sexta-feira, março 15, 2013

E o fundo do poço, é o fim do caminho - FERNANDO GABEIRA

O ESTADO DE S. PAULO - 15/03
Eventos insuportá­veis sopram de Bra­sília. Renan Calheiros é presidente do Senado. O depu­tado João Maga­lhães, que tem as contas bancá­rias bloqueadas, foi eleito presi­dente da Comissão de Finanças. E para completar, o pastor Mar­co Feliciano, acusado de racis­mo e homofobia, mas antes de tudo um perfeito cafajeste, foi escolhido presidente da Comis­são de Direitos Humanos.

Às vezes é preciso mergulhar no passado para respirar. Pasto­res picaretas na literatura são bem mais interessantes. Em 1960, Burt Lancaster fez um cafa- jeste genial que vendia a religião no filme Elmer Gantry. Ganhou Oscar de melhor ator e Richard Brooks, o de melhor rotei­rista. No filme, Burt Lancaster é um pregador brilhante que sedu­zia com o som das palavras: estre­la matutina, estrela vespertina...

O filme é baseado no livro de Sinclair Lewis, escrito no meio da década de 20. A construção do personagem foi resultado de um longo trabalho do escritor, que entrevistava religiosos e, às vezes, ouvia três sermões dife­rentes por dia. Criticado em to­dos os púlpitos, Lewis enfren­tou forte reação religiosa: um pastor chegou a pedir cinco anos de prisão para o romancista. Sin­clair Lewis, em seu tempo, ja­mais poderia colher frases como a do pastor brasileiro Marco Feliciano: "Desculpe se vou agredir os seus ouvidos, mas o reto não foi feito para ser penetrado".

Quase um século se passou, com inegáveis avanços demo­cráticos e uma grande dose de vulgaridade. No fundo, tanto o personagem vivido por Burt Lãncaster, com seu brilho e sua veia poética, como o pastor Mar­co Feliciano se batem pela mes­ma causa: o dinheiro dos fiéis. O que torna Feliciano singular é sua aterrissagem na Comissão de Direitos Humanos.

Não foi um relâmpago em céu azul, mas resultado de um longo processo de degradação que transformou o Congresso desenhado por Niemeyer numa espécie de cavema sombria, com lógi­ca oposta à da sociedade, que a mantém. Ao longo desses anos a comissão sempre foi dirigida pe­la esquerda. Partidos de outros matizes não se interessam por ela, associando, erradamente, di­reitos humanos à esquerda. A longa hegemonia de um setor acabou enfraquecendo o tema, uma vez que o viés ideológico tende a enxergar humanidade apenas no seu campo político.

Um grande mérito dos direi­tos humanos é sua universalida­de. São direitos de um indivíduo, não importa a que paitido per­tença, em que país tenha nasci­do ou viva. Quando Lula compa­rou os presos políticos de Cuba aos traficantes do PCC, o movi­mento não reclamou. Quando comparou os opositores em luta no Irã a torcidas de futebol, novo silêncio. Há pouca solidarieda­de com as populações que vivem sob o controle armado do tráfi­co. E uma tendência histórica é ver o policial apenas como um transgressor dos direitos huma­nos, ignorando até os que mor­rem em atos de bravura.

Abandonada pelos grandes partidos, a comissão foi, final­mente, rejeitada pelo PT. A es­querda não compreendeu inte­gralmente o conceito de univer­salidade e a direita, ao ignorar os direitos humanos, joga fora o be­bê com a água de banho.

Não foram nossos erros no movimento de direitos huma­nos que trouxeram Feliciano ao centro da cena. Ele não chegou ao topo à frente de um onda ra­cista e anti-homossexuais, ape­sar de suas declarações bombásticas. Ele triunfou porque é cafa­jeste, e essa condição hoje é in­dispensável para o ascender no Congresso. Expressa um longo processo de degradação impul­sionado pelo PT.

Cada um certamente terá sua maneira de elaborar o caminho pelo qual se produziu tal aberra­ção. Convém à boa consciência considerar Feliciano um aciden­te de percurso. Ou, então, conestá-la com a clássica frase: mas não se pode negar que as pes­soas aumentaram seu nível de consumo. No mundo onde o consumo é a única medida, o dis­curso da presidente Dilma aos brasileiros parece anúncio de su­permercado: o arroz, o feijão, o óleo, a pasta de dente, olhe a pas­ta de dente, que no passado não entrava na cesta básica. Por que só agora, se a porta sempre este­ve abeita, como no Castelo de Kafka? Por que vetou o projeto de um oposicionista que isenta­va a cesta básica de impostos fe­derais? O arroz, o feijão e a pasta de dente, olha a pasta de dente.

O pastor Marco Feliciano é um personagem que recebeu um cartão de crédito de um fiel e o advertiu porque se esqueceu de mandar a senha: "Depois vai reclamar quando Deus não fizer o milagre". Da mesma forma, o Congresso se comportou com o pré-sal. Diante da complexida­de e riqueza da exploração des­sas jazidas profundas, limitou- se a discutir apaixonadamente a divisão do dinheiro. Recebeu o cartão de crédito e logo usou a senha para detoná-lo.

A irracionalidade da condu­ção do pré-sal foi marcada por um tom nacionalista. A Petrobrás, diziam, deve ter participa­ção em todos os contratos. Mas não seria melhor para a Petrobrás ter a preferência e partici­par apenas dos contratos que lhe interessassem? Mas eles são muy amigos, querem que a em­presa entre em todas as explora­ções, até nas canoas furadas.

Apesar do Congresso, os direi­tos humanos continuam sendo uma causa digna de por ela se bater. Apesar da desagregadora condução parlamentar no episó­dio do pré-sal, as pessoas não perderam a sensação da unidade do País. Pesquisa do Ibope mos­tra que 75% dos entrevistados quer a renúncia de Renan Calheiros. O único ser humano que Fe­liciano poderia ter ajudado ao as­sumir a comissão é o próprio Calheiros, que ganhou companhia no circo de horrores de Brasília.

Vivemos numa época em que número maior de pessoas conse­gue se informar melhor sobre o que se passa no País e no mun­do. Elas certamente farão um contraponto à altura. Mas o pro­blema continua em aberto. Por mais extensa e bem informada que seja uma rede, ela não substi­tui instituições nacionais.

O horizonte do País fica mais estreito sem um espaço que pos­sa chamar de Congresso. Como reconstruir essa ruína? É o tipo de pergunta que daria um car­tão de crédito para responder com acerto. Infelizmente, ain­da não tenho a senha.

Um comentário:

Ronaldo disse...

Fundo do poço?? achei que o Sr. Gabeira estivesse fazendo um exame de consciência, mas não, ele apenas cospe nos colegas. Reclama dos ratos dentro de casa, com um ar de santo que profetiza desgraças. Por acaso está proibido fazer uma relação de causa/efeito? O cheiro não está agradável desde muito tempo e a receita atual é "substitua os incenso de canela por cravo da índia". Assim não dá Sr. Gabeira! Já que o senhor falou em cartão, já tentou pedir a senha para o governo? ele sempre tem a senha.