terça-feira, novembro 27, 2012

Outro escândalo - EDITORIAL ZERO HORA

ZERO HORA - 27/11

Desta vez, não cabe atribuir armação à "imprensa golpista", nem responsabilizar o Supremo Tribunal Federal por um suposto julgamento político. A identificação do novo escândalo no coração do poder, envolvendo a chefe de gabinete da Presidência da República em São Paulo e o segundo nome da Advocacia Geral da União, partiu de uma investigação independente da Polícia Federal, sem pressões de qualquer natureza. Os indícios colhidos até agora remetem para as mesmas conclusões de episódios anteriores. Uma quadrilha, formada por ocupantes de altos postos no governo, vendia pareceres técnicos de agências reguladoras, para favorecer determinadas empresas, e oferecia os serviços de lobby nas mais diversas áreas, como se órgãos públicos tivessem sido privatizados por figurões da República.
O que impressiona também nesse caso é que os personagens transitavam com desenvoltura pelo poder, certamente por se considerarem privilegiados de apadrinhamentos políticos e por isso mesmo imunes a suspeitas e a investigações. José Weber Holanda Alves, da Advocacia da União, não só já desfrutava de um cargo importante como também, no dia 12 deste mês, havia sido nomeado para o conselho deliberativo do fundo que irá administrar a aposentadoria complementar dos funcionários públicos. Alves tinha, portanto, a confiança do governo, pois sua nomeação foi determinada por decreto assinado pela presidente Dilma Rousseff.
A figura emblemática dessa história, no entanto, é mesmo a chefe de gabinete da Presidência em São Paulo. Rosemary Novoa de Noronha convivia com a alta cúpula do Planalto desde 2003, quando assumiu como assessora especial da Presidência, no então governo Lula. Desde 2005, quando chegou à chefia do gabinete, manobrava nas agências reguladoras, com favorecimentos até ao próprio marido e a uma filha. Repete-se agora a mesma interrogação de outros escândalos brasilienses: como o advogado-geral-adjunto e a encarregada do escritório da presidente em São Paulo agiam há tanto tempo sem que nenhum mecanismo interno de controle tenha sido acionado? Pergunta-se, ainda, que atributos morais teriam os dois para ocupar funções tão importantes, se acabaram sendo flagrados em rapinagem.
Além da Operação Porto Seguro, a PF também investiga um esquema de lavagem de dinheiro, grampos telefônicos e obtenção ilegal de sigilo fiscal e bancários que já tem 180 vítimas, entre as quais um Senador, um ex-ministro, dois desembargadores, dois prefeitos, um banco e uma filial de emissora de televisão. A Operação Durkheim envolve 73 pessoas, das quais 33 já tiveram prisão preventiva decretada. Ao agir com independência política e com rigor, tanto para desbaratar malfeitorias da administração pública quanto para flagrar falcatruas privadas, a Polícia Federal cumpre o papel moralizador e pedagógico que a sociedade espera da instituição.

Aguenta coração - ANCELMO GOIS


O GLOBO - 27/11

Dilma só anunciará a decisão sobre os royalties sexta, último dia do prazo.

Aliás...
Veta, Dilma.

Barco furado
Ainda a respeito da investigação do CNJ sobre a indústria da falência no Rio, objeto de matéria de Chico Otávio e Liane Thedim, no GLOBO, Cabral tem lutado para que o Caneco seja reerguido e crie mais 1.500 empregos.
Mas o governo desconfia que a massa falida do estaleiro não queira perder a boca da administração e prefira deixar tudo como está.

Segue...
Segundo o governo estadual, uma forma foi estipular um preço alto para afugentar eventuais compradores.
Em 2007, a massa fixou em R$ 35 milhões o valor, que subiu até atingir R$ 84 milhões, em fevereiro de 2012, e, um mês depois, R$ 358 milhões.

Negros no poder
Em 2013, o Brasil terá dois negros no comando do Judiciário — além de Joaquim Barbosa, no STF, Carlos Alberto Reis de Paula presidirá o TST.
Aliás, o país terá uma mulher no comando do TSE, a ministra Cármen Lúcia.

Coluna de Joaquim
De Leny Andrade, 69 anos, a grande cantora, sábado, num show do Sesi, no Rio, ao esquecer uma música:
— Agora, não tenho mais “um branco”, me dá “um preto”. Por falar nisso... eu queria ter ido a Brasília. Adoro aquele preto. Tenho certeza que daria logo um jeito na coluna dele.

Esse cara sou eu
Corre na Rádio Emoções que o novo amor do Rei Roberto Carlos mora em... Maceió. A conferir.

Gladiadores barrados
O lutador de MMA João Saldanha tentou tirar o visto para os EUA.
Queria ir para a Califórnia com a namorada. Mas o consulado, no Rio, e a embaixada, em Brasília, negaram.

Segue...
Saldanha é o quinto lutador de MMA a ter o visto para os EUA negado.
Entre os cinco, os gladiadores Hugo Wolverine, da equipe do UFC, e Warley Alves, do time de Anderson Silva.

Mimi, o metalúrgico
Quem está no Rio é o italiano Giancarlo Giannini, 70 anos, protagonista de “Mimi, o metalúrgico”.
O filme, de Lina Wertmuller, é um dos clássicos do cinema político italiano dos anos 1970.

Tom e a Amazon Music
A “História de canções — Tom Jobim”, de Wagner Homem, que a LeYa lança em dezembro, relata um lado pouco conhecido do maestro.
O livro conta que Tom (1927-1994) tinha, digamos, visão intuitiva de mercado: em 1968, pensou em registrar, acredite, a marca “Amazon Music”, hoje uma das mais valiosas do mundo.

O imperador republicano
A “Revista de História da Biblioteca Nacional” vai provocar os monarquistas. Promove hoje o debate “Dom Pedro II, o imperador republicano”. Os historiadores Cláudio Antônio Monteiro, Alessandra Fraguas e Marcello Scarrone discutirão “o desejo do imperador de ser... presidente da República”. Veja o cartaz.

Shopping na favela
O mineiro Elias Tergilene, que fundou a rede de shoppings populares Uai, em Belo Horizonte e Manaus, pretende estender seus negócios ao Rio.
Visitou as favelas Cidade de Deus, Acari, Rocinha, Complexo do Alemão, Vila Vintém e Vila Cruzeiro.

Feijão de molho
O Renascença, o clube carioca criado por negros, faz domingo agora sua... milésima feijoada, em evento pelo Dia Nacional do Samba.
Jorge Ferraz, ex-presidente do clube e cozinheiro de mão cheia, vai pôr na panela 40kg de feijão. Ai, que fome.

Dom Orani do Cavaco
A Unidos da Tijuca fará um show hoje à noite, no Espaço Tom Jobim, para o alta cúpula do Vaticano, num evento organizado por Dom Orani Tempesta, o arcebispo do Rio que é amigo do samba.

Compras na internet
O Procon do Rio vai inaugurar, sábado, uma tenda no Parque Madureira só para atender quem teve problema ao comprar pela internet.
Funcionará nos fins de semana, até o Natal. É que o órgão recebeu muitas queixas das vendas na tal “Black Friday”.

Aliás...
“Black Friday” é o cacete.

Mais um atentado à democracia - DOUGLAS FISCHER

ZERO HORA - 27/11

"Quadrilheiros" e bandidos de todas as estirpes devem estar comemorando: uma comissão da Câmara dos Deputados aprovou a PEC 37, proposta de emenda à Constituição que proíbe expressamente o Ministério Público de investigar crimes. Pelo texto aprovado - que ainda precisa ser votado no Plenário da Câmara e no Senado - essa seria uma atribuição exclusiva das polícias federal e civil.
A aprovação "coincide" com o momento em que se julga o mensalão, caso em que grande parte da prova que serviu de base para o Supremo Tribunal Federal condenar vários réus resultou de investigação direta do Ministério Público. Nos termos da PEC 37, isso não seria possível. Outra "coincidência": o autor do destaque que defendeu a PEC na comissão da Câmara é réu na Ação Penal 611, que tramita no STF com base em investigação do MP.
Mas por que a exclusividade dada às polícias na investigação criminal? Outras instituições, com características diversas, investigam e devem continuar investigando, de forma integrada e sinérgica. Entre elas, está o Ministério Público, cujas prerrogativas e deveres contribuem de modo particular para o processo investigatório.
A independência funcional de promotores e procuradores mantém seu trabalho imune a ingerências hierárquicas e externas, ao contrário do que ocorre em outros órgãos; essa é uma das maiores garantias do cidadão no que se refere à investigação criminal. Além disso, o MP tem o dever constitucional de proteger a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis; isso implica, entre outras responsabilidades, respeitar os direitos fundamentais de todos no curso de investigações.
O dever do MP de defender o ordenamento jurídico passa pela devida apuração dos atos ilícitos, ponto de partida para o processamento e a punição dos responsáveis. Nas palavras do ex-presidente do STF Ayres Britto, "privar o Ministério Público dessa peculiaríssima atividade de defensor do Direito e promotor da Justiça é apartá-lo de si mesmo. É desnaturá-lo. Dessubstanciá-lo até não restar pedra sobre pedra".
Como bem ponderou o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, tentar impedir a investigação criminal pelo MP é um dos maiores atentados à democracia. Caso a PEC 37 seja aprovada, o Brasil estará numa situação só encontrada em Uganda, no Quênia e na Indonésia. A quem interessa esse golpe na cidadania? Parece bastante claro.

Sexo e erotismo - FRANCISCO DAUDT

FOLHA DE SP - 27/11


Nossa espécie arrumou sofisticações para o impulso sexual, e a maior delas é o amor


Está bem que nosso primeiro e mais basal motor para viver é o impulso sexual (o gene egoísta quer reprodução, por isso nos ilude com a isca dos prazeres), como qualquer outro vivente sexuado. Mas a nossa espécie, em sua complexidade, arrumou sofisticações para a coisa, e a maior delas é o amor.

Os campeões de pensar o amor continuam sendo os gregos clássicos, de 2.400 anos atrás. Eles reconheciam três formas distintas de amor: Eros, Filia e Ágape.

Eros fala do desejo se expressando nos sentidos, como excitação, e no cérebro, como embriaguez. No coração e nos genitais, ambos pulsantes, na pele que se arrepia, na visão que se turva, na face que enrubesce, no equilíbrio que se perde, na voz que falta, na paixão que arrebata, no animal que irrompe, no ímpeto de tomar, na lassidão de se entregar. A um tempo telúrico e delicado, tectônico e sutil, a mais evidente força da natureza em nós. Ainda estão para inventar prazer maior que o da excitação romântica. Nada se compara à felicidade sexual que faz ver passarinhos verdes, e que só acontece quando a chave e a fechadura certas se encontram, coisa rara. Assim é Eros.

Filia é a amizade, o encontro das almas, o porto seguro, a confiança aliada ao respeito. A consideração (que é ter o outro dentro de si), o bem querer e querer o bem. O lugar da intimidade emprestada com gosto, da compreensão, da compaixão (que é o sofrimento partilhado), do acolhimento da alegria e da tristeza, da saúde e da doença, da riqueza e da pobreza pelos tempos afora. Qualquer semelhança com os votos do casamento é totalmente intencional, pois não há um que perdure sem que a filia tenha crescido entre os dois.

Ágape é a camaradagem, a ligação dos companheiros, seja da boa mesa, seja da torcida pelo esporte. É a liga entre correligionários, do partido ou da religião mesmo, que às vezes se confundem. São os contendores do frescobol, o esporte sem contenda, voltados que estão para construir beleza em suas jogadas, um escada do outro. Os colegas de turma, que almoçam nos aniversários redondos de formatura e se atiram bolinhas de pão. Sócios do mesmo clube, os seguidores do mesmo Twitter, do Facebook, parceiros do baralho na pracinha. Aqueles que se reúnem para tirar um carro do atoleiro e depois não se encontram mais. Dão passagem no trânsito, lugar para os mais velhos. Colegas de excursão. Colegas.

Os vários tipos de amor se entrelaçam, ou, pelo menos, não são categorias estanques, e é bom que seja assim. Eros surgindo na Filia, Filia no Eros, Ágape passeando entre eles...

A pornografia é curiosa. Em sua origem significa "registro da prostituição". É, como a outra, comercializável. E pode, como a outra, ser ou não plena de Eros. Carlos Zéfiro da minha adolescência continha Eros, sedução. Os filmes de hoje, que já começam na aeróbica, têm pouco Eros. Ou o fetiche voyeurista é seu próprio Eros?

Mas meu interesse é perceber como a espécie trouxe complexidade ao comando genético que leva à reprodução, e o leque de possibilidades que nosso desejo contempla.

Minha infância solitária - FABRÍCIO CARPINEJAR

ZERO HORA - 27/11


Eu era tão sozinho na infância que se aparecesse um fantasma pra falar comigo não ficaria com medo, mas conversaria com ele. Pediria para que a assombração não se assustasse, que saísse debaixo da cama, que viesse descrever os aborrecimentos e desabafar as circunstâncias da morte.

Puxaria uma cadeira para aliviar seu cansaço de atravessar paredes.

Se viesse arrastando correntes, abriria o cadeado com a chave pequeninha do porão, que funcionava maravilhosamente bem com fechaduras desconhecidas.

Olharíamos as ilustrações de Alice no País das Maravilhas e nadaríamos no lago de lágrimas da personagem.

Emprestaria um dos meus três abrigos escolares, afinal, os mortos costumam se vestir mal.

Iríamos juntos, de mãos dadas, para o colégio.

Dividiria minha Pastelina e meu Nescau.

Mostraria qual o banco de pedra predileto do recreio, com vista privilegiada das rodinhas das meninas bonitas.

Poderia chutar pinha no meio da rua: o bueiro seria o nosso gol.

Assistiríamos ao trânsito do banco de trás do Opala amarelo do pai.

Insistiria para a mãe preparar bolinho de arroz.

Ele me ajudaria a escalar árvores e muros.

Perguntaria se ele gostaria de brincar de gladiador com as tampas do lixo.

Teria alguém para andar de gangorra e fazer peso ao meu corpo.

Teria alguém para evitar o fim de pedra dos passarinhos.

Teria alguém para chorar a separação dos pais.

Teria alguém para me confortar nos exercícios de matemática.

Teria alguém que não me acharia estranho, esquisito, monstro.

Teria já alguém confirmado para minha festa de aniversário.

Eu seguraria o botão do bebedor enquanto ele se curvaria ao esguicho.

Ele me avisaria das pedras irregulares da praça.

Jogaríamos miolo de pão para as pombas.

O fantasma seria meu amigo predileto, meu confidente, meu guia de estimação. Muito melhor do que amigo imaginário – ostenta mais experiência.

Jamais recusaria sua visita.

Só esnoba o invisível quem não é carente. Sempre fui faminto de acontecimentos. Sempre fui ouvinte porque não tinha com quem trocar confidências até os oito anos.

Escutava vento, escutava chuva, escutava até o sol.

Vivi um claustro involuntário. Fui um monge mirim. Meus olhos cresceram pelo excesso de palavras por dizer.

Nunca desperdiçaria a chegada de um fantasma. Salvaria a minha solidão.

A Europa de Steiner - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 27/11


Não, aquilo que une os europeus não é a União Europeia, o euro e outras construções burocráticas


Estou sentado num café no centro de Lisboa. Sobre a mesa, os jornais do dia. Então um cavalheiro aproxima-se da minha mesa, olha para os jornais e pergunta: "São da casa?".

Eu sorrio, digo que não, que são meus, mas disponibilizo a prosa na mesma. O homem agradece, escolhe um deles, afasta-se e começa a leitura matinal. Então eu penso: isto é a Europa.

Penso eu e pensa George Steiner, em pequeno ensaio que recomendo. Intitula-se "A Ideia de Europa", foi uma conferência célebre proferida por Steiner no Instituto Nexus, da Holanda, e a ambição do autor era a de encontrar o patrimônio cultural que une os europeus.

Steiner é magistral, na forma e no conteúdo: não, aquilo que une os europeus não é a União Europeia, o euro e outras construções burocráticas presentemente em crise.

A ligação fundamental encontra-se, antes, na cultura, no pensamento e, enfim, numa certa forma de estar e de viver que, embora possa ser exportada para outras latitudes, tem um berço reconhecível.

Os cafés são um bom exemplo. As ilhas britânicas podem ter os seus pubs. As cidades americanas podem ter um bar em cada esquina. Mas os pubs e os bares não são os cafés de Lisboa, frequentados por Fernando Pessoa. Nem os cafés de Odessa, povoados pelos gângsteres de Isaac Babel.

Para Steiner, os cafés da Europa são lugares de encontro, ociosidade, debate e até produção intelectual. Como escreve o autor, podemos imaginar tudo num pub ou num bar. Não imaginamos a produção de uma obra filosófica; um debate político intenso; o nascimento de um novo movimento artístico; ou até, como agora, a simples partilha anônima dos jornais do dia para acompanhar o café da manhã.

A Europa são os seus cafés. E seria possível escrever uma história cultural do continente atribuindo a Karl Kraus, a Carnap ou a Musil o seu café particular, escreve Steiner.

Mas a ideia de Europa não se limita aos cafés. Nessa ideia, está também a dimensão humana e histórica dos lugares. A Europa não é percorrida por uma selva amazônica ou por um deserto do Saara. As suas distâncias não são geológicas ou continentais.

A Europa, desde sempre, foi um território pedestre, no sentido literal do termo: algo para ser descoberto a pé. As distâncias são humanamente modestas. E, em cada rua ou praça, não temos a classificação impessoal e numérica das grandes cidades americanas: Quinta Avenida, Sexta, Sétima, e por aí afora.

Temos marcas literárias, políticas, artísticas, de um continente saturado de passado. Steiner cita exemplos: rue Lafontaine, place Victor Hugo, Pont Henri IV. Os europeus convivem diariamente -melhor: caminham diariamente- pela evidência material e imaterial do que ficou para trás.

Por fim, não interessa se você nasceu em Lisboa, Paris ou Berlim. O europeu é sobretudo herdeiro de Atenas e Jerusalém: da cidade terrestre e da cidade celeste; da tensão permanente entre a razão e a fé; entre o espírito científico e as "intimações" da transcendência.

Foi desse diálogo, e até desse confronto, que nasceu o melhor das artes e das letras. Um patrimônio que sobrevive até hoje.

Claro que Steiner, o último grande humanista do nosso tempo, também sabe que a ideia de Europa não se limita a páginas nobres: a Europa foi igualmente o espaço de ódios viscerais e barbaridades sem perdão.

Como Steiner repetidamente escreve em várias das suas obras, o continente europeu foi aquele onde era possível escutar Schubert ao jantar e, na manhã seguinte, gasear judeus de consciência limpa.

Mas mesmo essa experiência negra conferiu aos europeus um "sentido de finitude" apurado. É essa consciência assombrada que distingue o homem europeu do otimismo fundacional que impera no Novo Mundo.

Moral da história?

Todos os dias, o leitor é confrontado com notícias apocalípticas sobre o futuro da União Europeia. E é possível que, lendo essas notícias, o leitor cometa o erro mais comum sobre a matéria: confundir a União Europeia com a Europa e os burocratas de Bruxelas com os europeus.

Nada mais falso. Ler George Steiner é reaprender que a ideia de Europa é anterior à União Europeia. E que, aconteça o que acontecer, essa ideia irá sobreviver a ela.

O lirismo do carnaval - TIAGO PRATA

O GLOBO - 27/11

É muito perigoso o conceito de que músicas divertidas são "melhores" que as lentas, pois ignora totalmente o sentido da folia carioca



A declaração da coordenadora do concurso de marchinhas da Fundição Progresso, Vanessa Damasco, publicada na coluna do Joaquim Ferreira dos Santos no GLOBO do último dia 15, fez despertar uma discussão sobre o carnaval. Vanessa diz que este ano o resultado do festival ficou mais "divertido", com menos "música lenta e marcha-rancho entre as finalistas".

Esse conceito de que músicas divertidas são "melhores" que as lentas, além de ignorar completamente o sentido do carnaval, é perigoso e pode acabar transformando nossa festa momesca numa simples animação, sem lirismo, saudosismo e poesia.

A lamentação e a tristeza são características marcantes de canções, geralmente em tom menor, e de pierrôs e colombinas.

Estes personagens são símbolos fundamentais e presença obrigatória tanto nas várias fantasias que envolvem a festa, como nas lindas melodias e nos ritmos de marchinhas mais cadenciadas, marchas-rancho e outros gêneros irmãos, como o frevo-canção.

O concurso de marchinhas da Fundição já é uma tradição, além de ser, possivelmente, o maior festival de músicas inéditas do país, e tem nos revelado autores inspirados e composições bem interessantes.

Podemos, inclusive, lembrar algumas fora do estilo “mais divertido”: em 2008, a linda “Velho palhaço”, do cearense Paulo Gomes, ficou em 3° lugar; na última edição, a “Marcha das flores”, de Gilberto Xangô, apesar de não figurar entre os premiados três primeiros lugares, foi destaque pela beleza que esse tipo de música pode nos proporcionar, inclusive no carnaval.

Em todas as outras edições, ao menos uma música deste estilo foi selecionada entre as dez, mas sem nunca obter grande sucesso.

Soou infeliz a fala de Vanessa publicada pelo colunista. O mais grave, porém, é que essa visão tem tido cada vez mais adeptos na nossa festa pagã.

Talvez seja preciso, para quem veja o maior evento popular do Brasil como algo apenas "divertido", um roteiro para o próximo fevereiro: "Pastorinhas", "Até Quarta Feira", "Marcha da Quarta Feira de Cinzas", "Noite dos mascarados", "Bandeira branca” e várias outras canções tão carnavalescas quanto a “Cabeleira do Zezé”.

Convido também para conhecer o Rancho Carnavalesco Flor do Sereno, do bar Bip Bip do Alfredinho, em Copacabana. Há doze anos, tem como objetivo mostrar esse estilo de brincar carnaval. Infelizmente, apesar do empenho, Alfredo sofre com dificuldades de apoio e patrocínio para colocar seu rancho na rua.

O carnaval da Cidade Maravilhosa ganharia muito se empresas e/ou governos dessem ao Flor do Sereno o valor que ele merece. Nele, a democracia reina, e as marchinhas de picardia têm a mesma importância das líricas. Sem elas, ficaremos apenas pulando que nem pipoca, igual ao carnaval dos abadás.

Bocas de fumo - CARLOS HEITOR CONY

FOLHA DE SP - 27/11


RIO DE JANEIRO - Durante os anos da ditadura, e depois de seis prisões em dependências militares, continuei trabalhando na imprensa, mas sem poder escrever sobre os temas que haviam me levado para as diversas celas que frequentei naqueles anos.

A alternativa, para não morrer de fome, foi adaptar clássicos da literatura universal para o público infantojuvenil (mais de 40) e cobrir o setor de polícia para uma revista de amenidades.

Meus personagens eram mais ou menos divertidos: Escadinha, Cara de Cavalo, Lúcio Flávio, o Esquartejador de São Paulo (Chico Picadinho), Mariel Mariscot, o caso Lou (que chegou a virar livro e história em quadrinhos), Doca Street e a Pantera de Minas, Aída Cúri, Cláudia Lessin Rodrigues e Michel Frank, Dana de Teffé -a lista é grande e deu para o leite das crianças.

Uns pelos outros, a mídia daqueles tempos se cevava nesses casos que ocupavam a maior parte do noticiário. Se um jornal publicasse a foto de um ministro do Supremo na primeira página, ou seria empastelado ou ficava sem leitores. Evidente que a mídia continua a cobrir crimes, mas o filé-mignon passou a ser outro.

Independentemente do mensalão e do Cachoeira, o baixo clero da política e da economia nada fica a dever aos grandes crimes acima lembrados. Agora mesmo estourou mais um caso que deixa em péssima situação toda a cúpula do poder, vale dizer, do PT e de seus aliados. Até que ponto a tese do "domínio do fato" não compromete a própria presidente Dilma e seu guru preferencial, o ex-presidente Lula?

O eixo do noticiário deixou de ser as drogas, os traficantes, as milícias assassinas de São Paulo. O Palácio do Planalto, com seus anexos nos Estados, está aos poucos substituindo as bocas de fumo onde se instalava o crime organizado.

Não se vive para sempre - CLÁUDIO MORENO

ZERO HORA - 27/11


Quando nossos antepassados mal começavam a andar eretos – muito antes, portanto, de nascer o primeiro cientista ou o primeiro filósofo –, já ecoava, na caverna, a mesma pergunta que hoje e sempre haveremos de fazer: por quanto tempo ainda vou ficar neste mundo? Se hoje me deixassem decidir, escolheria toda a vida e mais seis meses, como dizia minha avó. Não tenho certeza, no entanto, se minha resposta seria a mesma se a pergunta fosse refeita daqui a 30 anos, pois as pessoas mudam com a idade, como nos ensina a triste história da sibila de Cuma.

Muitas foram as sibilas que o Mundo Antigo conheceu, mas nenhuma foi tão famosa – e tão melancólica – quanto aquela que vivia em Cuma, primitiva colônia que os gregos tinham fundado na Itália. Contam que esta profetisa era tão atraente que o próprio Apolo, o mais belo dos deuses, encheu-se de desejo e prometeu o que ela quisesse em troca de sua virgindade.

“Qualquer coisa”, disse ele – e a jovem sibila, enchendo a mão com a fina areia da praia, pediu um ano de vida para cada grão contido naquele punhado, o que a faria durar mais que um milênio. Ansioso por possuí-la, Apolo não hesitou em conceder o que ela pedia, mas a jovem, sabendo que os dons divinos não podem ser revogados, esquivou-se dos abraços do deus e o abandonou ali, furioso por ter se deixado enganar por uma simples mortal.

Pois ela não ia escarnecer de Apolo por muito tempo: tinha esquecido de incluir a eterna juventude em seu pedido e, como acontece com todas as mortais, ao cabo de algumas décadas a sua beleza tinha se esvanecido. Já centenária, decrépita e envelhecida, viu-se condenada ao suplício de viver mais nove séculos, encolhendo pouco a pouco até ficar reduzida ao tamanho de uma criancinha.

Quando Eneias passou por Cuma, depois da queda de Troia, ela, já com 700 anos, queixou-se amargamente de seu destino: ainda teria de ver 300 colheitas! Por fim, já perto do milênio libertador, estava tão mirrada que a guardavam numa gaiola, e terminou seus dias como atração das crianças de rua, cuja diversão era provocá-la: “Sibila, o que queres?” - ao que ela sempre respondia, roída por um arrependimento de séculos: “Quero morrer!”.

Para o mexicano Carlos Montemayor, esta resposta da sibila contém o mais valioso ensinamento que a Antiguidade nos deixou sobre o tempo: a velhice prolongada prepara o homem para a receber a morte como uma ocorrência natural, às vezes até desejada. Compreendo as escolhas da sibila: quando era jovem, queria viver mil anos – e nisso estava muito certa; quando se tornou uma anciã, porém, ela queria morrer – no que também estava certíssima. Eu, contudo, tenho tantos projetos que, como Sêneca, acredito que nunca serei tão velho que não deseje viver nem que seja um dia a mais.

Tudo, de bolso - NIZAN GUANAES

FOLHA DE SP - 27/11


A telinha do celular será em breve uma das principais vitrines da sua atividade; o pequeno ficou grande


Entre tantas revoluções nas comunicações, uma das mais importantes é a migração das telonas para as telinhas, da conexão por PCs e laptops para aparelhos móveis como celulares e tablets.

É a revolução da mobilidade, ou "mobile", em globish. Que está nos transformando.

A comunicação, quanto mais intensa, mais interfere em nossas vidas. A comunicação, afinal de contas, é o que nos une. Ela já é total e segue evoluindo rapidamente.

Unir a comunicação à mobilidade é como unir o território ao movimento, o espaço dos lugares dando lugar ao espaço dos fluxos. É nessa torrente que você, seus amigos, sua empresa, sua marca e seu produto estão navegando.

A mobilidade é a nova dimensão, o 4D. Um ponto infinito dentro do bolso. É só tirar e acessar... tudo. Sua conta bancária, suas lojas favoritas, seus jornais, seus programas de TV, suas músicas, os restaurantes da redondeza, o tempo, o trânsito, o caminho. Em resumo, tudo e o seu contrário. O mundo.

Mas, principalmente, acessar seus amigos e seus relacionamentos. E carregar os amigos no bolso é genial.

Entre 2013 e 2015, o reinado dos PCs vai acabar, e a maioria dos acessos à internet será feito por aparelhos móveis.

Em países emergidos, como o Brasil, os aparelhos móveis serão cada vez mais a forma dominante de acesso por serem mais baratos que os computadores tradicionais.

E a propaganda precisa ir aonde a audiência está. Basta olhar em sua volta e no espelho: nossa atenção está cada vez mais nas telinhas que carregamos no bolso ou na bolsa. Você pode esquecer tudo em casa, mas, se esquecer do celular, vai voltar.

Enquanto a TV, o aparelho dominante das últimas décadas, nasceu junto com o marketing, a nova pequena tela para o mundo oferece pouco espaço para a publicidade como a conhecemos.

No começo da internet, muita gente simplesmente pegou o anúncio off-line e o adaptou à web, mas off e on são obviamente muito diferentes. No "mobile", aprendemos com nossos primeiros erros digitais. Não faz sentido adaptar estratégia web para o "mobile".

É preciso usar o que há de específico e elementar nesse ambiente, como localização do usuário, conectividade com agenda e calendário, capacidade de fazer ligações telefônicas.

Em cima dessas capacidades, uma indústria de aplicativos difusa e inovadora constrói velozmente serviços tão específicos quanto a criatividade de milhões e milhões de desenvolvedores espalhados pelo mundo. Um desenvolvimento que, como Steve Jobs, consegue unir a compreensão do humano com a compreensão da tecnologia.

O resultado são serviços fáceis de acessar que os usuários consideram relevantes e úteis, do mais frívolo ao mais importante.

Na sexta-feira passada, nas promoções da "Black Friday", a grande sensação nos Estados Unidos foram aplicativos que mostravam as melhores ofertas de lojas próximas de acordo com escolhas do usuário.

Existem ainda aplicativos que literalmente salvam vidas, previnem e auxiliam na cura de doenças. Na África do Sul, uma operadora de telefonia atuou com ativistas sociais e pesquisadores para enviar 1 milhão de torpedos diários incentivando ligações para serviço de informações sobre Aids, com resultados espetaculares.

Na Tailândia, a eficiência de tratamento contra tuberculose aumentou sensivelmente com o envio diário de torpedos lembrando aos pacientes a hora certa da medicação.

No Quênia, um aplicativo chamado MedAfrica permite checar credenciais de um médico, localizar hospitais próximos, consultar

manual de primeiros socorros, conhecer propriedades e dosagens de remédios, identificar sintomas de doenças.

Eric Schmidt, presidente do conselho de administração do Google, disse na Clinton Global Initiative que a mobilidade é o fator que mais pode ajudar na mobilização das causas sociais. Certamente, ela pode fazer o mesmo com causas comerciais.

Se você quer um insight desta coluna, é o seguinte: a telinha do seu celular será brevemente uma das principais vitrines da sua atividade. É melhor dar à devida atenção a ela desde já.

O pequeno ficou grande.

Desigualdades, aqui como aí - CLÓVIS ROSSI

FOLHA DE SP - 27/11


O assalariado é quem paga a maior fatia do ajuste; no Brasil, a renda continua concentrada no capital


MADRI - Deixemo-nos de hipocrisia: as políticas ortodoxas de ajuste punem muito mais o salário que o capital. O caso da Espanha é ilustrativo e faz lembrar uma situação que os países em desenvolvimento conheceram bem nos anos 80/90.

Até o simbólico ano de 2008, quando quebrou o banco Lehman Brothers, os salários tinham uma fatia mais gorda que o capital no bolo da riqueza espanhola: 49,5% x 41,41%. É justo que assim seja, na medida em que os assalariados são muitos mais do que os capitalistas, e é natural que abocanhem uma fatia maior da riqueza (quanto maior, é uma discussão interminável).

A partir daí, o ajuste ortodoxo se fez cortando salários e empregos, de tal forma que, hoje, estão praticamente empatados: 45,6% para os salários e 45,12% para o capital (dados do terceiro trimestre, recolhidos pelo jornal "El País" para a capa de seu caderno dominical "Negócios").

Ou seja, os salários retrocedem quase quatro pontos percentuais, enquanto o capital ganha o mesmo tanto. Isso é equanimidade?

Desde o primeiro trimestre de 2009, não houve um único trimestre em que os salários tivessem obtido algum ganho, ao contrário do que vinha acontecendo desde pelo menos 2000. Pior ainda: embora o presidente do governo, Mariano Rajoy, diga que "o pior já passou" (frase pronunciada na presença da presidente Dilma Rousseff, na segunda passada), na vida real verifica-se que o maior retrocesso dos salários (5,5%) se deu justamente no trimestre mais recente, o terceiro.

Para os "fanáticos da dor", como os qualifica o Prêmio Nobel Paul Krugman, pode ser que o massacre seja apenas o prelúdio da recuperação. Pode ser. A economia espanhola, como qualquer outra, um dia sairá do buraco. Mas "a recuperação dos danos que esta crise está originando exigirá uma temporada longa", escreve o economista Emilio Ontiveros para "El País".

Diante de evidências tão contundentes, há segundos pensamentos entre os líderes europeus? Nem sombra. "Lamentavelmente, as ideias que impuseram a atual política econômica continuam intactas. (...) No momento, não existem indícios de vida inteligente na Europa", escreve José Carlos Díez, professor de economia.

Fica claro que a presidente Dilma Rousseff não está sozinha ao criticar a absoluta hegemonia de políticas de austeridade. Mas seria importante que a presidente não comprasse alegremente a lenda de que a desigualdade na distribuição da renda no Brasil está diminuindo.

Já até cansei de demonstrar o contrário, mas, agora, até uma revista ultragovernista como "Carta Capital" publica entrevista de Fernando Nogueira da Costa (ex-Caixa, hoje Unicamp) em que ele diz o que tenho dito há anos: caiu, sim, a desigualdade entre salários, mas não entre a renda do capital e do trabalho. "Fala-se na diminuição da desigualdade, mas ela ocorre em razão da renda do trabalho, não da riqueza financeira", diz.

E acrescenta: "Passa a impressão de que vivemos uma desconcentração da riqueza, quando não é verdade".

A diplomacia dos Estados da Federação - RUBENS BARBOSA


O Estado de S.Paulo - 27/11


Numa Federação, como o Brasil, o equilíbrio entre o poder central e os Estados está regulado pela Constituição, mas sempre surgem questões específicas que desafiam esse equilíbrio e apresentam problemas e conflitos de interesses muitas vezes de difícil solução. Alguns casos recentes, como a guerra tributária dos portos e a distribuição dos royalties do pré-sal, além da questão da criação de um imposto de valor agregado em substituição a um imposto estadual, o ICMS, são exemplos expressivos dessa dificuldade.

A formulação e a execução da política externa é, segundo a Constituição, de competência exclusiva do governo federal, por intermédio do Itamaraty. Algumas iniciativas isoladas de Estados que assinaram diretamente acordos internacionais claramente se chocaram com a competência exclusiva do Ministério das Relações Exteriores (MRE). A maior projeção externa do País e o crescimento da economia brasileira fizeram com que aumentassem o número de altos dignitários no Brasil e os contatos com o exterior em todos os níveis, federal, estadual e mesmo municipal.

Com a globalização, as facilidades de comunicação e de transportes, outra área passou a ser afetada pelos crescentes contatos externos dos Estados federativos: a política externa. Levando em conta as transformações por que passam as relações internacionais, em função da interdependência financeira e sobretudo comercial, as relações entre o governo de Brasília e os Estados e municípios passaram a requer um permanente diálogo, de troca de informações e de consultas, para maior coordenação e maior harmonia nos diversos níveis de relacionamento externo do Brasil.

A descentralização política, depois de 1985, o processo de integração regional, principalmente com a criação do Mercosul, em 1991, e a abertura e a estabilidade econômicas, iniciadas nos anos 1990, foram alguns dos principais fatores que contribuíram para a emergência da diplomacia federativa no Brasil.

Desde 1997, o Itamaraty decidiu abrir escritórios regionais para trabalhar com os Estados mais de perto e de forma mais coordenada. Hoje há representação do MRE em oito Estados - Amazonas, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo. Nos últimos 30 anos, a começar pela iniciativa do governador Leonel Brizola no Rio em 1985, começaram a ser criadas Secretarias de Relações Internacionais no chamado nível subnacional, isto é dos Estados. Hoje todos os Estados da Federação, com exceção do Maranhão, mantêm um setor do governo voltado para os contatos externos. Alguns Estados estabeleceram escritórios no exterior, como a Bahia e o Pará. Além destes, o Distrito Federal e o Rio Grande do Sul têm planos para abrir delegações no exterior neste ano.

Visitantes estrangeiros buscam contatos com os Estados depois de manterem entendimentos com Brasília. Compromissos internacionais, especialmente em questões relacionadas com comércio exterior e meio ambiente, muitas vezes encontram problemas de execução em vista de normas estaduais. Os impostos estaduais, como o ICMS, têm sido obstáculos à abertura de mercados para produtos estrangeiros, muitas vezes influindo em sentido contrário aos esforços do governo federal.

A inexistência de um marco jurídico de cooperação internacional descentralizada, contudo, tende a dificultar a coordenação das ações internacionais dos Estados com o governo central. Nesse contexto, o Estado de São Paulo inovou ao estabelecer, em abril de 2012, um plano de atuação internacional, denominado São Paulo no Mundo: Plano de Relações Internacionais 2011-2014.

Esse plano estabelece três objetivos gerais, que delineiam os eixos orientadores das relações internacionais do governo estadual, 16 prioridades setoriais e 54 metas específicas quantificáveis, definidas por todas as secretarias estaduais. Os três objetivos gerais são: elevar o nível de participação do Estado de São Paulo no contexto da intensificação do papel regional e global do Brasil; contribuir para a governança democrática e o desenvolvimento de parcerias entre os povos; e promover o desenvolvimento sustentável do Estado de São Paulo, harmonizando os seus pilares econômico, social e ambiental e garantindo o bem-estar das futuras gerações.

Discutido desde o início com o Itamaraty, o plano paulista é o primeiro dessa natureza no Brasil - e um dos primeiros em nível global - e se justifica pela importância do mais importante Estado da Federação no cenário internacional. Com um produto interno bruto (PIB) de US$ 798 bilhões, o Estado é a 18.ª maior economia do mundo e a segunda maior da América do Sul, depois do Brasil. Se comparado com outras regiões, São Paulo é a 7.ª mais rica, atrás de Estados nos EUA (Califórnia, Texas, New York), na China (Guangdong e Jiangsu) e no Japão (Tóquio). Das 20 maiores empresas do mundo, 14 têm escritórios de representação em São Paulo. Muitos Estados norte-americanos e regiões europeias também estão representados na capital paulista.

Com a presença do ministro Antonio Patriota, que registrou a cooperação e a coordenação do Estado de São Paulo com o governo federal na área internacional, o governador Geraldo Alckmin pôs em vigência o plano. Dando seguimento a medidas concretas para implementar da melhor maneira possível o Plano de Relações Internacionais, o governo de São Paulo e a Fiesp assinaram recentemente convênio para melhor coordenarem as ações de promoção comercial, de missões comerciais ao exterior e de recepção de autoridades que visitem nosso Estado.

A diplomacia federativa responde aos desafios da globalização e da conveniência de descentralização do poder público. São Paulo e o governo federal deram os primeiros passos concretos nessa direção.

Trancas & portas - DENISE ROTHENBURG


CORREIO BRAZILIENSE - 27/11

É impressionante o acúmulo de casos de corrupção que a Polícia Federal desvenda. Nem bem desbaratou o caso envolvendo a AGU e a chefe do escritório da Presidência da República em São Paulo, Rosemary Noronha, lá vem personagens ligados à Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Uma cachoeira sem fim de confusões. Por mais travas que se tente colocar nas portas da corrupção, os malfeitos parecem encontrar portinholas para se instalar. E colocam sob suspeita até mesmo projetos que passaram pelo crivo do Planalto antes de desaguarem no Congresso.

No caso da AGU, por exemplo, em 4 de setembro deste ano, o Correio Braziliense estampava em suas páginas de economia o projeto de lei complementar que o governo enviara ao Congresso para alterar a Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União (AGU). A proposta, se aprovada, permitirá a contratação de pessoas de fora da carreira para ocupar cargos hoje restritos a concursados. Conforme consta no site da Câmara dos Deputados, o documento já foi distribuído para análise das comissões do Trabalho e de Constituição, Justiça e Cidadania. O relator escolhido na Comissão do Trabalho foi Alex Canziani (PTB-PR). Foi designado em 20 de novembro para a função.

A Operação Porto Seguro aumentará a polêmica em torno da proposta. Na época em que o texto foi enviado ao Congresso, o presidente da Associação Nacional dos Advogados da União (Anauni), Marcos Luiz Silva, teceu críticas. A Anauni soltou, inclusive, uma nota, em setembro, com várias considerações sobre o Projeto de Lei Complementar 205/2012. O texto trouxe diversas ressalvas ao projeto, especialmente, no que diz respeito à possibilidade de ocupação dos cargos sem prévia aprovação em concurso público.

A Anauni chamou a atenção para o fato de o projeto não permitir pareceres contrários ao entendimento dos chefes. “O que se pretende é uma verdadeira mordaça, totalmente diferente do atual sistema de uniformização de entendimentos jurídicos. Caso o projeto seja aprovado, o parecer contrário ao entendimento da chefia imediata constituiria falta funcional”, diz a nota, que defende a ocupação de cargos apenas por concurso público. A nota, nas entrelinhas, deixa transparecer um grande receio de “aparelhamento” da AGU, uma instituição respeitadíssima, justamente, por ter um quadro de servidores concursados do mais alto gabarito.

Para os congressistas, talvez seja interessante avaliar a proposta nesse momento em que a Polícia Federal coloca uma lupa sobre o tráfico de influência. Terão a oportunidade de tratar do tema conhecendo mais um viés desse enredo.

O que vale para esse projeto deve valer para todos os setores da administração pública. No caso de outras instâncias, como as agências reguladoras e instituições envolvidas nos últimos escândalos, técnicos de dentro e de fora do Congresso chamam a atenção para a necessidade de o governo adotar decisões colegiadas como forma de colocar mais uma trava na porta da corrupção.

Talvez seja hora de Dilma se debruçar sobre uma reforma geral nas agências e afins. No momento, ela pediu apenas um pente-fino nas ações dos personagens envolvidos na Operação Porto Seguro. Mas não adianta apenas verificar onde houve alguma irregularidade. É preciso evitar que os malfeitos se repitam. Afinal, a imagem de “faxineira” que não compactua com a corrupção, Dilma já formou. Falta, como dissemos aqui ontem, a de boa gestora. Ainda está em tempo.

Enquanto isso, no Rio de Janeiro…

A manifestação em favor dos royalties do petróleo para os estados produtores vem com meses, talvez anos, de atraso. Quem acompanhou o evento dos gabinetes do Senado, em Brasília, avaliou que esse barulho todo deveria ter sido feito antes da votação do projeto na Câmara e no Senado. No decorrer do processo, os movimentos foram mais contidos.

Mas nem tudo está perdido se a presidente Dilma Rousseff se sensibilizar e mantiver intactos os royalties das áreas de exploração já contratadas. Ela trataria do assunto ontem, mas, diante da Operação Porto Seguro — com reflexos sobre agências reguladoras, AGU e o escritório da Presidência da República em São Paulo —, o dia foi curto. E ainda tem a energia elétrica fervendo no Senado. Realmente, vida de presidente não é fácil.

… e no salão nobre da Câmara…

O espaço serviu de cenário para o velório do ex-deputado Sérgio Miranda (PDT-MG), um dos políticos mais íntegros que conheci. O enterro será hoje de manhã, no Campo da Esperança, em Brasília.

A pátria, o pacto e os patos - PAULO RABELLO DE CASTRO

FOLHA DE SP - 27/11


A absurda escalada tributária que ocorreu no Brasil desde o Plano Real não foi suficiente para políticos e especialistas pararem de propor despesas


Frequentemente me questiono que pátria é a nossa.

Ela muito comemora a democracia, mas os seus representantes, tão logo diplomados, sairão lhe tomando rendas duramente ganhas por uma carga tributária de nível alemão que retorna serviços da mais duvidosa competência.

Em matéria de impostos, elo fundamental da relação entre o cidadão e a pátria, nunca estivemos tão longe de um nível adequado de representação. Aos fatos concretos.

Mal encerrada a eleição, o Senado, por seu presidente, José Sarney, trouxe a público o resultado da Comissão do Pacto Federativo, grupo de especialistas em matéria fiscal, tributária e financeira por ele formado. A coordenação era de um brasileiro de vulto, Nelson Jobim.

A comissão tinha uma missão: estudar e propor a atualização do modo de relacionamento de União, Estados e municípios. Hoje, ele é muito esgarçado por críticas e até condenações recíprocas, especialmente pela reclamação de que impostos e contribuições não chegam até o nível local, onde ocorrem as efetivas demandas dos cidadãos.

A comissão, ao que tudo indica, trabalhou duro e propôs vários anteprojetos, inclusive emendas à Constituição. Até aí, tudo bem. Parabéns a Jobim e ao seu time.

Apenas um detalhe parece ter escapado: os patos do pacto. Os patos somos nós, que pagamos a conta.

Entre impostos diretos e indiretos, trabalhadores pagam em impostos mais de metade do salário. Os empresários absorvem ou tentam repassar a preços finais uma carga de tributos diretos e indiretos que abocanha entre 30 e 35% do valor das mercadorias ou serviços. Somos campeões mundiais de escracho tributário.

A comissão não disse quem banca subsídios e novos fundos de compensação a Estados e municípios a serem criados para manter "o pacto de estabilidade e tranquilidade política desta República".

A omissão é a própria cara da nossa democracia de fanfarra. Estamos diante da maior escalada de impostos já realizada num regime dito democrático. Em pouco mais de uma década e meia, a carga tributária aumentou mais de dez pontos percentuais do PIB. Engordamos as três esferas de governo com um aumento que hoje representa R$ 500 bilhões ao ano a mais do que já se tomava da população na época do Plano Real, em 1994. E para quê?

Alguns membros da comissão do pacto têm explicado que esta avalanche de dinheiro assacado da população é para a própria, já que tudo que se arrecada é para cobrir o que os governos gastam. Pois bem: que tal debater com mais abertura e franqueza o que se despende?

Hoje, dependemos de jornalistas corajosos para fazer denúncias. Um dispositivo da Lei de Responsabilidade Fiscal (artigo 67) comanda o funcionamento de um Conselho de Gestão Fiscal, exatamente para prevenir o desmando nos gastos públicos e o exagero truculento da carga tributária. Esse simples comando jamais foi objeto de regulamentação pelo Congresso. Tampouco se lembrou a comissão de cobrar essa providência simples ao nosso presidente do Senado.

Enquanto não houver posicionamento lógico por parte dos especialistas da nossa pátria, respeitando e fazendo respeitar quem paga a conta do "pacto", nosso direito moral de comemorar a vitória do voto nas urnas melhor ficaria se adiado e suspenso, até que os patos do pacto retomem seu devido lugar na res publica.

Privatize já! - RODRIGO CONSTANTINO

O GLOBO - 27/11

O ponto está claro: o governo costuma ser um péssimo empresário, e isso se deve a fatores estruturais



Milton Friedman alertava que se o governo fosse colocado para administrar o deserto do Saara, em cinco anos faltaria areia no local. O que aconteceria se o governo fosse o empresário em um país com abundância de fontes baratas de energia?

Sabemos a resposta: apagões frequentes, necessidade de importar combustível e energia cara para os consumidores. É importante notar que este resultado não depende tanto assim de qual partido está no poder, ainda que a capacidade de o PT causar estragos maiores não deva jamais ser ignorada. Mas o principal ponto é que o mecanismo de incentivos na gestão estatal é totalmente inadequado.

Quando o empresário depende do lucro para sobreviver no livre mercado, a busca por excelência passa a ser questão de vida ou morte para ele. Manter a elevada produtividade de sua empresa e atender bem à demanda de seus clientes é crucial para ele prosperar. Para tanto, ele terá de estimular seus bons funcionários, e punir os incompetentes.

Já nas estatais, os “donos” somos nós, sem poder algum de influência em sua gestão, que fica sob o controle de políticos e burocratas cujos interesses diferem dos nossos. A troca de favores políticos para a “governabilidade”, o uso da empresa como cabide de empregos para apaniguados ou instrumento de política nacionalista, o descaso com o “dinheiro da viúva”, estas são as características comuns nas estatais.

Não é coincidência a enorme quantidade de escândalos de corrupção que é divulgada na imprensa envolvendo estatais, tampouco o fato de os setores dominados pelo Estado serem os mais precários. Portos e aeroportos, os Correios, os transportes públicos, as escolas e os hospitais administrados pelo governo, o Detran, os presídios, enfim, basta o Estado intervir muito para estragar qualquer setor da economia.

Quando um partido com mentalidade mais estatizante assume o governo, a situação tende a piorar bastante. A arrogância de que o governo pode fazer melhor do que a iniciativa privada acaba levando a um nefasto modelo “desenvolvimentista”. É o caso do governo atual. A presidente Dilma acredita que é realmente capaz de administrar os importantes setores de nossa economia.

Isso explica a quantidade assustadora de intervenções arbitrárias que tanto mal têm causado ao país. A Petrobras virou símbolo de incompetência, com crescimento pífio da produção e enorme destruição de valor para seus milhões de acionistas. Seu valor de mercado já caiu pela metade desde 2010, mesmo com o preço do petróleo estável no mundo. Enquanto isso, o valor da Ambev quase dobrou no mesmo período e chegou a ultrapassar o da estatal.

Os bancos públicos se transformaram em instrumentos de populismo, fornecendo crédito barato a uma taxa de crescimento irresponsável, que vai acabar produzindo uma bolha imobiliária no Brasil, tal como vimos nos EUA, na Irlanda e na Espanha. A Caixa expandiu sua carteira em 45% nos últimos 12 meses!

O BNDES virou um megaesquema de transferência de recursos dos pagadores de impostos para grandes empresas próximas ao governo. Grupos como JBS, Marfrig e EBX, do bilionário Eike Batista, receberam bilhões em empréstimos subsidiados.

A Eletrobras já perdeu cerca de 70% de seu valor de mercado apenas este ano, pois o governo resolveu usar a estatal como centro de custo para sua meta de reduzir as tarifas de eletricidade na marra, em vez de cortar os impostos (que correspondem a 45% da tarifa final). Como o cobertor é curto, vai faltar recurso para novos investimentos, prejudicando o futuro do setor.

Existem outros exemplos, mas o ponto está claro: o governo costuma ser um péssimo empresário, e isso se deve a fatores estruturais. Quando um partido convencido de sua suposta clarividência chega ao poder, o estrago por meio das estatais tende a ser ainda pior. Estamos vendo exatamente isso na gestão Dilma. Suas medidas estancaram o crescimento econômico, mas a inflação continua elevada.

O Brasil, para usar um termo dos psicólogos, é hoje um caso borderline. O governo sofre do transtorno de personalidade limítrofe. Ele ainda não sabe se quer fazer parte do grupo dos vizinhos mais decentes, como Chile, Colômbia e Peru, ou do “eixo do mal”, com a Venezuela, Argentina, Bolívia e Equador. Pelos sinais emitidos até aqui, ele parece gostar é do fracasso socialista mesmo.

Aproveito para convidar todos ao lançamento do meu novo livro “Privatize Já!”, pela editora Leya, amanhã na Livraria Travessa do Shopping Leblon, às 19h. Haverá um debate com Elena Landau antes dos autógrafos.

A volta ao passado (*) - ARNALDO JABOR


O Estado de S.Paulo - 27/11


Eu devia ter uns 16 anos quando vi as pessoas pela primeira vez. Estava na janela de um ônibus parado no engarrafamento e olhava as pessoas passando na calçada: homens, mulheres, crianças, mendigos, gordos, magros, feios e bonitos. De repente, eu os vi. Lembro-me da emoção e do alívio que senti. Alívio, sim. Eu vivia mergulhado em mim mesmo, amarrado à angústia e à delicia de me sentir único, especial. Até então, as pessoas eram parte das ruas, dos ônibus, dos botequins, elas eram parte de um mundo onde eu não vivia. Eu queria entrar na vida, mas nunca passava pela porta estreita que levava a meus semelhantes. Mas, dessa vez, da janela do ônibus, não. Eu não estava mais ali e as pessoas se moviam sozinhas, 'livres' de mim. Eram nítidas, não mais nebulosas. Senti uma espécie de amor pelas caras diferentes da minha, amor por seus defeitos: um nariz grande, uma roupa suja, um vestido pobre para a pobre moça, uma velhinha pedindo esmola, todos na solidão de suas vidas. Senti alívio porque eu nunca vira o mundo sem me incluir nele, desfocando os 'outros'com a sombra de meu nariz, com meu 'ego' lhes fazendo sombra. E pensei: "Como me veem eles? Afinal, quem sou eu?"Precisava descobrir. Eu vivera uma ilusão de mim mesmo e agora queria me encher de experiências, pecados, o que fosse. Entrei na sofreguidão de pertencer a um mundo simples, até mesmo o 'baixo mundo', onde estava a mística da perversão, a 'pureza' das putarias. No perigo e na morte estaria uma verdade maior, sempre ocultada pelos meus pais e professores. Comecei a viver nos becos e buracos de Copacabana.

Um dia, fui ao maior dos perigos: o Mangue; fui sozinho, pálido de minha coragem. Minha chegada à 'zona do baixo meretrício' - como chamavam - foi um soco na cara. No Mangue havia uns tapumes que a prefeitura botava na frente das esquinas, para ocultar a prostituição pobre. O Mangue era um país ao avesso. Eram quarteirões de casas toscas, porta, janela e varandinha, onde se exibiam as mercadorias: as mulheres, diante das quais os homens se postavam como em filas de açougue, em filas de emprego.

Ao primeiro olho, tudo parecia um grande comício. Havia ali mais de mil pessoas ou seria meu olhar espantado?

Muitos anos depois (já contei isso aqui), botei essa viagem ao Mangue em meu filme A Suprema Felicidade, de 2010, que talvez seja a melhor cena que filmei em toda minha vida.

O que eu vi primeiro foram as línguas e os dedos. As mulheres ficavam repetindo como bonecas mecânicas o mesmo gesto em que as línguas se batiam entre os lábios, como cobras, e os dedos indicador e polegar unidos em "o", balançavam como num gesto trêmulo de 'Parkinson', como se todas estivessem em uma dança sincronizada. Esses gestos eram um 'marketing' de suas habilidades: "pela boca e por trás", significava. Eram mulheres apinhadas nas escadinhas e portais. Havia negras, brancas, louras pintadas, mocinhas fracas e, mais espantoso, quase todas seminuas, só de calcinha e sutiã em posições sem elegância sedutora: pernas abertas, seios para fora, cabelos espichados, bocas sem dentes, batons carmesins borrados, gritos e gargalhadas num descaramento proposital, pois ali (todos sabiam) era a cloaca barata, a vala comum, ali só estava a miséria do sexo, o proletariado do desejo.

Aquele mangue entrava em mim como uma sujeira salvadora contra a pureza a que me obrigavam.

Todos que enxameavam nas ruelas tinham uma fome de escracho para esmagar qualquer ilusão.

Tomei coragem e entrei numa casinha onde os quartos eram divididos em pequenos compartimentos como baias de cavalo, onde uma caminha suja de solteiro ficava debaixo de um São Jorge com luzinha. Havia baldes, cheiro de urina, ruídos de cópula, velas acesas e os eternos veados da faxina, pobres e feios, cuidando dos sanduíches e panos de chão.

Diante das casinhas sujas, os homens se postavam, baços, pobres, pardos, avaliando com olho morto as réstias de beleza ou juventude que houvesse por ali, enquanto as mulheres em rebanho diziam frases mecânicas tipo "vem cá, boniton!", "bouché!", "bouché!" (ainda havia velhas polacas pintadas), todas fazendo os gestos de dedo e língua como num festival de mudos. Se os puteiros de classe média fingiam de casa de família, aquilo semelhava um campo de concentração. Havia um clima de guerra, de gueto de judeus, estrelas amarelas, febre no ar. Havia ali um grande escracho com a liberdade; aquela suja liberdade era uma coisa a ser enxovalhada, morta a pedradas, esfregada na cara de fregueses e putas. As mulheres eram prisioneiras livres, se vingando nas poses safadas, se vingando de si mesmas.

Foi então que aconteceu.

De uma casa, em meio a uma súbita gritaria de pânico, um marinheiro mulato surgiu correndo desabalado e sumiu na esquina do Mangue em um segundo. E, na mesma porta, em câmera lenta, uma mulher apareceu, completamente nua, muito branca, usando apenas uma fita vermelha descendo-lhe entre os seios, obliquamente até a cintura, uma fita perfeita, rubra, como uma faixa de miss. Sua mão erguida com delicadeza apontava para cima e de seus dedos pingavam estrelas vermelhas. A mulher, branca de cal, de gesso, não era uma miss com faixa; a fita vermelha perfeita era a navalhada que o amante mulato desferira, antes de sumir na rua e, de seus dedos erguidos, o sangue caía como as flores rubras.

Anos depois, eu vi num museu aquela mulher do famoso quadro de Delacroix, simbolizando a liberdade francesa, de seios nus - a 'república' à frente dos cidadãos. E me lembrei sempre da mulher muito branca com a fita de sangue no busto. Peguei o ônibus e voltei para casa, mas, naquele dia, eu descobri o Brasil.

(*) Diante da paralisia política do País, retomo minha viagem para dentro...

O pensar como doença - VLADIMIR SAFATLE

FOLHA DE SP - 27/11


"O estado de reflexão é contra a natureza. O homem que medita é um animal depravado." Tais afirmações de Rousseau parecem servir de guia involuntário para setores hegemônicos da clínica do sofrimento psíquico.

Há anos, a filósofa francesa Joëlle Proust foi capaz de afirmar que o sofrimento psíquico não teria relações com a forma com que o paciente reflete sobre seus sintomas a partir de suas próprias convicções e motivações.

Com isso, ela apenas dava forma a um princípio que parece guiar dimensões maiores da psiquiatria contemporânea. Ou seja, tudo se passa como se não houvesse relações entre a maneira com que sofremos e a maneira com que pensa-mos e procuramos justificar nossas vidas a partir de valores e normas.

Essa é uma boa maneira de evitar o trabalho mais doloroso exigido pelo tratamento de modalidades de sofrimento psíquico, a saber, a crítica dos valores, normas e formas de pensar que constituem, tacitamente, nosso horizonte de uma vida bem-sucedida.

A fim de evitar tal trabalho crítico, que certamente é o que há de mais difícil, parece que nos tranquilizamos com ideias como as da professora Proust. Elas acabam por servir para fortalecer a crença de que só haveria cura lá onde abandonássemos o esforço de pensar sobre nós mesmos. No fundo, talvez porque ainda estejamos presos a resquícios deste antigo paralelismo que associava, por exemplo, a melancolia ao ato de "pensar demais".

Décadas atrás, François Truffaut fez um belo filme sobre uma sociedade no fu-turo onde a polícia queimava livros porque eles trariam infelicidade. Melhor seria garantir a felicidade social por meio de uma política de uso exaustivo de medicamentos.

Tal filme foi a metáfora perfeita para um fenômeno que o sociólogo Alain Ehrenberg chamou, décadas depois, de "uso cosmético" de antidepressivos e afins.

Por "uso cosmético" entendamos o uso de larga continuidade que acaba por visar conservar performan-ces sociais bem avaliadas, evitando ao máximo a experiência com transtornos de humor. Ele é o resultado inevitável do modelo de medicação que impera atualmente. Trata-se de uma distorção daquilo que deve-ria ser a regra, a saber, o uso focal ligado exclusivamente a situações e momentos de crise aguda.

Tal uso focal procura apenas garantir as condições de possibilidade para que o verdadeiro tratamento ocorra. Um tratamento que poderá mostrar como, se é a reflexão que nos adoece, é ela também que nos cura.

Pânico no Planalto - ILIMAR FRANCO


O GLOBO - 27/11

O clima no Planalto é de forte apreensão com os desdobramentos da Operação Porto Seguro. As atividades da ex-chefe de gabinete da Presidência em São Paulo, Rosemary Noronha, não são conhecidas. Além disso, ela é considerada uma “despreparada” e não se sabe o que fará se for muito pressionada. A tendência no governo ontem era impedir sua convocação para depor no Congresso.

Rose, a desafeta de dona Marisa
Os funcionários do Planalto descrevem Rosemary Noronha como “arrogante” e que usava bordão de madame em reuniões com servidores para preparar idas da presidente Dilma a São Paulo: “Aqui, tudo é chique”. Para tentar agradar à equipe da presidente Dilma, ela organizava ida às compras em shoppings e na Rua 25 de Março. Na posse da atual presidente, ela provocou um incidente ao tentar separar os ministros nomeados dos que estavam de partida. A ex-primeira-dama Marisa Letícia não a tolerava. Por isso, quando a lista da comitiva das viagens do ex-presidente Lula passou para as suas mãos, Rose nunca mais subiu a bordo do AeroLula.

“Não se diga em qualquer instância que o país é pego de surpresa pela crise nos municípios. Toda vez que vão desonerando, eles têm menos recursos” Paulo Paim Senador (PT-RS)

Bola nas costas
O ministro Luís Inácio Adams (AGU) sai avariado da operação Porto Seguro. O adjunto José Weber de Hollanda Alves era de sua estrita confiança. O que mais perturba o Planalto é que Luís Adams tinha acesso irrestrito à presidente Dilma.

O novo líder
Integrantes da bancada do PT na Câmara querem antecipar a substituição do líder Jilmar Tatto (SP). Desde que foi nomeado secretário pelo prefeito eleito de São Paulo, Fernando Haddad, Tatto se dedica mais à formação de sua equipe que a articulação da bancada. Por acordo, seu sucessor será o deputado José Guimarães (PT-CE), na foto.

O mensageiro
O ministro Gilberto Carvalho (Secretaria-Geral) recebeu a tarefa de informar o ex-presidente Lula sobre a decisão da presidente Dilma de demitir Rosemary do gabinete de São Paulo. Carvalho não simpatizava com a ex-poderosa assessora.

Tensão no PMDB
Considerado o candidato com maior força relativa para assumir a liderança do PMDB no ano que vem, a cúpula do partido está preocupada com a eventual eleição do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Ela se preocupa com a escolha de um líder sem trânsito com o Planalto. A ala que tem contradições com o PT exalta sua coragem para enfrentar o Palácio.

Votação de MP preocupa governo
Os líderes do governo na Câmara alertaram o Planalto que temem pela derrota da MP do Setor Elétrico, que reduz a conta de luz dos consumidores. Argumentam que o lobby das concessionárias de energia é pesado.

Anticlímax
A Operação Porto Seguro estragou a festa. Nestes dias, o governo esperava bater o bumbo com a expansão do Brasil sem Miséria, a entrega de um milhão de casas do Minha Casa, Minha Vida e o anúncio do programa de concessão dos portos.

COMENTÁRIO de um assessor da presidente Dilma: “A oposição é contra o pai dos pobres (Lula) e a guardiã da moral e dos bons costumes (Dilma)”.

Estranha, a vida - SONIA RACY


O ESTADÃO - 27/11

Ronaldo Nogueira, do PTB gaúcho, conseguiu as assinaturas necessárias para criação de CPI que investigará a atuação das operadoras de telefonia móvel Claro, TIM, Vivo e Oi.

Teoricamente, seu propósito é antecipar, de 2015 para 2013, a redução pela metade da receita obtida com a chamada tarifa de interconexão.

Linha 2014
Vistos almoçando no Gero do Rio, ontem, dois cariocas da gema: FHC e Aécio.

À paisana
Enquanto Haddad estava no GP, domingo, sua mulher, Ana Estela, almoçava no Biondi do Itaim. Com a mãe e a filha, Ana Carolina.

Sem seguranças, não foram abordadas por ninguém.

A confirmar
E Antonio Maciel, da Suzano, deve assumir posto no Grupo Caoa.

Levou carrinho
Corre que a Arena Castelão, em Fortaleza, só será o primeiro estádio inaugurado para a Copa, dia 16, por ter ‘avançado’ na grama reservada pelo Mineirão, em BH.

Convenceu a empresa fornecedora de ambos os gramados a inverter prioridades.

A jato
Circula por SP Audi R8 com placa da... Comunidade Europeia. Ao ver o automóvel-foguete, a PF estranhou e o apreendeu, ontem. A montadora explicou: ele entrou no País em regime de admissão temporária para demonstração.

As sobras
Gerald Thomas não vem mais ao lançamento de seu livro sobre desenhos, editado pela Cobogó. Vai se ocupar do apartamento que tem em NY, devastado pelo furacão Sandy, onde estão os originais.

Sem ficção
A Cine, de Raul Doria, apresenta nova área ao mercado ainda este ano: a Cine X, centro de pós-produção e efeitos especiais.

Monstrengo
O Parque do Povo, no Itaim, ganhou um “minhocão” para chamar de seu. E pensar que a Prefeitura tanto insistiu para que o elevado fosse erguido em contrapartida para liberação do Shopping JK.

Em tempo: o viaduto para bicicletas aguarda autorização legal para ser construído no mesmo percurso.

Direto do paddock
O cenário era de decisão, mas, pouco antes de a corrida começar, todos os olhares se voltaram para uma figura, no mínimo, excêntrica que passeava sem credencial, anteontem, em Interlagos.

Ferrarista de caderneta,o senegalês Mr. Moko (foto ao lado), da Chrome Hearts Jewelry, é figura carimbada do circo da F-1. Treze entre dez mulheres e namoradas de pilotos têm ou desejam joias assinadas por ele. À coluna, limitou-se a um OK com o polegar e à frase “Elas me querem!”, seguida por amplo sorriso de marfim.

Já pelo lounge do autódromo, Kassab distribuía apertos de mão. Como está a transição, prefeito? “Muito tranquila”. Sobre a aproximação com o PT logo após a vitória de Haddad, foi firme: “Qual aproximação?” O prefeito eleito chegou às 13h, falou longamente com Emerson Fittipaldi, mas não chegou a subir ao lounge.

Do outro lado do paddock, Raí arriscava Massa no pódio, “mas terá de entregar a posição para o Alonso” – acer-
tou! E comentava a presença de Ganso no meio-campo do São Paulo: “Quando ele entra no jogo, muda tudo”.

Gilmar Rinaldi também estava em clima de final de campeonato. E achou temerária a decisão da CBF de tirar Mano Menezes do cargo a tão pouco tempo para a Copa. “Tem de parar de frescura. Quem entrar precisa aproveitar o trabalho j á feito. É hora de uma força-tarefa para levar o Brasil ao título em 2014”, vaticinou o ex-goleiro e hoje empresário de atletas. E o campeonato de F-1, quem leva? “Vettel, sem dúvida” – acertou!

Marcelo Tas, após beijar as mãos de Mariana Weickert, arriscou: “A Fórmula 1 é emocionante, mas não é páreo para a política brasileira, que vive capotando nas curvas”.

Enquanto a coluna circulava, uma informação de última hora: Flávia Kurtz, filha de Pelé, estava no autódromo. Missão? Entregar a Michael Schumacher, que se aposentou (de novo) das pistas após o GP Brasil, uma chuteira autografado pelo rei do futebol.

ATÉ DEBAIXO D'ÁGUA - MÔNICA BERGAMO


FOLHA DE SP - 27/11

A atriz Christiane Tricerri terminou temporada da peça "Pagus" em SP e fez um curso de mergulho. Mas não foi para descansar: ela contracena com peixes em cenas embaixo d'água para o filme "Sangue Azul", de Lírio Ferreira, filmado na ilha de Fernando de Noronha.

CURVA DE QUEDA
O Inca (Instituto Nacional do Câncer) lança hoje estudo que aponta o declínio nas taxas de incidência e de mortalidade de alguns tipos de câncer no país. Um dos destaques é o tumor do colo do útero, que apresenta redução nas principais capitais do país. Curitiba, no Paraná, teve as maiores quedas: 9,4% para casos novos e 7,9% para óbitos.

PARA BAIXO
São Paulo também apresentou declínio importante, de 7,4% para o número de casos e de 4,9% para óbitos.

PARA CIMA
A notícia é saudada pelo instituto, já que o câncer de colo do útero é "altamente prevenível", segundo Luiz Antonio Santini, diretor-geral do Inca. Mas nem tudo são boas notícias: em João Pessoa, na Paraíba, a mortalidade aumentou 21,3%.

MICKEY
Rosemary Noronha, a ex-chefe do escritório da Presidência demitida depois de indiciada pela Polícia Federal, apresentava a petistas no fim de semana explicações para os fatos evidenciados na Operação Porto Seguro. Os dólares apreendidos em sua casa seriam usados em viagem à Disney, em janeiro. Ela teria apresentado recibo aos policiais, sem sucesso.

VASO DE FLOR
Rose disse ainda que recebeu depósitos em sua conta porque ajudou a decorar o apartamento de um diretor da Anac também investigado na operação. O marido dela tem uma empreiteira que faz reformas em imóveis.

CONTA
A ligação de Rose com Lula começou numa agência bancária de São Bernardo do Campo, em SP.

Ela era secretária e ajudava a gerência a administrar contas do petista. Ficaram próximos e Lula a indicou para trabalhar no PT.

PARLAMENTO
Lula pode ser candidato ao Senado por SP em 2014. Essa hipótese é considerada mais plausível no PT do que a possibilidade de ele concorrer ao governo estadual, como quer seu marqueteiro João Santana -que revelou o desejo em entrevista publicada ontem na Folha. O PSDB também trabalha com essa possibilidade.

PARLAMENTO 2
Concorrendo ao Senado, ele poderia correr o Estado fazendo campanha para o candidato do PT ao governo. E, caso eleito, repetiria experiência de outros ex-presidentes, como José Sarney, Fernando Collor e Itamar Franco, que viraram senadores depois de ocuparem a Presidência da República.

PARLAMENTO 3
Mas mesmo essa hipótese é tida como remota já que Lula insistiria sempre que não quer mais concorrer a cargo algum, como diz o próprio João Santana.

MALU CALLAS
Malu Mader não poderá mais interpretar a cantora Maria Callas na peça "Callas", com estreia prevista para março, no Rio. Ela seria a protagonista do espetáculo que terá texto e direção de Clarice Niskier, mas teve que sair do projeto. Está escalada para a próxima novela das sete da Globo, de Maria Adelaide Amaral.

EU FALO PORTUGUÊS
No show que fez no sábado, na Garagem Gamboa, no Rio, o ator, escritor e diretor americano John Cameron Mitchell cantou duas músicas em português. Escolheu "Sangue Latino", dos Secos & Molhados, e "Sonho Meu", de Dona Ivone Lara.

O PATRÃO COMENTA
Do apresentador Silvio Santos, 81, em seu programa no SBT, anteontem, ao ver fotos do cantor e compositor Chico Buarque quando criança e recentes: "Nossa, ele tá um trapo. Tá acabado, tá muito estragado".

FÓRMULA A MIL
Viviane Senna, do Instituto Ayrton Senna, foi ao autódromo de Interlagos para assistir ao GP de Fórmula 1, anteontem. Também circulavam pelo evento o empresário Flávio Rocha, com o filho Flávio Klein Rocha, o ex-jogador Raí e a humorista Sabrina Sato. Depois da corrida, o hotel Tivoli sediou a festa de encerramento do circuito. Passaram por lá a apresentadora Bárbara Koboldt, os atores Ronny Kriwat e Daniel Rocha e a designer Monika Kosa.

CURTO-CIRCUITO

Gui Mohallem lança o livro "Welcome Home", hoje, às 19h, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional.

O chef Murakami recebe o português Paulo Morais para jantar do evento Sabores de Portugal, às 20h, no Kinoshita.

Francisco Florence lança hoje nova edição da obra "Direito Societário Brasileiro", a partir das 19h, no clube Transatlântico.

A "Harper's Bazaar" comemora um ano com festa no Cine Joia.

Naldo faz show hoje, às 23h, no Royal. 18 anos.

Dora Santoro autografa o livro "Minivestidos Botânicos" amanhã, às 17h, no Espaço Sodré Santoro.

Multa ambiental - XICO GRAZIANO


O Estado de S.Paulo - 27/11


Controvertida penalidade, aplicada pela Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) contra uma propriedade rural, azedou a relação entre a agricultura e o meio ambiente. Caso típico de agenda negativa: afasta a colaboração, aposta no conflito.

A autuação ambiental pune a Fazenda Morrinhos, situada em Botucatu (SP), em valor astronômico, próximo de R$ 3 milhões. O motivo do discricionário ato reside na queima de 217 hectares, que sapecou a pastagem de braquiária juntamente com a vegetação de Cerrado na área, em estágio inicial de recuperação. Onde reside, então, a controvérsia?

Na origem do fogaréu. Tudo indica que as chamas vieram da rodovia entre Botucatu e Itatinga, que atravessa a fazenda. Tais queimadas, acidentais ou criminosas, varrem aquela região a cada período de seca, ameaçando o gado e as enormes plantações de eucaliptos ali existentes. Somente no último mês de setembro a Polícia Ambiental de São Paulo registrou cerca de 300 focos de incêndio naquelas paradas. Os laudos policiais, invariavelmente, constatam que o fogo se origina nas margens do asfalto e adentra as propriedades rurais. Nenhum caso se relatou como oriundo dos agricultores. A Cetesb, porém, acredita no contrário. Multou a fazenda como se ela tivesse riscado o fósforo.

A Fazenda Morrinhos está sendo vítima de seu próprio zelo ambiental. Amparada no Código Florestal, mantendo área preservada bem acima da exigida legalmente, tenciona expandir seus cultivos. E sabendo do perigo dos constantes incêndios, utilizou-os como argumento para solicitar autorização visando a suprimir a vegetação rala daquela área mais vulnerável. Naquele trecho, o mato alto e a pastagem seca viram pólvora para transeuntes desavisados ou mal-intencionados.

Na sequência da solicitação pública, formou-se um imbróglio jamais esclarecido. Vistorias, exigências, laudos, pareceres, burocracia rolavam, enquanto o capim se avolumava. Remanescentes da vegetação do Cerrado cresceram. Vários incêndios voltaram a queimar pedaços da área, apagados pelas brigadas das empresas Eucatex e da Duratex. Em todas essas situações, a Fazenda Morrinhos lavrou boletins de ocorrência (B. Os.) na Delegacia de Polícia de Botucatu, enviando cópias, acompanhadas de fotografias, à Cetesb. Ignorados eram os alertas sobre a necessidade de rápida definição. Nada acontecia.

De repente, passados dois anos, chegou a notificação da salgada multa. O crime: incêndios passados, que a própria fazenda, anteriormente, comunicara. Nesse período, o técnico da Cetesb que acompanhava o assunto modificou o seu laudo de vistoria. No primeiro, datado de 2/12/2011, opinara que "... o fogo nesses trechos muito provavelmente se deu em função da proximidade da rodovia, da ferrovia e do acampamento dos sem-terra...". Depois, o mesmo profissional escreveu ter havido uma "forma deliberada de supressão da vegetação". Alterou, sem justificativas, seu próprio parecer.

Queimadas sempre motivaram litígios no campo, principalmente em áreas canavieiras. Fica difícil, quando pega fogo, saber qual a origem, se malandra, criminosa ou acidental. Vendetas trabalhistas, ou políticas, podem virar labaredas. Aos olhos do órgão ambiental, no entanto, a responsabilidade pela queimada recai sobre o proprietário rural. Ele que prove o contrário.

Com o protocolo do Etanol Verde, implementado pelo governo estadual a partir de 2008, um ajuste de conduta socioambiental se firmou no setor sucroalcooleiro, estabelecendo regras e incentivos para a redução das queimadas. Nesse contexto, definiram-se procedimentos mais sólidos, substituindo-se o embate pela cooperação. Ganharam todos.

A prática do fogo na agricultura, seja na colheita da cana, seja na limpeza de pastos, assusta com ares medievais a população. Entre os ecologistas, então, fogo na roça se assemelha ao bicho-papão. No conservacionismo mundial, porém, o manejo sustentável de áreas florestadas inclui o fogo controlado no controle de grandes queimações. É paradoxal, mas funciona, como uma vacina. Na Califórnia, por exemplo, o magnífico Parque de Yosemite queima regularmente a serapilheira (vegetação baixa, mais folhas e galhos caídos) em certos locais, evitando que a massa orgânica se avolume demais e, ficando seca, se torne uma ameaça de incêndio incontrolável. Curiosamente, os experimentos silvícolas mostraram que a queima regular favorece a germinação de sementes das magníficas sequoias.

Não se justifica, portanto, nem ecologicamente pensando, o temor exagerado contra o fogo. Embora seu rastro seja negro e feioso, em pouco tempo as cinzas fertilizam a vida, tal qual opera a natureza há milhões de anos. Muito mais grave, para a humanidade, é a contaminação química que os produtos industriais trazem para as águas do planeta.

Tais fundamentos agroecológicos justificavam o pleito da Fazenda Morrinhos, que, enquanto aguardava a autorização para cultivar a terra, queria permissão temporária para colocar gado na área. O pastejo dos bovinos abaixa o capim seco e reduz o potencial de fogo. Nada conseguiu. Resultado: vieram as queimadas e quem acabou culpado foi o agricultor. Ao protocolar recurso contra o absurdo ato, seu advogado descobriu que as fotos e cópias de B. Os. enviados ao governo nem anexados estavam ao processo. Sumiço kafkiano.

A Cetesb encontra-se entre os cinco principais órgãos ambientais do mundo. Sua gestão, modernizada no governo de José Serra juntamente com a descentralização e a unificação do licenciamento, não pode regredir aos velhos métodos. Perde eficiência, ganha desconfiança. Rigor na defesa do meio ambiente não se confunde com embromação.