quarta-feira, março 20, 2013

Da Arca de Noé ao papamóvel - MARCELO COELHO

FOLHA DE SP - 20/03

O catolicismo tem de preservar suas posições. Caso contrário, perderá sua identidade


O homem mais moderno da Europa, dizia o poeta Guillaume Apollinaire em 1912, "sois vós, papa Pio 10º".

Vinda de um dos mais importantes representantes da vanguarda artística, amigo de Picasso e inspirador dos surrealistas, a frase só podia ser irônica. Ainda mais porque Pio 10º era ferrenho inimigo de qualquer renovação.

Tinha publicado poucos anos antes uma encíclica, "Pascendi Domini Gregis", cujo objetivo era precisamente condenar as ideias "modernistas" no interior da reflexão católica.

No começo do século 20, já existiam teólogos que buscavam relativizar alguns pontos mais antiquados do ensinamento bíblico. Por exemplo, a tese de que o mundo foi criado em sete dias, de que Eva nasceu da costela de Adão, de que Noé salvou todos os animais da Terra abrigando um casal de cada espécie na sua arca.

Não sendo especialista nesses assuntos, não sei como atualmente a Igreja Católica reage ao "modernismo" teológico. Qualquer um pode perceber, entretanto, que a igreja não enfatiza a ferro e fogo as afirmações mais estranhas do Antigo Testamento. Nem por isso o catolicismo perdeu sua "identidade".

O pensamento conservador, como é óbvio, resiste a mudanças e reformas. Sua mais recente bandeira em termos religiosos, pelo que andei vendo nestes dias de sucessão papal, é o termo "identidade".

O catolicismo tem de preservar suas posições. Caso contrário, perderá sua identidade. Comentando o último conclave, Luiz Felipe Pondé elogiou o cardeal Bergoglio por ter combatido a "contaminação marxista" na igreja.

Sem dúvida, o excesso de marxismo pode representar riscos à integridade dos ensinamentos católicos. Entretanto, cabe observar que o cristianismo já esteve às voltas com outras "contaminações".

A contaminação copernicana, por exemplo. A contaminação de Sêneca e de Cícero. A contaminação de Galileu. A contaminação de Darwin.

Haja camisinha para enfrentar tantas contaminações. O catolicismo não foi tão puritano. Preferiu adaptar-se, vacinar-se, atualizar-se numa série de questões -e nem por isso se dissolveu no mundo laico.

Claro que não foi fácil. Pio 9º desaprovava as estradas de ferro. João Paulo 2º adotou o "papamóvel" -coisa que, para o meu gosto, talvez fosse sacrílega demais.

A igreja demorou muito para aceitar as formas republicanas de governo. Mas Leão 13, na passagem do século 19 para o século 20, decidiu que esse tema da monarquia versus república não era especialmente importante para o futuro da fé.

Idas e vindas. Pio 12, em 1950, recorreu aos poderes, raramente utilizados, da "infalibilidade papal" para decretar que a Virgem Maria subiu aos céus de corpo e alma. Repito: não apenas a alma foi para o céu, mas seu corpo também.

Dito isso, os clérigos tiveram o cuidado de não insistir demais no assunto.

Foi pensando nesse tipo de dogmas que Apollinaire escrevia, meio século antes, seu misterioso verso. O papa era o europeu mais moderno de todos porque a crença em santos e profetas voadores, tão bizarra aos olhos dos descrentes, estava se realizando com o milagre da aviação.

A religião se manteve simples como os hangares de um aeroporto, continuava Apollinaire; o que houvesse de pueril em suas convicções se concretizava, no início do século 20, como um verdadeiro brinquedo de criança.

Na esfera estética, o modernismo também pretendia esse gênero de simplicidade e de pureza.

Tratava-se de afirmar que a poesia não está num conjunto convencional de ornamentos, na superstição dos temas convencionalmente "poéticos", no que tradicionalmente se considera "belo", mas em alguma essência mais profunda.

A arte da pintura, por exemplo, não está na reprodução perfeita de um rosto bonito, mas numa certa capacidade de organizar o espaço em linhas, cores e volumes.

Certamente, a fé não está em aceitar tudo o que, culturalmente, fazia sentido para os povos do Mediterrâneo há mais de 2.000 anos.

A balsa de São Pedro foi jogando ao mar toda a tralha supérflua: quem sabe não seria esse o verdadeiro desapego, a verdadeira pobreza, a serem defendidos pelo novo papa.

É duvidoso que Francisco esteja disposto a muita renovação doutrinária. Mas, com menos peso nos porões do preconceito, do puritanismo, da superstição em torno do sexo -todos justificados em torno da bandeira da "identidade"-, essa embarcação talvez pudesse seguir mais solta em seu caminho, sem atravancar tanto os que estão por perto.

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