domingo, março 17, 2013

Deus, o diabo e ética eleitoral - ROBERTO DaMATTA

REVISTA ÉPOCA

Permita o leitor que eu comece com uma observação fora dos quadrantes jornalísticos. Se tudo, conforme aprendi quando jovem, é político (logo, o político inclui o religioso e o moral) e se nós, brasileiros, veneramos o “jogo” ou “briga política” a ser revelada ou esquecida quando os interesses são atendidos e os objetivos alcançados, por que diabos a política é o campo menos confiável e mais fluido da sociedade brasileira e do mundo moderno em geral? Se Deus morreu e o papa renunciou; se não há mais religião e a moralidade perdeu para o “politicamente correto”; por que então a “Política” (com p maiúsculo) não é o campo mais sério, consistente e confiável do sistema em que vivemos e eventualmente morremos?

Faço essa pergunta porque temos belos bate-bocas no palco do teatro político nacional. FHC contra Dilma; Lula contra FHC e Eduardo Campos; os irmãos Cid e Ciro Gomes contra Campos; Sérgio Cabral contra Lindbergh Farias; e, como arremate, Lula se imaginando um novo Abraham Lincoln.

Nesse ambiente de bate-boca, a presidente Dilma, suprema magistrada da nação, disse uma frase decisiva: “Podemos fazer o diabo só na hora da eleição. Quando a gente está no exercício do mandato, temos que nos respeitar”. Como, pergunta o ouvinte, o político eleito se transformará num governante correto – e eventualmente pensar que é Deus – quando se elegeu fazendo o diabo? Outra grave questão embutida na fala de Dilma é como levar a sério esse rito de passagem sagrado das democracias liberais e competitivas – as eleições –, com todo mundo com o diabo no corpo. Fazendo tudo o que der na telha e, assim, confirmando que em política vale tudo, menos perder. E ganhar de qualquer modo, como estamos fartos de saber, pode significar uma desastrosa perda para o país.

Quando a presidente Dilma Rousseff diz, em resposta ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que “nós não herdamos nada, nós construímos”, ela tenta evitar o impossível. O ponto é o seguinte: como não lidar com heranças que, afinal, são a parte mais humana da vida social – pois tudo o que somos é herdado e aprendido de outras gerações e linhagens –, sem ter de abandonar o esquerdismo infantil que pensa construir o Brasil por si mesmo, naquela linha lulista do “nunca antes se fez isso ou aquilo na história deste país”?

A autossuficiência que surge abertamente na fala da presidente Dilma nunca foi boa conselheira política. Ela leva à ausência de diálogo e, no limite, à eliminação do outro. O outro, na democracia, é a oposição política que, perdendo ou vencendo, vem confirmar a difícil vocação liberal de viver ao redor de um sistema de poder que muda seus atores, mantendo, porém, seus princípios e papéis. Uma oposição que deve se fortalecer na medida mesma da centralização, das tendências estatizantes, do aumento da inflação e do “pibinho”.

Entendo que, num país que no campo da “política” tudo permite, o problema não é saber se a presidente é ingrata ou não, como disse FHC. O que está em jogo é a questão da continuidade de certas políticas públicas e de uma visão estratégica do lugar do Brasil neste mundo globalizado e – por isso mesmo – confuso em que vivemos.

Todo sistema que recusa o despotismo – coisa que ainda temos de politizar com seriedade no Brasil – tem valores que ninguém discute. Muitos modos de fazer e pensar os problemas do país são necessariamente discutíveis. As democracias liberais são sistemas envolvidos em batalhas (mas não em guerras) rotineiras de opinião. Se não fossem, a democracia liberal acabaria. Quem inventou a herança como um conceito político negativo – a famosa “herança maldita” – não foi o PSDB nem a oposição. Foi justamente a reação petista que recusou literalmente todas as transformações realizadas pelo governo de Fernando Henrique Cardoso.

Havia todo um discurso de recusa, embutido na fórmula da “herança maldita”, que criticava a privatização da telefonia, a reestruturação do sistema bancário e financeiro e o Plano Real – cujo fracasso o PT previu. Até que o contexto engendrado graças ao Plano Real revelou sua eficácia e fez surgir os “pibões” do Lula, porque, mesmo com as crises, todos os marcos financeiros estavam compostos.

Só um partido de índole antidemocrática pode usar a expressão “herança maldita” quando o regime eleitoral que o levou ao poder estabelece a rotatividade. Seria possível a um time de futebol campeão falar que o título que acaba de conquistar e o futebol em que mostrou excelência são uma herança maldita? Se fizer isso, obviamente cospe no prato que comeu. Porque rejeita a linhagem que o levou ao campeonato e ao poder que – eis uma lição do futebol e do esporte em geral – deve ser mantida e devolvida com avanços ao novo vencedor. Existe no Brasil uma dificuldade em manter lealdade a sistemas políticos eleitorais de cunho liberal e competitivo e a administrações éticas. O ético aqui não é palavra para uso eleitoreiro, mas um valor que, entre outras coisas, coage o ator a limitar seu projeto de “levar vantagem em tudo” (essa máxima conhecida como Lei de Gerson), uma tendência onipresente em nossa prática política
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