domingo, abril 07, 2013

Deus e o diabo no teatro político - GAUDÊNCIO TORQUATO

O ESTADÃO - 07/04

No Estado-Espetáculo, até Deus é usado como bengala de apoio aos representantes políticos. O ditador Francisco Franco, que governou a Espanha por 36 anos (1939-1975), usava a Providência divina para afirmar sua legitimidade: “Deus colocou em nossas mãos a vida de nossa Pátria para que a governemos”. Não satisfeito, mandou cunhas nas moedas: “Caudilho pela graça de Deus”. Idi Amin Dada, o cabo que se tornou marechal de Uganda, sanguinário e paspalhão, dizia ao povo que falava com Deus nos sonhos. Um dia deparou-se com a pergunta de um jornalista: “O senhor tem com frequência esses sonhos? Conversa muito com Deus?” Lacônico, o cara de pau respondeu: “Sempre quando necessário”. A história é cheia de casos em que atores políticos organizam o próprio culto, ornando sua aura com atributos divinos. Nietzsche chegou a proclamar: “A apoteose da aventura humana é a glorificação do homem-Deus”. Mas o diabo também é avocado como protagonista do teatro da política fosforescente.

A desastrada declaração do pastor Marco Feliciano (PSC-SP) de que, antes dele presidi-la, a Comissão dos Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados era dominada por Satanás comprova a tese. Nos últimos tempos, por nossas bandas, impulsionados por uma onda midiática que entra nas noites e madrugadas construindo um novo pentecostalismo, bispos, pastores e apóstolos não medem esforços para organizar exércitos do bem para enfrentar as forças do mal. Do alto de uma montanha de dízimos, os comandantes de guerra contra as trevas estruturam impérios religiosos, ganham concessões do Estado (para execrar, frequentemente, o próprio Estado), locupletam cofres, organizam partidos e aumentam a fatia política com bancadas cada vez mais gordas. A expressão radical torna-se arma de combate e de engajamento de milícias. Já a defesa de posições conservadoras funciona como escudo. A índole discriminatória explode. Essa é a composição que explica o imbróglio envolvendo o novo presidente da Comissão de Direitos Humanos. Flagrado ao postar mensagens homofóbicas e racistas nas redes sociais, Feliciano arremata, em inflamado sermão, que, “pela primeira vez na história desse País, um pastor cheio de espírito santo” conquistou espaço dominado pelas tropas de Belzebu.

Destemperado, o deputado jogou no fogo do inferno companheiros que já comandaram aquele território “satânico”. E assim, comete um pecado ético, deixando transparecer a ruptura do princípio republicano que estabelece a separação entre igreja e Estado. É evidente que o verbo messiânico tenta desenhar a figura de um “herói” sob proteção divina. Maquiavelismo. A linguagem cortante, claro, resultará em bacia cheia de votos em 2014. Atente-se para o espírito do nosso tempo: culto da personalidade, competitividade entre igrejas, organicidade social, multiplicação de grupos de pressão, expansão da democracia participativa, abertura da locução social. Com o foguetório, o pregador consegue chegar aos píncaros da visibilidade, meta ambicionada por qualquer parlamentar. Vale lembrar que foi eleito pelos pares para comandar a Comissão de Direitos Humanos. Até ai tudo bem. Inaceitável é o uso (e abuso) de peroração discriminatória dentro de um organismo criado exatamente para defender os postulados da igualdade e da pluralidade.

Resta observar que o “enviado dos céus” ultrapassou seus 15 minutos de fama. E parece querer mais, ampliando espaços midiáticos e sendo eleito como o bastião da resistência evangélica no Congresso. Multiplicará o rebanho e consolidará a imagem de “guerreiro do Espírito Santo”? Não há certeza. Mas a ambição desvairada pelo poder acabou turvando a visão do ator. O presidente da Comissão de Direitos Humanos caiu na tentação de ultrapassar os limites do bom senso. Ao trazer Satanás para a mesa da política e identificá-lo com seus pares, abriu caminho para ser examinado pela lupa ética. A imbricação de política e religião, na forma espetacularizada como o fez, e logo dentro da Comissão que espelha direitos humanos, pode ser o motivo para seu afastamento. Não é de hoje que objetos sagrados e profanos são embalados pelo celofane da política. No Brasil, a amálgama tem sido rotineira, a partir das concessões na área de rádio e TV para grupos e igrejas. Os dois territórios bifurcam-se, sob o olhar complacente de quem tem poder para evitá-la.

Até se admite que a concorrência entre católicos e pentecostais estimula os contendores a aprofundar as relações com o Estado, como se vê na recente proposta do deputado evangélico João Campos (PSDB-GO), que garante às entidades religiosas poder de contestar a constitucionalidade de leis no STF. (Por que não estender o privilégio aos ritos afrobrasileiros?) Deslocar a religião para o palco da política, no molde feliciano, é pregar abertamente a ilicitude dentro da própria Casa que faz as leis e deve dar exemplo de disciplina. Não se pretende defender postura apolítica de igrejas e credos. Seu papel missionário implica tomar partido, lutar por ideários e convicções, ações que inescapavelmente adentram os corredores do Parlamento. Podem, até, sugerir a eleição de perfis identificados com os valores da República. Constituem motivo de aplauso, igualmente, ações sociais pela elevação e promoção do ser humano, particularmente dos contingentes marginalizados. Essa é a visão abrangente da política que as igrejas podem perseguir. Outra coisa é política partidária, usar a religião como instrumento de negócios lucrativos, imã para atrair fiéis e posicioná-los nas siglas. A invasão religiosa no espaço público ameaça manchar o escopo republicano, apesar de sabermos que o ativismo eleitoreiro de certas igrejas acabará acentuando tal tendência. Urge dar um basta na construção da “Igreja-Estado”.

Foram-se os tempos em que líderes religiosos coroavam e descoroavam reis e rainhas. O bom senso aconselha: senhores políticos, muito cuidado para não trombetear o nome de Deus na tuba da politicagem.

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