíveis, conversáveis e cooptáveis. A presidente Dilma Rousseff, ex-militante, presa política, não poderia ter outra reação: o governo “está ouvindo essas vozes pela mudança”. E entre as vozes, a presidente identificou o “repúdio à corrupção e ao uso indevido do dinheiro público”. Parece na pista certa a presidente.

Ao se investir contra a Copa das Confederações, ensaio para a Copa do Mundo, no ano que vem, com suas amplas e modernas “arenas”, critica-se a incapacidade de o governo federal colocar os bilhões que arrecada de um contribuinte cada vez mais sobrecarregado de impostos naquilo que atenda às necessidades diretas da população: educação, saúde, transporte urbano, segurança.

Em vez disso, o poder público não para de ampliar os gastos em custeio, sem privilegiar os investimentos. E, quando investe, escolhe, por exemplo, projetos faraônicos como o do trem-bala entre Rio e São Paulo, dinheiro que poderia vir a ser aplicado na malha de transporte sobre trilhos nas grandes regiões metropolitanas, para promover de fato a mobilidade urbana.

As mensagens são várias. A torcida é para que os políticos, no poder e fora dele, as decifrem de maneira correta. A estabilidade institucional, em alguma medida, dependerá disso.

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