sábado, março 09, 2013

A inflação, o BC e os lírios do campo - ROLF KUNTZ

O ESTADÃO - 09/03

Olhai os lírios do campo. Essa bela exortação, a mais poética do Sermão da Montanha, bem poderia abrir a ata da última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), quando os dirigentes do Banco Central (BC) decidiram, de novo, depender da Providência, em vez de atacar a inflação. Nada altera esse fato, nem mesmo a nova linguagem da nota oficial distribuída na quarta-feira à noite. O comitê, segundo o comunicado, vai "acompanhar a evolução do cenário macroeconômico até sua próxima reunião, para então definir os próximos passos".
Acompanhar os fatos para definir a política é seu papel, com ou sem a intenção - ou a esperança - de manter a taxa por um período prolongado. Os fatos foram acompanhados e nada se fez, por mais de um ano, para atenuar as pressões inflacioná- rias. Agora uma nova pergunta é inevitável: para tomar suas próximas decisões, o pessoal do Copom levará em conta as pressões efetivas, visíveis no dia a dia, ou olhará simplesmente os índices de preços administrados pela intervenção do governo? Sem essa intervenção, os indicadores acumulados até fevereiro já teriam estourado o limite superior da banda ou estariam muito perto disso. Não há sequer, nessa história, a contrapartida do crescimento econômico facilitado pela política monetária. A inflação elevada é pura perda.
Toda a política seguida a partir do fim de agosto de 2011 foi baseada em apostas erradas. Erros de previsão são paite do jogo. A insistência no erro é outra história. Pode ser uma demonstração de fé: em algum instante a intervenção divina resolverá os problemas. Nos mercados, a interpretação foi mais prosaica: a presidente da República mandou baixar os juros, sua ordem foi seguida e a autonomia operacional do BC foi pelo ralo.
Os erros das apostas são bem conhecidos. Primeiro, esperava- se uma acomodação dos preços agrícolas, num cenário de estagnação internacional. As cotações oscilaram, de fato, mas voltaram a subir, por mais de um motivo, e as pressões se intensificaram no segundo semestre de 2012. Esse fato foi reconhecido pelo BC. Segundo, a redução de juros foi justificada também com a expectativa de austeridade fiscal. Esse foi um ato de fé especialmente notável. Sem surpresa para as pessoas razoavelmente informadas, essa expectativa foi igualmente desmoraliza- da pelos fatos. Desmoralizada parece uma palavra perfeitamente justificável, quando se considera a escandalosa maquiagem das contas federais. Quem apostai- em gestão financeira mais cautelosa e responsável em 2013 também perderá, mas, neste caso, ninguém poderá sequer fingir surpresa.
Curiosamente, o pessoal do Copom há muito tempo identifica sinais de risco no mercado de mão de obra, com desemprego baixo e aumento constante da massa de rendimentos. Mas a expansão do crédito, visível a olho nu e comprovada oficialmente, mês a mês, em relatórios do próprio BC, tem merecido menor preocupação.
De toda forma, os responsáveis nominais pela política monetária agiram por longo tempo como se nada preocupante ocorresse nos mercados. Isso reforçou a suspeita, para dizer o mini - mo, de serem outros os responsáveis reais. Como pensar de outra forma, quando se apresenta o corte de juros como conquista política e quando o Executivo interfere repetidamente na formação de preços - da gasolina, da eletricidade e de tantos bens de consumo?
A mais recente façanha desse tipo foi a redução da conta de energia elétrica. Não se pode atribuir o barateamento da eletricidade a um aumento da oferta ou a uma elevação da produtividade do setor. Todo o efeito foi produzido por uma decisão fiscal tomada no Palácio do Planalto. O resultado começou a aparecer há algumas semanas e já foi bem visível no IPCA-15, divulgado em 22 de fevereiro, e no índice de Preços ao Consumidor da Fipe-USP, publicado nesta segunda-feira.
Com a redução da conta de energia, o IPC-Fipe subiu 0,22% em fevereiro. Teria subido praticamente o dobro, 043%, sem o efeito da eletricidade mais barata. A medida oficial de inflação, o IPCA, também foi afetada pelo corte da conta de eletricidade. O índice aumentou 0,60% no mês passado, bem menos que em janeiro (0,86%), de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As contas de energia ficaram 15,17% menores em fevereiro, "refletindo boa parte da redução de 18% do valo das tarifas em vigor a partir de 24 de janeiro", segundo o relatório divulgado. Só essa redução tirou 048 ponto do IPCA Mesmo assim, a alta acumulada em 12 meses chegou a 6,31%, bem perto do limite superior da margem de tolerância.
Energia mais barata é um benefício para o consumidor, principalmente se for sustentável, mas política anti-inflacionária é assunto muito diferente. Desonerações, mesmo quando bem executadas, afetam os índices de forma temporária, porque deixam intactos os fatores de pressão (como o aumento do crédito e o gasto público excessivo, por exemplo).
A Fundação Getúlio Vargas já advertiu: está-se esgotando, nos indicadores, o efeito da redução da conta de energia. Isso já se nota no IPC-S, atualizado semanalmente e sempre relativo a um período de quatro semanas. Na primeira quadrissemana de março, o aumento geral foi de 0,52%. Havia ficado em 0,33% no fechamento de fevereiro. A deflação registrada no item "habitação", onde se inclui o custo da energia, diminuiu de 1,28% para o,58% entre os dois períodos. Outras desonerações (da cesta básica, por exemplo) poderão frear a alta dos índices, nos próximos meses, mas sempre de forma temporária e sem mudar as condições propícias à inflação. Alguns preços poderão cair, mas a tendência geral, sem outras ações, será mantida. O pessoal do BC sabe disso e seria injustiça imaginar o contrário. Resta ver se a próximas decisões serão baseadas nas condições efetivas do mercado, na evolução mais ou menos benigna de índices administrados ou, mais uma vez, na preferência pela contemplação dos lírios do campo.

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