domingo, março 31, 2013

A face humana do Olimpo - DORRIT HARAZIM

O GLOBO - 31/03

Como um campeão que mordisca a medalha olímpica para a foto da vitória, Tiger Woods colocou entre os dentes a vara de grafite de seu taco putter e sorriu para o mundo. Acabara de vencer a terceira das cinco etapas GPA já disputadas este ano e os US$ 1,16 milhão que embolsou vieram se somar aos US$ 2,67 milhões abiscoitados nos dois torneios anteriores. O prêmio maior: com o resultado obtido esta semana, voltava ao topo do ranking mundial que lhe pertenceu até 2009, quando despencou do Olimpo e chafurdou na lama humana.

Vale recapitular. Eleito Atleta da Década (2000-2009) pelos editores de Esporte da Associated Press, Tiger Woods contabilizava 82 torneios mundiais com apenas 34 anos de idade, num esporte altamente cerebral cujo domínio pleno só costuma ser alcançado depois dos 40. Destinado a ser não apenas o maior golfista de todos os tempos, foi içado a um patamar que extravasava os campos de golfe.

A origem multicultural de Woods (pai negro, mãe oriental, ascendência branca e índia) e sua quietude disciplinada foram instrumentalizadas pela máquina de fabricar o ícone. Um dos outdoors de maior impacto da Nike, à época, sugeria que o atleta mais querido dos Estados Unidos na década passada (76% de popularidade) viera redimir o golfe, e quem sabe a América, de seu passado racista. Sem revolta, é claro. Apenas com maestria.

A cultivada esposa sueca, Elin Nordegren, linda e loira, e dois filhos pequenos, completavam o retrato de harmonia entre o desempenho superlativo do atleta e sua vida privada.

O marketing do esporte como formador de caráter é sedutor. Espera-se de atletas excepcionais que sejam admiráveis também como seres humanos. E que ao rigor do sacrifício , à tenacidade do treino, à dedicação irrestrita ao esporte corresponda uma retidão pessoal de pessoa honrada. Mas talvez seja exigir demais, para o bem de nossas expectativas.

O esfarelamento da imagem público-privada de Tiger Woods se deu a partir da colisão com um hidrante do carro que ele dirigia numa madrugada de novembro de 2009; quando se soube que a senhora Woods, que o aguardava em casa , destruiu parte do Cadillac Escalade a golpes de tacos de golfe alegando querer salvar o marido, os tabloides farejaram o escuso. E descobriram, sem grande esforço, toda uma vida paralela do grande atleta.

Mais de dez mulheres — entre garçonetes, escorts de US$ 15 mil por programa, starletes de filmes pornô — voluntariaram narrativas de longos relacionamentos com Woods. A todas era exigida prontidão para sexo urgente, bruto, impessoal. Algumas eram aerotransportadas por seus assessores, o chamado Team Tiger, para Dubai, Bahamas ou onde ele estivesse competindo. Outras eram levadas para a sua própria residência, na ausência da esposa, e o sexo era consumado já na garagem ou na cozinha. Também vieram à tona jogatinas com Michael Jordan e Charles Barkley num cassino exclusivo de Las Vegas, onde a mão é de US$ 25 mil e a linha de crédito exigida de US$ 1 milhão. A cada nova revelação, nova orfandade de fã.

A queda do pedestal foi estrondosa. Após um sumiço em clínica de tratamento para compulsão sexual, o atleta perdeu a esposa-ícone e cinco dos seis megapatrocinadores que injetavam US$ 110 milhões em sua conta bancária cada ano. Seu retorno aos campos de golfe foi humilhante: despencou para a 58ª colocação no ranking mundial , algo como se Pelé, no auge do seu potencial, fosse jogar num time de terceira divisão.

O Tiger Woods que esta semana retornou ao Olimpo é outro. Não apenas pelo bigode ferradura, impensável na época em que era patrocinado pela Gillette. Hoje, é apenas o atleta de talento único, com vícios e imperfeições pessoais expostas. Quem o aplaude, é por saudar sua destreza em campo.

Woods demonstrou sem querer que descontrole pessoal e precisão competitiva podem ser compatíveis mesmo num esporte como o golfe, que exige foco e disciplina mental agudos, além da capacidade de bloquear qualquer distração. Uma de suas amantes mais assíduas conta que numa manhã de 2007 ele a convocou para as 5h30m, em seu escritório. Dali seguiria direto para o aeroporto, rumo a um dos torneios mais importantes do ano. Mas esquecera o cartão magnético do portão principal. Contrariado e fora de si, conduziu a jovem até o estacionamento de uma igreja próxima e fez sexo atabalhoado no banco de trás do Cadillac. Depois embarcou, competiu e venceu.

Hoje, seu retorno ao topo da lista está longe de consolidado. Dentro de quatro dias um torneio do PGA Tour poderá devolver o título ao irlandês Rory McIlroy, prenúncio de um ano de disputa ferrenha. E o primeiro embate de grande envergadura só ocorrerá no dia 11 de abril, no Masters de Augusta, no estado da Georgia, um dos quatro campeonatos de golfe profissional de maior prestígio do mundo.

A Nike, único patrocinador pré-hecatombe a não ter abandonado o golfista, publicou um anúncio de gosto duvidoso para comemorar o ressurgir das cinzas: “Vencer resolve tudo — Tiger Woods # 1 do mundo.”

Os tempos têm sido difíceis para quem gosta de esporte, admira atletas e teima em associar a prática, de um modo geral, a algum fortalecimento de caráter. Para cada Lance Armstrong , Oscar Pistorius ou Tiger Woods espera-se que haja pelo menos um Roger Federer semelhante à sua imagem.

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