segunda-feira, fevereiro 06, 2012

Homo connectus - ROBERTO POMPEU DE TOLEDO


REVISTA VEJA 


Uma charge em recente número da revista The New Yorker mostrava uma animada mulher, ao telefone, convidando os amigos para uma festinha em sua casa. “Vai ser daquelas reuniões com todo mundo olhando para seu iPhone”, ela diz. O leitor captou? A leitora achou graça? Cartunistas são mais rápidos do que antropólogos e mais diretos do que romancistas. Captam o fenômeno quase no momento mesmo em que vem à luz. O fenômeno em questão é o poder magnético dos iPhones, BlackBerries e similares. O ato de compra desses aparelhinhos é um contrato que vincula mais que casamento. As pessoas se obrigam a partilhar a vida com eles.

Na charge da New Yorker, a mulher estava convidando para uma festa em que, ela sabia – e até se entusiasmava com isso –, as pessoas ficariam olhando para seus iPhones ainda mais do que umas para as outras. É assim, desde a sensacional erupção dos tais aparelhinhos, e não só nas ocasiões sociais. O mesmo ocorre nas reuniões de trabalho. Chegam os participantes e cada um já vai depositando à mesa o respectivo smartphone (o nome do gênero a que pertencem as espécies). Dali para a frente, será um olho lá e outro cá, um na reunião e outro na telinha. Não dá para desgarrar dela. De repente pode chegar uma mensagem, aparecer uma notícia importante, surgir a necessidade de uma consulta no Google.

O que vale para reuniões sociais e de trabalho vale também para as sessões do Supremo Tribunal Federal. Quem assistiu pela TV Justiça, na semana passada, ao início do julgamento das competências do Conselho Nacional de Justiça, assistiu a uma cena exemplar. Falava o representante da Associação dos Magistrados Brasileiros. A TV Justiça, com seu apego pela câmera parada, modelo Jean-Luc Godard, enquadrava o orador e, atrás dele, quatro cadeiras da primeira fila da assistência. Três delas estavam ocupadas, a primeira por uma moça que, coitada, não conseguia se livrar de um ataque de espirros, e as outras duas por cavalheiros cujo tormento, igualmente compulsivo, era não conseguir se livrar dos smartphones. (Se o leitor ainda não se deu conta, o melhor, na TV Justiça ou na TV Câmara, é observar o que se passa ao fundo.)

Os dois cavalheiros apresentavam reações características do Homo connectus. Um olho lá, outro cá. De vez em quando, um deles guardava o telefoninho no bolso. Será que agora vai sossegar? Não; minutos depois, sacava-o de novo. E se chega uma mensagem? Uma notícia? Às vezes o smartphone exigia mais que um simples olhar. Requeria o afago dos dedos, naquele gesto que antes servia para espanar uma sujeirinha na roupa, e hoje é o modo de conversar com a telinha. Quando o representante da Associação dos Magistrados terminou o discurso, veio ocupar a cadeira que estava vazia. Agora era sua vez! Sacou o smartphone e, olho lá e olho cá, ele o põe no bolso, tira, olha, consulta de novo, enquanto o orador seguinte se apresentava.

O telefoninho esperto vem provocando decisivas alterações na ordem das coisas. O ser humano é instigado a desenvolver novas habilidades, como a de tocar na tela e conduzi-la ao fim desejado, sem que desande, furiosa e insubmissa. Implantam-se novos hábitos sociais. No tempo do celular puro e simples, aquele bicho que só telefonava, havia restrições a seu uso. Não em ambientes mais debochados, como a Câmara dos Deputados por exemplo, onde sempre foi e continua a ser usado sem peias. Em lugares de maior compostura, os celulares são evitados porque fazem barulho – disparam a tocar campainhas ou musiquinhas e só permitem comunicação via voz. Já os smartphones podem ser desativados na função telefone mas continuar, em respeitoso silêncio, na função telinha. Daí serem socialmente mais aceitáveis.

Há uma grande desvantagem, porém. O aparelhinho parte a pessoa ao meio. Metade dela está na festa, metade no smartphone. Concluída sua oração, metade do senhor da Associação dos Magistrados continuou na sessão do Supremo, metade evadiu-se para o aparelhinho. Pode ser que o aparelhinho lhe tenha trazido informações fundamentais para sua causa. Mas pode ser também que tenha perdido informações fundamentais, ao não acompanhar o orador seguinte. Qual o remédio, para a divisão da pessoa em duas, metade ela mesma, metade seu smartphone? Abrir mão do aparelhinho, depois de todas as facilidades que trouxe, está fora de questão. Se é para abrir mão de um dos dois lados, que seja o da pessoa. Por exemplo: inventando-se um smartphone capaz de sugá-la e reproduzi-la em seu bojo. As reuniões sociais, as de trabalho e as sessões do Supremo seriam feitas só de smartphones, sem a intermediação humana. Delírio? O leitor esquece do que a Apple é capaz.

Imóveis rurais e soberania nacional - MAÍLSON DA NÓBREGA

REVISTA VEJA

Empresas brasileiras de capital estrangeiro não podem comprar imóveis rurais além de certo limite, em torno de 5000 hectares. É o que diz parecer da Advocacia-Geral da União, aprovado por Lula em 2010. O texto se baseia em conceitos ultrapassados de soberania e em um nacionalismo démodé.

Parecer anterior do mesmo órgão (1994) interpretara que a Constituição de 1988 não permite discriminar entre empresa nacional e estrangeira na compra de terras. Deixaram de valer, pois, restrições específicas de lei de 1971. O Brasil atraiu investimentos estrangeiros para o agronegócio, que geraram empregos, renda e maior capacidade de exportação. Agora, imperam enormes incertezas no setor.

O novo parecer enfatiza mais a soberania nacional do que a norma constitucional. Por ele, a interpretação anterior "faz tábula rasa de princípios como soberania nacional econômica, independência nacional, interesse nacional, limitação dos investimentos de acordo com a definição soberana pelo estado brasileiro" e por aí vai. Invoca a "supervalorização de nossas terras rurais férteis, causada pelo desenvolvimento da tecnologia nacional apta a criar inovadoras formas de geração de energia a partir de fontes naturais renováveis, pela crise alimentar mundial e pela decorrente valorização de nossas commodities e, ainda, pela riqueza mineral de nosso subsolo".

Soberania nacional é conceito contemporâneo do surgimento do estado moderno. Nutriu-se de estudos de Jean Bodin (1530-1596), Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Para Celso Lafer, o conceito tradicional derivou da paz de Vestfália (1648) e se caracterizou pela "coexistência de uma multiplicidade de estados soberanos, cuja segurança individual resultaria ou de sua capacidade de autodefesa ou de alianças específicas com outros estados". Ele diz que o conceito evoluiu. Em vez de autossuficientes, os estados se tornaram interdependentes e cooperativos. De fato, países da União Europeia renunciaram a parte da soberania em favor da integração. Henry Kissinger fala em era pós-soberania, em que "normas internacionais de direitos humanos prevalecem sobre as prerrogativas tradicionais de governos soberanos".

Os latino-americanos exacerbam a visão de soberania. Na nossa Constituição, a "soberania nacional" é o primeiro princípio da ordem econômica (art. 170). O "pleno emprego" é apenas o oitavo. Nas diretrizes da lei do novo PPA consta a "garantia da soberania nacional", como se uma lei pudesse fazer isso. Além de influenciado por tais fantasias, o parecer inclui razões sem sentido para limitar a compra por estrangeiros: supervalorização dos imóveis rurais, o alto preço das commodities e uma insondável crise alimentar.

Em competente estudo, Alexandre Mendonça de Barros e André Pessoa mostraram que as restrições à aquisição de imóveis rurais constituem "um impeditivo relevante ao desenvolvimento da agricultura brasileira". O Brasil "reúne as melhores características para expansão da agricultura", mas tais restrições podem nos fazer perder oportunidades para países que são nossos concorrentes. Projetos de investimento foram paralisados. Empresas rurais prontas para abrir o capital, crescer e criar empregos e renda duvidam se podem ter acionistas estrangeiros. Vendas futuras de safras se inviabilizam pela impossibilidade de o produtor oferecer terras em garantia a estrangeiros. E por aí afora.

Aqui caberia citar novamente Kissinger, para quem "a essência da soberania é o direito de tomar decisões não sujeitas a outra autoridade". É a autonomia da legislação brasileira que importa. Se estrangeiros quiserem especular, a terra parada se tornará improdutiva e poderá ser desapropriada para reforma agrária. Se prejudicarem o abastecimento interno, a produção poderá ser requisitada ou sofrer tributação na exportação. A lei ambiental é a mais rigorosa do mundo. O risco é, pois, do estrangeiro que compra terras. A menos que se veja tal aquisição como parte de um plano para nos invadir.

O relevante é crescer de forma sustentada e ampliar o bem-estar dos brasileiros. Pouco importa a nacionalidade do agente desse processo.

Pagar para não trabalhar? - CLAUDIO DE MOURA CASTRO

REVISTA VEJA

Imaginemos uma situação surrealista: os pais dos alunos, vendo os filhos com um professor muito ruim, decidem pagar o seu salário, para que ele não vá à escola e seja substituído por outro. Esses pais seriam loucos ou irracionais? Pesquisas recentes mostram que, pelo menos nos Estados Unidos, seria um comportamento inteligente. Se os 5% piores professores fossem substituídos por outros, de qualidade média, em seu conjunto, a turma teria salários adicionais de 1,4 milhão de dólares, após sair da escola. O que os pais gastariam pagando esses professores ruins para ficar em casa (cerca de 50000 dólares por ano) é bem menos que esse adicional de renda. Não temos estimativas comparáveis para o Brasil, mas, como aqui os professores ganham menos e a educação aumenta o rendimento financeiro, mais do que nos países industrializados, é provável que fazer esse gasto fosse um negócio ainda melhor. Segundo outra pesquisa, ter um mau professor por três anos causa o mesmo dano que faltar a 40% das aulas.

Diretores habilidosos conseguem infernizar a vida dos seus péssimos professores, até que eles peçam para sair. Isso resolve o problema daquela escola, mas não do sistema, pois esse professor ruim irá para outro estabelecimento. A prefeitura de Nova York tira seus piores professores de sala de aula e coloca todos em um salão enorme, onde eles ficam conversando ou fazendo palavras cruzadas. Diante da impossibilidade legal de despedi-los, é melhor pagar, em vez de deixar que os alunos sejam suas vítimas. Em todo continente é quase impossível despedir professores, mesmo que fraquíssimos. A exceção é Cuba, onde isso acontece com regularidade. Será por isso que Cuba tem a melhor educação da América Latina? É muito mais do que isso, mas ver-se livre dos piores deve ajudar.

É absurdo os secretários de Educação não aproveitarem o período probatório (em geral de dois anos). Nesse prazo, dentro da lei, eles podem não confirmar a contratação dos muito fracos. Pelo que nos dizem os estudos, em um ano é possível identificar os que não têm o perfil requerido para o magistério. Peneirar os mestres é o que faz o sistema privado, sem causar traumas nem comoções. Por tentativa e erro, os bons vão subindo e recebendo carga horária maior, enquanto os ruins ficam no limbo. Se não melhoram, são dispensados. Não obstante, o privado atrai os melhores professores, pagando mais ou menos o mesmo que o público. Ou seja, o medo de perder o emprego não assusta os bons.

Está enganado quem leu nesses comentários um insulto aos professores. É o oposto, pois eles demonstram a sua importância crítica. Eliminar o joio facilita a missão indispensável de valorizar o trigo, ou seja, quem tenta fazer um trabalho sério. Os professores são maltratados pelo público, por causa de alguns poucos que são fracos, desmotivados ou negligentes, trazendo má reputação à classe. Sem eles, a imagem da profissão seria engrandecida. Surpreende que os sindicatos prefiram apoiar seus membros irresponsáveis ou incompetentes, em vez de permitir sua depuração, valorizando o magistério que eles pretendem representar. E também surpreende que os professores aceitem isso de seus sindicatos.

Mas como poderemos saber quem são os bons e os maus professores? Garantir que conheçam a matéria a ser ensinada é um primeiro passo. Há avanços nas pesquisas, usando métodos de observação em sala de aula, por juízes neutros. Há também estimativas de quanto cada professor contribui para o aprendizado dos seus alunos. Combinando indicadores, reduzimos a margem de erro. Contudo, ainda são medidas imperfeitas. No caso dos professores muito ruins, porém, erraremos bem pouco na sua identificação. Pesquisa recente mostra que os bons diretores reconhecem corretamente os professores bons e os fracos. Os alunos e os outros professores também. Dá para imaginar um técnico de futebol que fica com pena e não tira do time o jogador perna de pau? Será que na educação o futuro dos alunos não deveria vir em primeiro lugar? Por que os mestres devem continuar a ter a sua imagem manchada por culpa de uns poucos? Que direito tem o estado de permitir que a educação seja assassinada por alguns professores reconhecidamente inadequados?

Notícias do mundo pós-capitalista - GUILHERME FIUZA

REVISTA ÉPOCA

A esquerda está eufórica com a crise da Europa. Os mais animados acreditam que o capitalismo finalmente está ruindo. Foi o que se viu no Fórum Social Mundial, a tradicional festa do oprimido em Porto Alegre. Entre os discursos exaltando o triunfo da ruína, destacou-se o da presidente Dilma Rousseff: "A América Latina provou que um outro mundo é possível!", declamou, citando o tema do evento. Delírio geral. Só faltou um intérprete para explicar que outro mundo é esse.

Uma boa pista é examinar quem são os aliados latino-americanos do governo Dilma. Entre os principais estão a Venezuela de Hugo Chávez, a Argentina de Cristina Kirchner e Cuba de Raúl e Fidel Castro. De fato, são todos personagens do outro mundo. E como seria essa grande alternativa ao capitalismo do mundo que está acabando?

Se o modelo for o próprio Brasil, algumas dúvidas se colocam. O novo sistema se financiaria só com a ditadura chinesa? Substituiria o investimento direto do capital ocidental (que morrerá) por negócios com parceiros do outro mundo, como Irã e Síria? Quais seriam as garantias fundadoras dessa nova civilização, além do populismo, da bomba atômica e do trabalho escravo?

Quem prestou atenção aos mensageiros do Fórum Social não ficará sem respostas. O assessor para assuntos internacionais de Dilma, Marco Aurélio Garcia, foi didático. Explicou que os países da Zona do Euro só sairão da encruzilhada se adotarem "a solução argentina" – conhecida cientificamente como "calote". Nesse outro mundo possível, ninguém se aborrecerá demais com a velha mania capitalista de pagar dívidas.

Ao que tudo indica, vem aí uma espécie de Bolsa-Estado, o almoço grátis dos governantes populistas e perdulários. É o que se depreende de outra voz marcante do Fórum de Porto Alegre, o jornalista francês Bernard Cassen. Fundador do Le Monde Diplomatique, o melhor jornal de clichês antiburgueses, Cassen disse que os países europeus em crise podem gastar à vontade. "O problema é de receita", disse. Ele também poderia ter chamado isso de "solução brasileira" – o esfolamento do contribuinte para bancar a farra estatal.

Como a Europa não tem Dnit nem Dnocs, daria até sobra de caixa.

Mas não seria arriscado para países quase quebrados continuar gastando sem cortes? De jeito nenhum. Segundo Marco Aurélio Garcia, os números do perigo são forjados – uma nova forma de "golpe de Estado" aplicado "através das agências de classificação de risco". Só mesmo o Fórum Social Mundial para denunciar essa grande conspiração contra a bondade estatal sem limites.

Depois de saudada em Porto Alegre por essa gente do outro mundo, Dilma Rousseff, coerente, foi para Cuba. O único contratempo na doce sinfonia bolivariana é que, na ilha de Fidel, a bondade estatal prende e arrebenta (como diria o general Figueiredo). Mas, se a ditadura cubana não respeita os direitos humanos, e se não fica bem para uma líder de esquerda compactuar com isso, Dilma encontrou uma saída do outro mundo: denunciou os direitos humanos de direita.

"Não é possível fazer da política de direitos humanos só uma arma de combate político ideológico", afirmou a presidente em Cuba. Tradução para o português: falar de direitos humanos em Cuba é servir ao imperialismo ianque. Assim, Dilma inaugurou os direitos humanos relativos.

E saiu relativizando, sem perdão: por que falar da barbárie de Fidel, se existe a barbárie de Guantánamo (o cárcere americano na ilha)? Uma lógica impecável, que inclusive limpa a barra de sanguinários como Joseph Stálin. Por que falar do genocídio stalinista, se Hitler também barbarizou do outro lado?

Impossível não notar quem Dilma levou a Cuba para assessorá-la sobre direitos humanos: ele mesmo, o consultor Fernando Pimentel, ministro do Desenvolvimento nas horas vagas. Foi convocado porque a ministra de Direitos Humanos, Maria do Rosário, está no Detran aprendendo a não estacionar em local proibido. Mas o contribuinte não precisa se preocupar: Pimentel é caro, mas para Dilma a consultoria sai de graça.

E para quem ainda tem dúvidas se esse outro mundo é possível, basta olhar no YouTube a filha de Hugo Chávez exibindo um leque de dólares, moeda rara na Venezuela. Com a esquerda S.A. no poder, nada é impossível.

Como combater a corrupção - ALBERTO CARLOS ALMEIDA

REVISTA ÉPOCA

Em 2011, vários movimentos de combate à corrupção ganharam as ruas do Brasil. A maioria deles protagonizada por jovens universitários da nova geração que – praticamente para tudo – se comunica por meio de mensagens de texto de celulares e pelas redes sociais. Esses jovens cresceram num país com inflação controlada e com a percepção crescente de que uma política social eficaz vem combatendo com sucesso a pobreza e a desigualdade. Portanto, apareceram com mais força problemas antigos que, por isso mesmo, se tornaram problemas novos.

A corrupção é antiga no Brasil. A grande novidade é que ela ficou mais visível. Ficar mais visível é condição necessária para que seja combatida. É impossível atacar um inimigo invisível.

Ela ficou mais visível, em primeiro lugar, porque se tornou arma de ataque na briga entre os políticos. Nada mais importante para combater a corrupção que a competição política. Como há dois ou mais partidos em permanente luta pelo poder, eles farão de tudo para enfraquecer seus adversários. As denúncias de corrupção têm esse importante papel.

Deixemos de lado o argumento moralista, aquele que critica o denunciante porque ele faz o que faz movido pelo interesse próprio. É assim mesmo que funciona. No episódio do mensalão, se o então deputado Roberto Jefferson não tivesse sido contrariado em seu interesse próprio, jamais iria à mídia denunciar o esquema de compra de votos de deputados. Devemos louvar o interesse próprio quando ele vier combinado com conflito e competição. Sem isso, jamais saberíamos de muitas das falcatruas que ocorrem na administração pública brasileira.

O segundo motivo que levou a corrupção a ficar mais visível – na verdade, o mais importante de todos – é a mudança na cabeça dos brasileiros. Estamos passando por um contínuo e ininterrupto processo de melhoria da escolaridade de nossa população. Há uma relação simples e direta amplamente comprovada por dados de pesquisas: quanto mais elevada for a escolaridade de uma pessoa, mais ela se importará e tenderá a ser contra a corrupção. Portanto, a cada ano que passar, os brasileiros ficarão mais indignados com os escândalos e as denúncias de corrupção.

É somente por causa disso que os políticos podem usar tais denúncias como arma de guerra. Em consequência, com o permanente aumento da escolaridade da população, veremos em paralelo um permanente aumento do uso de escândalos e denúncias como arma para derrubar e prejudicar os adversários.

O terceiro fator-chave para o aumento da visibilidade da corrupção é a liberdade de imprensa. Uma imprensa dependente do governo para sua sobrevivência financeira jamais publicaria fatos que viessem a prejudicar os governantes. Igualmente, uma imprensa controlada por uma mesma elite política que tivesse relações pessoais e de parentesco muito próximas também dificilmente daria publicidade a fatos que denegrissem os ocupantes do governo.

Uma elite mais ampla, em que as pessoas não tenham sido criadas juntas, estudado nas mesmas escolas e faculdades ou frequentado os mesmos círculos sociais, é fundamental para que haja liberdade de imprensa. Primeiro é preciso pluralismo, depois vem o exercício da liberdade.

Políticos atacam políticos e a imprensa divulga. No dia seguinte, milhares de jovens vão às ruas mostrar indignação. Sua grande frustração é que não têm o poder real de combater a corrupção. Basta procurar um pouco para encontrarmos dezenas ou centenas de depoimentos desses jovens afirmando que, ao final dos protestos, fica a sensação de impotência, fica o sentimento de que nada mudará porque os protestos em si não interferem no dia a dia das práticas ilícitas. Protestar e mobilizar a sociedade é fundamental para tornar o problema visível, mas não pune os políticos corruptos.

Os dois tipos possíveis de punição são o eleitoral e o judiciário. A punição eleitoral, mostramos isso num artigo anterior neste mesmo espaço, vem ocorrendo gradativamente. É graças a ela que figuras como Maluf e Quércia foram precocemente sepultadas como políticos de grande poder e influência. Eles são dois dentre inúmeros exemplos que existem em todos os cantos do Brasil.

A maior arma contra a corrupção é a existência de instituições que efetivamente a combatam. Mídia e opinião pública são instituições, porém não é a elas que me refiro, mas sim a Ministério Público, Justiça, Tribunais de Contas, Tribunais Regionais Eleitorais, a Agências Reguladoras, leis, departamentos de ensino e pesquisa em nossas universidades que estudem fraudes, ao Conselho Nacional de Justiça, a procuradorias, corregedorias etc.

A importância da ação dessas instituições está comprovada cientificamente pelo artigo de Lee Alston, Marcus Melo, Bernardo Mueller e Carlos Pereira intitulado The predatory or virtuous choices governors make: the roles of checks and balances and political competition. Usando dados de cada um dos Estados do Brasil, os autores mostram que, quanto mais ativas são essas instituições, menos os políticos do respectivo Estado enriquecem; menor é o gasto com pessoal como proporção da receita do Estado; e menor é o deficit primário daquela unidade da Federação. Eles provam que a interação entre Poder Judiciário ativo, Tribunais de Contas atuantes, procuradores públicos militantes, com o auxílio da mídia local e da opinião pública, são imbatíveis quando se trata de limitar a margem de manobra dos políticos no uso do dinheiro público. A lição é clara: quem quer combater a corrupção precisa apoiar o fortalecimento das instituições que controlam o poder dos políticos.

Os cinco Estados que têm as instituições de controle mais fortes são Rio Grande do Sul, Distrito Federal, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul e São Paulo. O lanterninha é o Maranhão de Sarney, antecedido por Roraima, Rio Grande do Norte, Piauí e Alagoas. Isso mostra que as famílias Sarney e Collor não são fenômenos isolados, que pairam sobre o mundo sem ligação alguma com suas instituições. Pelo contrário, os Sarneys só existem porque, em seu Estado, não foram desenvolvidas as instituições que os combateriam.

Janela de oportunidade - PAULO GUEDES

O GLOBO - 06/02/12

A grande crise contemporânea é mesmo o fim dos tempos para o "capitalismo"? Ora, não pensam assim os bilhões de eurasianos que saíram da miséria mergulhando nos mercados globais. Particularmente os chineses, para quem o capitalismo está apenas no começo, como sua mais poderosa alavanca de inclusão social e redução da pobreza. Mas, para os intelectuais, continuará sendo respeitável falhar miseravelmente nas profecias do fim do "capitalismo", desde que na ilustre companhia de Marx e Schumpeter.

A civilização ocidental está mesmo condenada ao declínio? A grande crise contemporânea demonstra o fracasso das democracias liberais e suas economias de mercado? Ou estariam apenas submetidas a enormes esforços de adaptação, comprimidos numa estreita janela de tempo? Bombardeados por choques colossais nas últimas duas décadas, as democracias e os mercados são instituições extraordinariamente flexíveis, em princípio capazes de atender às gigantescas exigências de adaptação.

Somos um organismo vivo, uma população mundial estreitamente conectada pela teia dos mercados globais. Como acomodar em seus mercados de trabalho os 3,5 bilhões de eurasianos deserdados pelo colapso do socialismo? Como absorver o formidável aumento de produção eurasiana sem vergar ante as ameaças da desindustrialização e do desemprego em massa? E, tudo isso ocorrendo ao ritmo alucinante das novas tecnologias, como impedir o agravamento das pressões já exercidas por uma intensa competição em escala global? Os governos ocidentais, em sua maior parte, tentam evitar as reformas exigidas para enfrentar esses novos desafios. Recorreram a velhos e perigosos truques para manter artificialmente o crescimento econômico.

O dinheiro barato e a regulamentação frouxa dos bancos centrais, o excesso de endividamento e a farra do crédito pelos financistas anglo-saxões, a irresponsabilidade fiscal e a demagogia da social-democracia europeia. O resultado é desastroso.

Estão abalados os alicerces dos modernos regimes fiduciários. Os abusos cometidos quebraram a confiança dos ocidentais nos bancos e nos governos.

As economias avançadas chegaram ao fim de um ciclo longo, e estão agora paradas para conserto. Mas há outra dinâmica em funcionamento: a maior prosperidade dos países emergentes, que prosseguem em crescimento, ainda que desacelerando em meio à crise global. É uma janela de oportunidade para reduzir distâncias.

Como de costume - RICARDO NOBLAT

O GLOBO - 06/02/12

Fora o PT e a origem paulista, o que mais aproxima o senador Eduardo Suplicy do ministro Guido Mantega, da Fazenda? Ambos parecem – como dizer? – meio desconectados. São capazes de cometer disparates sem se darem conta disso. E quando deles se espera a afiada malícia de políticos experientes, chocam com a sua ingenuidade, real ou simulada.

Em estrito silêncio, Mantega acompanhou durante quatro dias o farto noticiário em torno da demissão de Luiz Felipe Denucci da presidência da Casa da Moeda do Brasil. Foi ele que nomeou Denucci há quatro anos. E que o demitiu na última segunda-feira.

Sob o risco de ser convocado pelo Congresso para explicar por que nomeara e demitira Denucci, o ministro adiantou-se e ofereceu logo a sua versão da história . Por tudo que consegui saber, Mantega falou a verdade, somente a verdade e nada mais do que a verdade. E por isso ficou mal.

Jovair Arantes, líder do PTB na Câmara dos Deputados, havia contado que Mantega o procurara em 2008 pedindo que seu partido apadrinhasse a nomeação de Denucci. Como negar um pedido do ministro da Fazenda? E como perder a chance de se aproximar de um fabricante de moedas?

Sem citar Jovair, Mantega o corrigiu. Não foi ele que procurou Jovair para emplacar Denucci na Casa da Moeda. Foi Jovair, em nome do PTB, que indicou Denucci para o cargo. Para governar pela segunda vez e eleger seu sucessor, Lula distribuiu cargos à beça. O ministro com a palavra:

- Em 2008, quando substituímos o presidente da Casa da Moeda de então, o PTB fez indicações [para o cargo] dentro do critério que utilizamos de competência técnica. Os primeiros nomes não foram aceitos. Aceitei o de Denucci. Não o conhecia. Nunca o tinha visto antes.

Formidável! A presidência da Casa da Moeda é um cargo técnico. Imaginava-se que seu preenchimento estivesse a salvo de indicações partidárias. Afinal, que vantagem legítima pode tirar um partido da nomeação de um entendido em produção de moedas? Eu disse "legítima".

De resto, o Ministério da Fazenda sempre foi preservado na hora de se lotear governos com partidos. Na maioria das vezes, o próprio presidente da República escolhe o ministro. E o ministro aqueles que deverão ajudá-lo a administrar a mais problemática e crucial área do governo.

Uma vez que na Era Lula o PTB ganhou com Denucci a presidência da Casa da Moeda, nada mais natural que se julgasse no direito de removê-lo dali por não ter seus pedidos atendidos com presteza. A oportunidade surgiu em janeiro de 2010. Jovair escreveu a Mantega no dia dois:

- A bancada do PTB recebeu com indignação a publicação da revista IstoÉ da decisão da Secretaria da Receita Federal em aplicar multa de R$ 3,5 milhões ao presidente da Casa da Moeda por crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores.

(Não ria e leia o resto). "O PTB não aceita atos de improbidade administrativa praticados na gestão pública. A denúncia é gravíssima e o pronto afastamento [de Denucci] passa a ser indispensável", decretou o Jovair. Deve ter pensado que o cargo permaneceria na cota do partido.

De novo, Mantega com a palavra: "As acusações [contra Denucci] não eram sólidas. Mas ele estava sendo pressionado [para sair]. A sua substituição estava em andamento. Eu já havia entrevistado três candidatos ao cargo. Esperava terminar o ano para fazer a substituição."

Se as acusações não eram sólidas por que Mantega decidira demitir Denucci? Só para atender ao PTB? E como não eram sólidas? Por acaso a Receita Federal recuou da multa que aplicara? As acusações foram retiradas? Mantega falou a verdade. Mas não falou toda a verdade.

Como ficamos? Como de costume. A oposição tentará ouvir Mantega em alguma comissão da Câmara dos Deputados ou do Senado. E o governo, que tem folgada maioria no Congresso, simplesmente não deixará sob o pretexto de que tudo já foi esclarecido. Não foi. Como de costume.

Mediocridade política global - MARCELO DE PAIVA ABREU

O ESTADÃO - 06/02/12


Muita tinta foi gasta recentemente na imprensa mundial com foco nas pretensas virtudes do "capitalismo de Estado" sobre o capitalismo "tout court". Há clara tendência a minimizar as enormes dificuldades de estabelecer, sob o capitalismo de Estado, os checks and balances (freios e contrapesos) adequados para evitar distorções grotescas. Sob o capitalismo com menos Estado, ao menos em tese é possível regular a atividade econômica - dada a vontade política.

A crise financeira atual decorreu, em escala global, de inapetência, ou incompetência, política em regular a economia e, especificamente, o sistema financeiro. De qualquer forma, capitalismo de Estado depende crucialmente da capacidade política de seus líderes. É irônico, mas o melhor exemplo de sucesso é o da China, país que inevitavelmente terá de enfrentar os custos de transição para um sistema político multipartidário, sabe-se lá com que custos. Pode-se ter certeza de que a solução da atual crise não será via capitalismo de Estado. O que se requer é capacidade de coordenação de políticas e de negociação de custos e benefícios.

A constelação dos atuais líderes políticos das grandes democracias é quase constrangedora, mesmo com a ausência de Silvio Berlusconi: Sarkozy, Merkel, Cameron, mesmo Obama, não parecem compor um conjunto notável de políticos capazes de trabalhar de forma consistente para minorar as consequências globais da crise. E não é que as oposições sejam lideradas por políticos com programas alternativos responsáveis e críveis. Hollande ou Le Pen, na França, Miliband no Reino Unido, e Gabriel, na Alemanha, compõem elenco de reservas bem desanimador. Para não falar em Mitt Romney e Newt Gingrich, alternativas a Barack Obama. A exceção importante neste quadro é Mario Monti, com a árdua tarefa de minorar as lambanças do regime de "bunga bunga".

É um quadro político que tem o seu paralelismo com a tripulação de líderes do final da década de 1920, que demonstrou ser incapaz de conter os estragos da grande depressão. O britânico Malcom MacDonald, pouco inspirador, promoveu a saída da libra do padrão ouro, mas é lembrado antes de tudo por sua traição ao Labour Party. Entre a saída de Poincaré, em 1929, e 1932, a França, agarrada ao padrão ouro, teve seis primeiros ministros, sem contar repetições... Brüning, chanceler alemão em 1930-1932, tentou enfrentar a crise com medidas ortodoxas. Não é exagero afirmar que foram os desempregados de Brüning que votaram no nacional-socialismo e viabilizaram a ascensão de Hitler. A "solução" alemã, bem-sucedida economicamente, foi desastrosa no longo prazo. Nos EUA, o presidente Hoover, republicano, teve desempenho semelhante a Brüning. Roosevelt, que em 1933 abandonou o padrão ouro e equacionou a crise bancária, foi o único político entre os grandes protagonistas que superou a mediocridade. Mas, como demonstraria na Conferência Econômica Mundial de 1933, atribuía importância quase nula à coordenação internacional de políticas econômicas.

É possível vislumbrar resquícios de Brüning na atual política alemã quanto à crise do euro. É claro que garantir a responsabilidade fiscal dos membros da zona do euro é essencial para que Angela Merkel mobilize apoio político interno para que a Alemanha lidere o resgate da orla mediterrânea gastadora. Mas é ingênuo pensar que possa ser exercido controle direto de finanças de países-membros fora do quadro de redefinição das atribuições fiscais nacionais e de Bruxelas. Algumas das propostas ventiladas recentemente para a Grécia fazem lembrar o controle financeiro anglo-francês do Egito no final do século 19. O grande desafio é como compatibilizar o rearranjo fiscal com os interesses divergentes de países europeus na zona do euro e fora dela. A excessiva ênfase de Merkel no lado fiscal tem suscitado reparos. Mario Monti tem insistido que ajuste fiscal desacompanhado de estímulos ao crescimento não tem condições de garantir a reversão da grave crise financeira italiana. Dada a importância do comércio intracomunitário, a sobrevivência do euro depende da reversão das vantagens competitivas alemãs ante a orla mediterrânea. Em prazo mais curto, afrouxamento fiscal na Alemanha. Em prazo mais longo, reformas estruturais nos países menos eficientes. No entretempo, o controle da crise depende do volume dos recursos disponíveis para enfrentar desestabilização adicional e, talvez, da possibilidade de emissão de títulos em euro com garantia supranacional, ou seja, alemã. É mais do que razoável que o contribuinte alemão se pergunte se o saco tem fundo.

O desmonte da zona do euro traria, além de enormes custos políticos, com o primeiro grande retrocesso no processo de integração europeia, grandes custos econômicos, pois certamente seria precedido pelo colapso financeiro dos mediterrâneos.

Vendo a derrocada dos Piigs, é fácil lembrar a frase do bandido Harry Lime, interpretado por Orson Welles no Terceiro Homem, clássico de Carol Reed: a Itália, apesar de guerras e mau governo, produziu Leonardo e Miguel Ângelo, enquanto a Suíça, em 500 anos de democracia e bom governo, produziu o relógio cuco. Cabe aos atuais negociadores mostrar que o dilema entre o relógio cuco e Miguel Ângelo é falso.

GOSTOSA


A teia de Charlotte - LÚCIA GUIMARÃES


O Estado de S.Paulo - 06/02/12


"Uma vida. É só o que temos."

A Teia de Charlotte,

de E.B. White

Às 11h30 da noite, ouvi o bater rítmico da bengala no teto do meu quarto escuro. Alguém lá em cima estaria se comunicando em Código Morse?

À meia-noite, meu quase sono foi interrompido por uma gritaria que vinha da escada dos fundos. Estava muito cansada para tentar decifrar os gritos e o despertador não ia negociar o prazo de 5h30 obrigatório para entrar ao vivo na rádio.

À 1 da manhã foi a vez do interfone. Furiosa, coloquei um travesseiro na cabeça e pensei, deve ser engano. Não era. Do outro lado, ouvi a voz trêmula do zelador polonês, que balbuciou em inglês tatibitate: "Música alta no seu apartamento. Ela não consegue dormir." O silêncio reinava supremo em todo o meu andar.

"Ela" dispensava o nome. É Charlotte, oitentona, ex-madame que, em seus tempos de juventude e beleza, comandava um elenco de prostitutas, ex-residente de uma penitenciária, onde cumpriu pena por estelionato. E inquilina do edifício do bairro de classe média alta, graças a uma lei aplicável a quem se mudou para um apartamento antes de 1971, que lhe garante um contrato vitalício por uma fração (hoje calculo 1/6) do aluguel que pago.

Se Charlotte desfilar nua pelo lobby fazendo a saudação nazista, não há nada que se possa fazer. Se a sua jurássica máquina de levar roupa, instalada irregularmente num prédio com encanamento de 1920, inundar minha casa, como aconteceu duas vezes (gravei tudo em vídeo), não há nada que eu possa fazer.

Desci à portaria de pijama escondido pelo casaco longo, tomada por uma cólera que só os pais de bebês que não dormem à noite são capazes de compreender. Fiz a asneira de perguntar à Charlotte: "Que música é esta? Você ficou maluca?" É claro que Charlotte está se divorciando da realidade há anos. E minha reação foi a deixa para a rotina habitual: gritos, palavrões e ameaças.

No dia seguinte ao incidente, encontrei uma vizinha que é gentil e caminha devagar porque seu cachorro pastor tem quase 18 anos. Você teve sorte, ela comentou, depois de ouvir minha história. Há muito tempo, ela deixou cair um cheque no chão, a Charlotte pegou e pediu pagamento para devolver o cheque. "Quando me recusei a pagar", lembrou a vizinha, "ela pulou em cima de mim e começou a apertar o meu pescoço, no meio da portaria." E o pior, disse a vizinha, "é que eu estava atrasada para um compromisso de trabalho".

Ser quase estrangulada na portaria é desagradável. Já chegar atrasada ao trabalho...

Mas, como me lembrou o porteiro da tarde, pior é o veterano da Guerra do Vietnã que mora no prédio, outro beneficiário do contrato vitalício. Como Charlotte, ele não parece ter família, nem conta com qualquer sistema de apoio. Ele mantém seu porte de arma, embora, de vez em quando, interrompa a medicação antipsicótica e convoque norte-vietnamitas imaginários para duelos na calçada. O veterano agora foi a um canil e adotou um Pitbull que, como ele, havia sido maltratado.

Charlotte está doente e fraca demais para pular no meu pescoço. Mas, armada com sua bengala, continua xingando e gritando com a energia dos tempos em que operava o bordel. Ela está convencida: a música que ouve na sua cabeça de madrugada sai do meu apartamento.

Não há nada que eu possa fazer.

Não há nada que o sistema de saúde queira fazer.

Ah, o dono do edifício me sugeriu uma solução: discar 911 e a polícia aparece em menos de um minuto. Charlotte cai de novo na teia do sistema criminal, e, com sua saúde frágil e idade avançada, é fácil prever que um cobiçado apartamento volte mais rápido ao obsceno mercado imobiliário nova-iorquino.

Acabo de abrir a conta do meu seguro-saúde e a mensalidade subiu de novo, 40% em um ano e meio, mais de dez vezes a inflação americana. O seguro nem dá direito a visitas a consultório médico.

Pensei em discar 911. A saúde, neste país, é mesmo um caso de polícia.

Na base do quebra-galho - CARLOS ALBERTO SARDENBERG

O ESTADÃO - 06/02/12

O governo brasileiro está fazendo com outros países exatamente o que a Argentina está fazendo com o Brasil. Ao aumento de importações de produtos brasileiros, o governo de Cristina Kirchner responde com medidas protecionistas variadas, inclusive a introdução de regras burocráticas que permitem às autoridades locais cancelar, adiar e atrasar compras externas, de maneira arbitrária. A diferença é que os argentinos não estão preocupados em disfarçar a coisa. Simplesmente assumem que vão proteger a indústria local e que, nisso, vale tudo. Assim, ignoram solenemente as reclamações brasileiras.

Já o governo Dilma parece ainda ter algumas preocupações com a repercussão internacional de suas medidas. Nega ser protecionista, mas é o que faz quando, por exemplo, aumenta subitamente o IPI sobre carros importados especialmente da China e Coreia do Sul. Idem quando ameaça denunciar o acordo automotivo com o México, que prevê trocas de veículos e peças sem o pagamento de impostos nas duas pontas.

Por conta desse acordo, os carros importados do México ficaram livres do aumento do IPI. Ocorre que a balança, até 2010 superavitária para o Brasil, no ano passado virou a favor do México. Aí, não serve mais, não é mesmo?

Em comum com as práticas argentinas, temos a mudança brusca das regras do jogo. Só as montadoras aqui instaladas importam do México. Com isso e mais o acordo do Mercosul, elas haviam estruturado a produção na região mais ou menos assim: carros populares e básicos no Brasil, médios na Argentina e top de linha no México. Se for suspenso o acordo com o México, por exemplo, determinados modelos sofrerão imediato aumento de preço por aqui.

Não, necessariamente, diz o pessoal do governo, pois o modelo não importado pode vir a ser fabricado no Brasil.

Não é simples assim mudar a plataforma de produção, inclusive de peças, cuja fabricação também é dividida entre os países. Mas, mesmo que as montadoras locais venham a produzir aqui toda a linha - do popular ao top -, ainda assim esses nacionais ficarão mais caros. O problema está aqui, não lá fora. Por exemplo, muitos leitores já enviaram e-mails para esta coluna registrando, entre espantados e revoltados, que os carros fabricados no Brasil são mais baratos no Chile e no México do que aqui. Também são mais baratos na Argentina.

Eis o ponto: como não consegue reduzir o custo Brasil interno, o governo Dilma está empenhado em aumentar o custo mundo.Exatamente o que faz a Argentina.

No caso do México, o Brasil não pode nem reclamar da valorização do real ante o dólar. Amoeda mexicana descreve trajetória igual à brasileira nos últimos anos.

Há uma óbvia contradição entre o que as autoridades brasileiras falam nos fóruns internacionais, como o G-20, e a prática.No discurso, condenam medidas protecionistas, prometem manter o comércio aberto, quando enfileiram cada vez mais medidas protecionistas, muitas condenadas pela Organização Mundial do Comércio (OMC).

Todo mundo já percebeu isso, inclusive Cristina Kirchner.

E daí? Vão aplicar represálias?

É possível que ocorram respostas, condenações, mas o Brasil é grande demais para ser afrontado. Ninguém quer ficar de fora de um mercado de 3,5 milhões de veículos/ano, o 4.º ou 5.º do mundo, compossibilidades de expansão.

De maneira que, no imediato, quem vai pagar a conta é o consumidor brasileiro, que pagará mais caro por produtos piores, já que dispensados da concorrência. As montadoras continuarão a ganhar muito dinheiro e a remeter para as matrizes. No ano passado, foram as campeãs em remessas ao exterior, cerca de US$5,5 bilhões.

Os sindicatos de trabalhadores também se apresentam como ganhadores. Acham que terão mais empregos. Não é bem assim. Nenhuma montadora pode se consolidar num mercado deste tamanho com importações.

Todas já estavam ampliando sua produção local. Mesmo aquelas predominantemente importadoras se preparavam para elevar a fabricação aqui.

Coma escalada de protecionismo, a indústria tende a ficar ainda menos competitiva, incapaz de exportar, tendo aí um sério obstáculo à expansão. E o protecionismo não ataca, nem de leve, os problemas que emperram a indústria brasileira. Estudo recente da Federação das Indústrias do Rio (Firjan) mostrou que as fábricas nacionais pagam pela energia 2,4 vezes mais caro do que na China. A energia, aqui, é mais cara do que na Alemanha. E isso com todas essas hidrelétricas.

Precisamos falar da carga tributária, dos custos trabalhistas, do hostil ambiente de negócios, da falta de infraestrutura?

O governo Dilma não corresponde ao prestígio da presidente como talentosa gerente e administradora. Até aqui, não se vê plano nem ação de longo prazo. O governo reage aos acontecimentos do dia. Caem as exportações? Promete mais um pacote. Sobem as importações? Cortem-nas. O País cresce menos? Promete mais investimento público (o mesmo do ano passado) e diz que vai chamar empresários e banqueiros para convencê-los a aplicar mais. Enquanto isso, vai trocando ministros.

A presidente não mudou as bases macroeconômicas que garantem a estabilidade. Mas seu governo administra mal os instrumentos, de modo que os problemas permanecem e se acentuam. A inflação, por exemplo, não dispara, mas permanece alta e com tendência para cima. O dólar não vai a R$ 1,60, sobe um pouco, ajuda a inflação nisso, mas também não alcança um valor bom para a indústria. O País acumula reservas, mas gasta reais e aumenta sua dívida, cara, para comprar os dólares. Mexe nos impostos frequentemente, mas a carga permanece elevada. Lança obras e as atrasa.

E assim vai empurrando. Se a China continuar crescendo e o mundo desenvolvido melhorar um pouco, dá para seguir anos. O problema é que não se vê o que se perde.

"Custo Brasil" ficou maior - FERNANDO CANZIAN


FOLHA DE SP - 06/02/12

Em crises internacionais passadas, o Brasil sempre se estropiava rapidamente por conta de sua vulnerabilidade externa. Era nossa pior e mais aparente deficiência.

A partir do primeiro governo Lula, isso foi sendo corrigido. O país minimizou seu endividamento atrelado ao câmbio, empilhou reservas cambiais (que já ultrapassam US$ 350 bilhões) e fortaleceu o consumo interno via crédito e aumento da massa de rendimentos e mais empregos.

Foi o que protegeu o Brasil relativamente da Grande Recessão global iniciada em 2008.

Mas agora, infelizmente, a economia brasileira dá sinais cada vez maiores de estar sendo atingida com mais força do que muitos previam.

A movimentação do Ministério da Fazenda contra entrada de automóveis mexicanos e outras medidas protecionistas são o principal sintoma disso.

A crise global de hoje está sendo combatida pelos EUA e União Europeia por meio de uma oferta sem precedentes de dinheiro barato pelos seus Bancos Centrais. Isso faz com que outras moedas, como o real, acabem se valorizando, trazendo uma série de problemas.

No caso do Brasil, os efeitos da valorização do real são amplificados por um conjunto de deficiências que, ao contrário da vulnerabilidade externa, não foi atacado nos últimos anos.

É o velho "custo Brasil": burocracia e impostos muito altos e infraestrutura ruim que acabam refletidos nos preços que pagamos no dia a dia.

Já é lugar-comum comentarmos que o Brasil está caro. O recorde de gastos de brasileiros com compras no exterior em 2011 é o lado mais pitoresco disso.

Mas há movimentos "subterrâneos" muito mais graves. E que expõem, neste momento, o quão atrasado e deficiente o Brasil ainda segue.

Por conta do "custo Brasil", quem pode busca alternativas mais baratas. Como os brasileiros que infestam as lojas de Miami e Nova York ou os que, internamente, acabam preferindo produtos importados.

No ano passado, enquanto as vendas do comércio subiram 6,5% acima da inflação, a produção da indústria nacional cresceu só 0,3%. E a produção industrial de bens de consumo caiu 0,7%.

Isso mostra que comércio, consumidores e mesmo a indústria estão recorrendo cada vez mais a importados baratos para satisfazer suas necessidades.

O país não vai longe assim.

O governo brasileiro gosta de apontar para os EUA e Europa como grandes responsáveis por isso, por desvalorizarem suas moedas e, por tabela, fortalecerem o real.

Mas isso não tem nenhuma relação com impostos, juros e "spreads" bancários altos, infraestrutura ruim e governos ineficientes e corruptos.

Com a crise, o "custo Brasil", que já era grande, só ficou maior.

"Senhorita Christina" - LUIZ FELIPE PONDÉ

 FOLHA DE SP - 06/02/12


Há algumas semanas, eu escrevia sobre "exus" e sua "ciência das mulheres". Muitos leitores estranharam a conversa entre o niilista e uma entidade sobrenatural. Lamento dizer que também já conversei com (supostos) "extraterrestres".

Sempre nutri um interesse específico por almas penadas. Não por acaso, tornei-me, entre outras coisas, um estudioso de religião.

Para alguém como eu, dado a uma sensibilidade monotonamente cética, espanta como há 300 mil anos (desde o Paleolítico), mais ou menos, a humanidade crê em e vive cercada de seres sobrenaturais atormentados que nos atormentam.

As almas que padecem como se fossem vivas me encantam. Uma amiga minha costuma dizer que o mundo do além é pior do que este em que vivemos. Esta forma de crença em espíritos me apetece.

A forma segundo a qual, como apresenta o horroroso filme "Nosso Lar", espíritos desfilam seus modelitos batas hippies à la Roma antiga e suspiram ares de amor por toda a humanidade me entendia profundamente.

Portanto foi a agonia do sobrenatural, o possível desespero sem fim da alma humana nas suas variadas formas, desde o pecado original judaico-cristão até o abismo sem fundo de espíritos condenados às paixões humanas mais baixas e eternas (enfim, o mal na sua forma encarnada) o que me levou ao estudo das religiões, e não qualquer forma de fé em divindades ou ódio ideológico (comum em especialistas em religiões) contra as religiões.

Sou imune à dependência ou necessidade psicológica que caracterizam a maioria dos crentes. Tampouco partilho da falsa virtude intelectual que alimenta o orgulho infantil de muitos ateus.

Parece ter sido algo semelhante que levou o romeno Mircea Eliade (1907-1986) a se tornar um dos maiores historiadores da religião.

Eliade começou sua carreira escrevendo, junto com seu doutorado, sobre mística hindu, ficções de terror, e o título desta coluna tem a ver com uma boa notícia para quem aprecia a obra desse grande intelectual romeno.

A editora Tordesilhas acaba de publicar entre nós, numa edição muito bem-acabada, o romance gótico "Senhorita Christina", de 1936, de Mircea Eliade ("Domnisoara Christina", em romeno).

A edição traz um excelente posfácio analítico assinado por Sorin Alexandrescu (especialista em literatura romena e sobrinho de Mircea Eliade). Para Alexandrescu, Eliade descreve um mundo entre a carne, a morte e o diabo. E seu romance nos leva para esse mundo.

Senhorita Christina, a personagem principal do romance que carrega seu nome, é uma "strigoi".

"Strigoi", em romeno, significa um ser sobrenatural maldito, meio humano, meio monstro, um morto-vivo. O famoso vampiro é uma forma de "strigoi".

A cultura ancestral romena é saturada de narrativas de "strigoi".

O pessimismo na Romênia brota do solo dos Cárpatos e da Transilvânia. Vem junto com o leite materno. Basta lermos outros romenos ilustres da mesma geração de Eliade, como o filósofo Cioran e o dramaturgo Ionesco.

"Strigoi" são sedentos de sangue humano, assim como da vida dos mortais, que são consumidos por esses infelizes atormentados para quem o fardo maior é saber que a morte pode não ser um descanso.

Christina, uma mulher linda, sensual e rica, morta aos 20 anos por um amante, depois de uma vida devassa, atormenta a propriedade onde vivia e que, agora (quase 30 anos após sua morte), é habitada por sua irmã e duas filhas.

Igor, um pintor famoso, apaixonado por uma das sobrinhas da vampira Christina, se hospedará na propriedade. A infeliz vampira se apaixonará por ele e tentará desesperadamente seduzi-lo.

A obra foi considerada por muitos um livro pornográfico, devido às cenas eróticas entre a morta Christina e o pintor Igor.

Ao contrário do que se espera, Christina sofrerá como qualquer mulher apaixonada devorada pelo desejo erótico negado. Suas habilidades monstruosas emudecem diante do amor impossível pelo mortal Igor.

O livro é uma história de amor e desejo como maldição eterna, por isso é uma obra romântica que fala da alma sempre presa entre o corpo e o mal. Sem a esperança da morte, Christina sofrerá.

O silêncio do PT - AÉCIO NEVES

FOLHA DE SP - 06/02/12


Já passa da hora de vermos a questão cubana além do limite da ótica ideológica. É visível o incômodo de setores, que se dizem democráticos, de reconhecer o autoritarismo do regime cubano, como se existissem duas Cubas: a real, que muitos preferem não enxergar, e a outra, da fantasia, que cada um constrói no seu imaginário como quer. Não podemos mais ver o país e o regime dinástico dos irmãos Castro como se a ilha fosse o último enclave da Guerra Fria. Precisamos, isso sim, mobilizar as melhores energias da nossa diplomacia e da comunidade internacional na direção da única realidade que, de fato, interessa: o povo cubano.

São 11,2 milhões de pessoas submetidas ao cotidiano cruelmente caricato das cotas de alimentos, esse malfadado regime das cadernetas, a uma carência crônica, ao desabastecimento histórico, que desmentem, há muito, a fantasia do socialismo igualitário. Ao mal-estar econômico agrega-se o pior que uma sociedade pode vivenciar: a falta de horizonte para as novas gerações. A imensa maioria da população nasceu pós-Fidel e, portanto, desconhece o usufruto da palavra liberdade, o direito de ir e vir, de discutir, de recusar, de dissentir. "Me sinto como um refém sequestrado por alguém que não escuta nem dá explicações", diz a blogueira Yoani Sánchez, proibida pela 19ª vez de viajar a outros países.

No entanto nem mesmo o isolamento forçado tem conseguido impedir que, pelas frestas da fortaleza do castrismo, infiltre-se a brisa que dá notícia aos cubanos da mais simples equação da vida política de uma nação: não há dignidade possível numa ditadura. Recordo o ainda nebuloso episódio do asilo-não-asilo aos boxeadores cubanos durante os Jogos Panamericanos do Rio, em 2007. Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara abandonaram a delegação, mas foram recambiados a Cuba pelo governo do PT. Lá os atletas sofreram retaliações. E pensar que o Brasil é tão pródigo em acolher até mesmo criminosos comuns

Os silêncios e os temas evitados na viagem da presidente Dilma a Cuba agridem as consciências democráticas. O mal disfarçado flerte com regimes fechados e totalitários, como o de Cuba e o do Irã, entre outros, expõe publicamente a tentação autoritária que o PT tenta dissimular e que, no entanto, parece estar inscrito no DNA do partido. A ambiguidade explode em episódios como este. Quem no passado foi perseguida por defender ideias, deveria identificar-se com os perseguidos de hoje, e não sentir-se tão confortavelmente à vontade ao lado de dirigentes de um país onde não há resíduo de democracia há mais de meio século. Volto a Yoani: "Dilma foi a Cuba com a carteira aberta e os olhos fechados". Foi pouco.

GOSTOSA


Juízes e seus destinos - PAULO DELGADO


O GLOBO - 06/02/12


Como é difícil compreender a dicção dos juízes. Felizmente, velhos erros podem produzir novas verdades, resignou-se o Supremo Tribunal Federal (STF) diante da realidade e autorizou ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ampliar a investigação sobre o desvio de conduta de magistrados.

Há diferentes e difíceis maneiras de identificar o que é justiça. É mais fácil perceber o que é injustiça, especialmente as corrigíveis. Porque a justiça está fundamentalmente conectada ao modo como se comporta o juiz, guardião do comportamento dos outros.

Os problemas do Judiciário servem à vista e ao tato, basta querer ver sem medo de tocar. E é bom que os próprios juízes se deem conta do mérito das críticas que recebem e, assim, tenham preponderância sobre elas. A relevância da função e a elevada conduta da maioria dispensam o uso das expressões corporativas em sua defesa: "Interesses do Judiciário e da Magistratura" e "Direitos da classe dos juízes". O que se busca são formas de combater a injustiça e alcançar a justiça para todos.

Um bom caminho para observar as características predominantes da sociedade é ver como funciona a distribuição das vantagens e desvantagens entre seus membros. Isto porque a renda e a riqueza acabaram se tornando os principais fatores de prestígio e sucesso no mundo atual. E tornou ridículos os que ainda falam em vocação ou prezam a conduta.

Há mais injustiça do que justiça quando a existência de vantagens, de alguns indivíduos sobre outros, por razões que não são de ordem econômica, produz imediata diferença de renda. Mas a sociedade aceita quando a relevância social da função justifica a remuneração relevante. No entanto, se qualquer comportamento individual dos membros de uma instituição é tolerado, não tem por que haver concurso para ser seu membro.

Porque, se as regras internas de seu funcionamento não inibem a ação dos inadequados, é difícil defender sua relevância para todos.

Tornou-se difícil dizer em qual teoria do Direito ou da Justiça se baseiam a função e a conduta de um juiz.

Qual o lugar da vocação, da escolha profissional motivada por senso de justiça, no melhoramento da convivência humana? A solidificação da democracia depende do fortalecimento das instituições: públicas ou privadas. Mas não é indiferente, nem se sustenta, se não leva em conta o modo como as pessoas vivem. Ou seja, há momentos em que a indignação é mais transformadora do que o acordo de cavalheiros, se este pacifica instituições deformadas.

Qualquer autoridade que tenha a função de decidir sobre a vida dos outros tem, obrigatoriamente, que aceitar o cálculo de valorização de sua conduta por toda a sociedade. Do contrário, pressionada pelo coleguismo, reage como um sindicato, e tende a ignorar a força da justiça na solução dos problemas da desigualdade.

Ou pior, não aceita para si o que determina para os outros.

A relevância do poder Judiciário não se ajusta à particularíssima noção de "instituição total", fechada e impenetrável.

Nem à ideia de conviver com regras especiais incompreensíveis para a maioria submetida a leis gerais.

Muito menos considerar produto do seu único esforço uma atividade cuja principal característica é o benefício do outro, o injustiçado. Assim, universalidade, rigor e transparência são imperativos categóricos para a boa administração da justiça.

É legítima a luta por uma remuneração digna para os juízes. Incompreensível é o labirinto criado para se chegar a ela, manipulando princípios da soberania e independência entre os poderes. Ou espremer, por complacência, todo um poder até a desmoralização, só para esconder a má conduta e a inexplicável riqueza de alguns.

Sultanatos institucionais nascem de más rotinas. Produzem autoridades isoladas da vida e do sofrimento das pessoas comuns e enfraquecidas diante de seus críticos. O juiz entesourado por transferência injusta de renda não compartilha do destino dos que prejudica. Mas, ao causar dor aos outros, nunca passa despercebido.

A hora da credibilidade - CARLOS ALBERTO DI FRANCO


O Estado de S.Paulo - 06/02/12


Arrogância, precipitação e superficialidade têm sido, na opinião de James Fallows, autor do afiadíssimo Detonando a Notícia, a marca registrada de certos setores da mídia norte-americana. A crítica, contundente e despida de corporativismo, continua produzindo reações iradas, alguns aplausos entusiásticos e, sem dúvida, uma saudável autocrítica. A síndrome não reflete uma idiossincrasia da imprensa estadunidense. Trata-se de uma doença universal. Também nossa. Reconhecê-la é importante. Superá-la, um dever.

Fallows questiona, por exemplo, a aspiração de exercer um permanente contrapoder que está no cerne de algumas matérias. O jornalismo doutrinário do passado, vestígio dos baronatos da imprensa, ressurge, frequentemente, sob o manto protetor do dogma do ceticismo. A investigação jornalística não brota da dúvida necessária, da interrogação inteligente. Nasce, muitas vezes, de uma enxurrada de preconceitos.

Há um ceticismo ético, base da boa reportagem investigativa. É a saudável desconfiança que se alimenta de uma paixão: o desejo dominante de descobrir e contar a verdade. Outra coisa, bem diferente, é o jornalismo de suspeita. O profissional suspicaz não tem "olhos de ver". Não admite que possam existir decência, retidão, bondade. Tudo passa por um crivo negativo que se traduz numa incapacidade crescente de elogiar o que deu certo. O jornalista não deve ser ingênuo. Mas não precisa ser cínico. Basta ser honrado, independente.

A fórmula de um bom jornal reclama uma balanceada combinação de convicção e dúvida. A candura, num país marcado pela tradição da impunidade, acaba sendo um desserviço à sociedade. É indispensável o exercício da denúncia fundamentada. Precisamos, independentemente do escárnio e do fôlego das máfias da vida pública, perseverar num verdadeiro jornalismo de buldogues. Um dia a coisa vai mudar. E vai mudar graças também ao esforço investigativo dos bons jornalistas. Essa atitude, contudo, não se confunde com o cinismo de quem sabe "o preço de cada coisa e o valor de coisa alguma". O repórter, observador diário da corrupção e da miséria moral, não pode deixar que a alma envelheça. Convém renovar a rebeldia sonhadora do começo da carreira. O coração do foca (gíria para jornalista iniciante, novato) deve pulsar em cada matéria.

A precipitação é outro vírus que ameaça a qualidade informativa. Repórteres carentes de informação especializada e de documentação apropriada ficam reféns da fonte. Sobra declaração, mas falta apuração rigorosa. A incompetência foge dos bancos de dados. Troca milhão por bilhão. E, surpreendentemente, nada acontece. O jornalismo é o único negócio em que a satisfação do cliente (o leitor) parece interessar muito pouco.

O jornalismo não fundamentado em documentação é o resultado acabado de uma perversa patologia: o despreparo de repórteres e a obsessão de editores pelo fechamento. A chave de uma boa edição é o planejamento. Quando editores não formam os seus repórteres, quando a qualidade é expulsa pela ditadura do deadline, quando as entrevistas são feitas por telefone e já não se olha nos olhos do entrevistado, está na hora de repensar todo o processo de edição.

O culto da frivolidade e a submissão à ditadura dos modismos estão na outra ponta do problema. Vivemos sob o domínio do politicamente correto. E o dogma do politicamente correto não deixa saída: de um lado, só há vilões; de outro, só se captam perfis de mocinhos. E sabemos que não é assim. O verdadeiro jornalismo não busca apenas argumentos que reforcem a bola da vez, mas, também, com a mesma vontade, os argumentos opostos. Estamos carentes de informação e faltos da boa dialética. Sente-se o leitor conduzido pela força de nossas preferências ideológicas.

Por outro lado, ao tentar disputar espaço com o mundo do entretenimento, a chamada imprensa de qualidade está entrando num perigoso processo de autofagia. A frivolidade não é a melhor companheira para a viagem informativa. Pode até atrair num primeiro momento, mas depois, não duvidemos, termina sofrendo arranhões irreparáveis no seu prestígio.

Registremos, ademais, os perigos do jornalismo de dossiê. Os riscos de instrumentalização da imprensa são evidentes. Por isso é preciso revalorizar, e muito, as clássicas perguntas que devem ser feitas a qualquer repórter que cumpre pauta investigativa: checou? Tem provas? A quem interessa essa informação? Trata-se de eficiente terapia no combate ao vírus da leviandade. O esforço de isenção, no entanto, não se confunde com a omissão. O leitor espera uma imprensa combativa, disposta a exercer o seu intransferível dever de denúncia. Menos registro e mais apuração. Menos fofoca e mais seriedade. Menos espetáculo de marketing político e mais consistência.

Finalmente, precisamos ter transparência no reconhecimento de nossos equívocos. Uma imprensa ética sabe reconhecer os seus erros. As palavras podem informar corretamente, denunciar situações injustas, cobrar soluções. Mas podem também esquartejar reputações, destruir patrimônios, desinformar. Confessar um erro de português ou uma troca de legendas é fácil. Mas admitir a prática de atitudes de prejulgamento, de manipulação informativa ou de leviandade noticiosa exige coragem moral. Reconhecer o erro, limpa e abertamente, é o pré-requisito da qualidade e, por isso, um dos alicerces da credibilidade.

A força de uma publicação não é fruto do acaso. É uma conquista diária. A credibilidade não combina com a leviandade. Só há uma receita duradoura: ética, profissionalismo e talento. O leitor, cada vez mais crítico e exigente, quer notícia. Quer informação substantiva.

O pragmatismo de Dilma - RICARDO BALTHAZAR

FOLHA DE SP - 06/02/12


SÃO PAULO - Na campanha eleitoral de 2010, Dilma Rousseff acusou seus adversários tucanos de dilapidarem o patrimônio nacional com as privatizações e prometeu fortalecer as empresas estatais para fazer os investimentos de que o Brasil precisa para se desenvolver. "Nosso caminho é totalmente outro", disse num comercial de televisão.

Era conversa fiada. Pouco depois de tomar posse, Dilma anunciou a decisão de privatizar a administração de três dos maiores aeroportos do país, os de Guarulhos, Campinas e Brasília. O leilão que definirá quais empresas assumirão a tarefa será realizado hoje em São Paulo.

O plano original de Dilma era vitaminar a Infraero, a estatal encarregada de cuidar dos aeroportos do país. A empresa abriria seu capital na Bolsa de Valores para captar recursos de investidores, aprimorar sua gestão e fazer parcerias com outras empresas.

A ideia foi abandonada porque a presidente logo concluiu que os problemas nos aeroportos brasileiros eram resultado da má administração da Infraero, e não da falta de dinheiro para investimentos. Com pouco tempo para consertar a situação antes da Copa de 2014, Dilma achou melhor buscar outra estratégia.

A Infraero terá obrigatoriamente 49% das ações das empresas que os vencedores do leilão irão formar para administrar os aeroportos. Mas o papel da estatal tende a ser coadjuvante. Exigir sua presença foi um expediente adotado principalmente para driblar a resistência dos petistas à privatização.

A maneira como Dilma fez suas escolhas nesse caso ajuda a entender como ela governa. As convicções ideológicas do passado importam pouco. O pragmatismo é que manda.

A prioridade da presidente é evitar que um vexame manche a imagem do Brasil na Copa do Mundo. Até lá será possível saber se seu modelo servirá para melhorar os aeroportos brasileiros, e a que custo. Os resultados certamente serão um bom assunto para a campanha de 2014.

Interesses divergentes - CARLOS AFFONSO PEREIRA DE SOUZA

O GLOBO - 06/02/12



O futuro da regulação da internet passa pela discussão do papel dos direitos autorais. As propostas em tramitação no Congresso dos EUA conhecidas pelos acrônimos Sopa e Pipa representam um direcionamento complicado desse debate, já que impõem severas restrições a outros direitos fundamentais, como a liberdade de expressão, a privacidade e o acesso à informação e ao conhecimento.

O movimento que impediu a sua iminente votação, liderado por um blecaute de importantes sites, não é menos complexo e vai além da oposição entre Hollywood e o Vale do Silício.

blecaute foi o plano B. O processo legislativo que gerou Sopa e Pipa tem na sua essência um cabo de guerra entre diversos interesses nem sempre evidentes.

Os projetos só foram levados à votação porque as empresas de tecnologia perderam o primeiro round. Restou então adotar a estratégia de comunicação dos riscos de tais leis ao funcionamento da rede, o que transformou todo internauta em um potencial ativista.

Na raiz do problema não está um maior ou menor respeito aos direitos autorais, mas formas diferentes de compreender a produção intelectual, cada vez mais apoiada em modelos colaborativos que, a partir de obras alheias, geram críticas, sátiras, "mashups" e "memes" disseminadas na internet através das redes sociais e sites de fotos e vídeos. Tais conteúdos e espaços, nos quais muitos (e especialmente as novas gerações) desenvolvem suas referências e se comunicam, dependem de um ambiente jurídico no qual se preserve a possibilidade de criação, transformação e compartilhamento.

Se aplicados os termos vagos de leis como Sopa, esses sites poderiam ser retirados do ar sem questionamentos sobre a existência de fair use ou motivações sustentadas por outros direitos fundamentais. As leis sobre direitos autorais precisam conciliar a proteção do investimento com a percepção de que a própria criação intelectual se transforma.

A pirataria e o discurso criminalizante correlato, por outro lado, prestam um desfavor à compreensão do tema ao tratar como iguais práticas radicalmente distintas, confundindo usos legítimos, como para fins educacionais, com aqueles que transformam a infração à propriedade intelectual em atividade industrial.

O debate nos EUA prosseguirá e resta saber se o blecaute terá servido apenas para elevar o poder de fogo do Vale do Silício no Congresso dos EUA ou se alguma participação da coletividade de agentes, cujos interesses divergem, mas são coincidentes no repúdio aos projetos, será aproveitada a longo prazo.

No Brasil, a discussão sobre o projeto do Marco Civil da internet, atualmente na Câmara dos Deputados, representa uma verdadeira lei "anti-Sopa". Gerado por um processo colaborativo na rede, ele aponta para outra direção no debate sobre direitos autorais. Ao contrário do Sopa, que ao tratar de direitos autorais atinge vários outros direitos, o Marco Civil dispõe sobre princípios e direitos fundamentais, criando assim o ambiente para uma regulação equilibrada do direito autoral na internet.

Da greve à urna - RENATA LO PRETE

FOLHA DE SP - 06/02/12



As forças que se organizam para disputar a Prefeitura de Salvador tentam calcular o impacto político-eleitoral da onda de violência causada pela greve da PM. De imediato, aliados e adversários apostam que o governador Jaques Wagner (PT), na berlinda, tentará reforçar a posição de seu candidato, Nelson Pelegrino (PT), negociando o apoio de partidos da base estadual. Porém alguns deles, como PP e PC do B, têm nomes lançados e resistem à ideia de retirá-los do páreo.

Pelegrino aparece em segundo lugar nas pesquisas, atrás de ACM Neto (DEM), que ainda não anunciou, mas, segundo entendimento geral, é candidatíssimo.

Para já Do senador Walter Pinheiro (PT-BA), defendendo a costura imediata de ampla aliança para sustentar Pelegrino: "Isso tem de ser feito antes do Carnaval. Em Salvador, a esquerda só ganhou quando se uniu".

Ruído Nem tudo é festa para ACM Neto. O deputado, que tenta costurar entendimento com o PMDB, busca atrair também o PSDB, de cuja direção nacional recebeu um indicativo de apoio. Ato contínuo, o deputado Jutahy Jr. afirmou que os tucanos terão candidato próprio.

Escolado Vice de Jaques Wagner, Otto Alencar (PSD) ocupava o mesmo posto em 2001, ano de outra greve famosa da PM baiana. O governador era César Borges, então pefelista e hoje no PR.

Compromissos Em conversa recente, Dilma Rousseff sugeriu a Michel Temer que ambos evitem se envolver nas disputas municipais, de modo a preservar o governo. Com a polidez habitual, o vice disse partilhar da preocupação da presidente, mas ponderou que terá de se fazer presente ao menos em São Paulo, onde o PMDB pretende lançar Gabriel Chalita.

Vamos trocar? Brincando, um cacique peemedebista dá ideia alternativa à de Dilma: "Se o PT tirar o Lula de cena, a gente tira o Temer".

Lógica Do governador Eduardo Campos (PSB-PE), sobre o reaparecimento no noticiário do escândalo de precatórios ocorrido quando seu avô governava Pernambuco e ele era secretário da Fazenda: "Como eu tenho amigos em todos os lugares, só pode ser fogo amigo".

Deixa disso Enquanto Roberto Jefferson combate o esforço de Guido Mantega para jogar a encrenca da Casa da Moeda no colo do PTB, correligionários como o senador Gim Argello (DF) e o deputado Jovair Arantes (GO) contemporizam. Este último tem dito "achar" que foi o colega Nelson Marquezelli (RS) quem sugeriu o nome de Luiz Felipe Denucci, agora demitido, para presidir o órgão.

Pela base 1 O PSDB estimula o lançamento de chapas de oposição à CUT em três dos maiores sindicatos de Minas Gerais. O objetivo é reduzir a beligerância das entidades que tiraram o sono de Antonio Anastasia no primeiro ano de governo.

Pela base 2 Estão na mira do núcleo sindical comandado por Aécio Neves o Sindágua, o Sindiletro e o Sindute -este responsável pela paralisação de 103 dias dos professores em 2011. A Força, central mais simpática ao senador, comanda a ofensiva.

Arbitragem Marco Maia (PT-RS) tem de decidir nesta semana se dá ao PSD cota de comissões correspondente ao tamanho da bancada. A norma de distribuição de cargos na Câmara remete ao total de deputados na data de posse, mas a sigla de Gilberto Kassab ameaça apelar à Justiça para comandar ao menos dois colegiados.

com FÁBIO ZAMBELI e ANDRÉIA SADI

"Agnelo Queiroz é um cínico juramentado. Se o chefe da polícia demitido era assim tão competente, então é caso de começar a preparar o camburão."

DO PRESIDENTE DO DEM, SENADOR JOSÉ AGRIPINO (RN), sobre o governador do DF, que elogiou o "bom trabalho técnico" de Onofre Moraes, exonerado após revelada gravação na qual diz que o petista deixará o cargo "num camburão".

Consultoria rápida

Durante recente reunião ministerial, Guido Mantega fazia uma exposição sobre o cenário econômico. A certa altura foi exibido slide com dados de pesquisa da OCDE mostrando que o Brasil havia conseguido crescer e distribuir renda em 2008, a despeito da crise internacional. O titular da Fazenda explicou aos colegas que havia incluído aquela informação a pedido de Dilma Rousseff.

A presidente comentou com bom humor:

-Vocês vejam só o que eu virei: agora sou assessora econômica do Mantega!

CARNAVAL NA BAHIA


Engodo coletivo - MARIA INÊS DOLCI

FOLHA DE SP - 06/02/12

A facilidade com que são aplicados golpes nas compras coletivas estimula a picaretagem


Está passando da hora de a Justiça acertar as contas com os maus sites de compras coletivas que abusam dos direitos dos consumidores. Não é possível que continuem a lograr clientes incautos, que ainda acreditam em suas fantásticas promoções, que reduziriam os preços de produtos e serviços em até 50%.

Utilizo o verbo no futuro do pretérito porque esses sites, muitas vezes, não entregam o que prometem, de um jeito ou de outro.

Um exemplo: Marco Paulo Ferreira, jornalista, 35 anos, resolveu se presentear com um voo de helicóptero, com 20 minutos de duração, sobre os principais pontos turísticos da cidade de São Paulo. Pagou R$ 150, metade do preço do serviço.

Pagou, mas não voou. Teve dificuldade de marcar um dia. Quando conseguiu, houve cancelamentos e ele desistiu. Até o contato mais recente, não havia recebido o dinheiro de volta.

Foram mais de 30 consumidores que denunciaram nas redes sociais transtornos semelhantes. Foram enrolados por atendentes da DDM Escola de Aviação & Aeronaves.

Os problemas dos consumidores são mais amplos do que não conseguir desfrutar do serviço ou receber o produto pelo qual pagaram.

É muito difícil, também, obter o ressarcimento do valor pago. Há um jogo de empurra entre os sites e os fornecedores, embora o Código de Defesa do Consumidor (CDC) seja muito claro em relação à responsabilidade solidária: "as sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste Código".

Já houve caso de consumidores que compraram passagens aéreas, não as receberam e ficaram sem o dinheiro. Não conseguiram localizar a pretensa agência de viagens responsável pela promoção.

A certeza da impunidade aumenta as chances de abusos e de infrações à lei, o que é óbvio para qualquer advogado ou juiz. Nem é preciso ter anos de experiência para saber isso.

A facilidade com que são aplicados golpes nas compras coletivas estimula a picaretagem. Um site que abriga várias empresas tem de assegurar a idoneidade delas, porque não se recebe criminosos em casa, a menos que partilhemos da conduta deles.

Quem acredita em uma oferta de desconto em um portal de vendas até pode checar se a empresa não tem reclamações por desrespeito ao consumidor. Mas isso não exime os sites de verificar se não seriam usados por golpistas.

Há uma crescente preocupação das organizações de defesa do consumidor públicas e privadas com os abusos nas compras em grupo.

No Rio de Janeiro, o governador Sérgio Cabral sancionou a lei nº 6.161, de 9 de janeiro último, que estabelece parâmetros para o comércio coletivo de produtos e de serviços por meio de sítios eletrônicos no âmbito daquele Estado.

A lei exige que as empresas que exploram esse tipo de atividade comercial mantenham serviço telefônico gratuito de atendimento ao consumidor. Também deverão divulgar, em suas páginas eletrônicas, seus endereços físicos. Determina que as ofertas tenham mais informações (por exemplo, endereço e telefone da empresa responsável pela promoção).

O artigo 7º reafirma a responsabilidade solidária: "O descumprimento do contrato, cuja compra tenha sido concluída com sucesso pelos consumidores, gerará obrigações para a empresa de compras coletivas ou para a empresa responsável pela oferta."

No dia 23 de janeiro, o Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria Pública do Rio notificou os sites que lideram o ranking de reclamações do Sistema de Informações de Defesa do Consumidor (Sindec).

É um bom começo de reação aos abusos cometidos contra os consumidores, que deveria ocorrer em âmbito nacional. Afinal, a compra virtual pode ser feita de qualquer localidade, o que aumenta a abrangência dos danos aos internautas.

Enquanto a Justiça não enquadra os falsos empresários, a saída, caros leitores, é desconfiar de ofertas fora da realidade, juntar dinheiro e adquirir produtos e serviços pelo preço real, de mercado. Pesará mais no orçamento, mas evitará dores de cabeça sem fim.

Os chineses que vêm aí - SERGIO LEO

VALOR ECONÔMICO - 06/02/12


Para quem está acostumado a ver a China apenas como o gigante manufatureiro que ameaça a indústria nacional, será uma experiência instrutiva acompanhar a reunião, nesta semana, da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível (Cosban), em Brasília, comandada, pelo lado chinês, por um dos mais influentes dirigentes do país, o vice-primeiro-ministro Wang Qishan.

De fumo a aviões, a agenda de interesses do Brasil a ser levada aos representantes chineses ultrapassa facilmente a casa do bilhão de dólares. Os brasileiros se equilibrarão entre defender as mais recentes medidas protecionistas no Brasil e demandar parceria aos asiáticos.

A Cosban, criada para garantir fôlego às conversas dos dois países e evitar que sejam abafadas pelos atritos comerciais, tem 11 subcomissões distintas, que tratam de temas como finanças, comércio, cooperação espacial, agricultura e educação. Algumas dessas comissões não conseguiram sequer se reunir, como a de cultura. Outras avançaram, como a de educação, que pode levar ao envio de estudantes brasileiros aos centros tecnológicos chineses, e a de finanças, que abençoa a cooperação entre a BM&F Bovespa com a bolsa de Xangai.

Brasil e China vão discutir um plano para orientar a relação dos dois países nos próximos dez anos, e há muito em jogo para certos setores nesses encontros de alto nível. Os produtores de fumo, por exemplo, já têm na China, que lhes comprou US$ 380 milhões em 2011, seu maior freguês, e grande investidor no país.

No ano passado, durante a viagem da presidente Dilma Rousseff, foi anunciada autorização de venda de fumo da Bahia e Alagoas ao mercado chinês. Mas a venda, mesmo, depende de análises técnicas, cuja demora será discutida agora em Brasília.

Os exportadores de carnes também enfrentam problemas com a burocracia na China. Paciência e construção de confiança são duas das exigências sempre lembradas pelos especialistas para quem se interessa em fazer negócio com o mercado mais vibrante do mundo, hoje. A Embraer poderia ministrar seminários sobre esse tema.

Depois de montar uma fábrica em sociedade com os chineses para construir lá seu EMB 145 e ser golpeada com a decisão chinesa de não mais comprar aeronaves daquele tamanho, a companhia brasileira tentou sem sucesso autorização para fazer na China seu avião de maior porte, o EMB 190, que concorreria com uma aeronave chinesa e, claro, não teve sinal verde das autoridades locais.

Durante a viagem de Dilma a Pequim, negociou-se a permissão para fabricar, lá, jatos executivos da Embraer. Mas falta a isenção de taxas para importação de componentes, o que viabilizaria a fábrica - tema para a Cosban.

Também vai se pedir aos chineses para apressar a burocracia, que retém a compra, por duas companhias chinesas de aviação, de 20 aviões 190 da Embraer, anunciada também durante a visita da presidente.

Outra multinacional brasileira, a Marcopolo, também exercita sua paciência oriental à espera de autorização chinesa para instalar fábricas numa zona especial de processamento de exportações, em Changzhou.

Na sexta-feira, Dilma reuniu seus ministros com interesses nas 11 subcomissões da Cosban, para decidir o que será prioritário e o que nem entrará nas conversas com a missão liderada por Wang Qishan, a " pessoa a quem os líderes chineses recorrem para entender os mercados e a economia global", nas palavras do ex-secretário do Tesouro americano Henry Paulson, ao comentar sua eleição como uma das cem pessoas mais influentes de 2009, pela revista "Time" (esse detalhe faz parte das instruções para a Cosban recebidas pelos integrantes do governo brasileiro). A Vale, e suas atribulações com os chineses, foi citada na reunião do Planalto.

Após investir US$ 2,35 bilhões na compra de 19 supercargueiros Valemax, 12 dos quais encomendados a um estaleiro chinês, a Vale foi golpeada com a notícia de que seus barcos de 400 mil toneladas de capacidade não teriam autorização para atracar nos portos chineses, para onde destina quase metade de suas vendas ao exterior.

Será difícil contornar o problema, justificado por preocupações ambientais e ancorado no temor dos cargueiros chineses em relação ao que consideram uma tentativa de domínio do mercado de fretes mundiais de minério.

Os chineses vêm anunciando investimentos bilionários no Brasil, e diversificaram sua área de atuação, antes concentrada em mineração, agricultura e petróleo. Pretendem fabricar carros, caminhões e motocicletas e entram pesadamente no setor de linhas de transmissão de eletricidade. É crescente a presença econômica dos chineses, que em janeiro foram momentaneamente ultrapassados como maior mercado brasileiro pelos Estados Unidos.

É ingenuidade imaginar que se pode ganhar a boa vontade dos chineses escancarando o mercado brasileiro a seus produtos baratos; mas demonizar a China e editar medidas abertamente concebidas e anunciadas para prejudicar empresas chinesas - como o recente aumento do Imposto Sobre Produtos Industrializados (IPI) para automóveis - é uma maneira também pouco madura de administrar uma parceria, que já é um fato, não uma invenção ideológica ou diplomática.

A existência da Cosban pode dar instrumentos para acordos ou aumentar a insatisfação de lado a lado, caso seja incapaz de se sobrepor ao ritmo natural das forças do mercado e ao peso dos interesses particulares em jogo.

Instalada em 2006, a Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível deveria reunir-se a cada dois anos, mas só agora faz sua segunda reunião, quando deverá avaliar o que se conseguiu no plano de metas dos dois países para 2010 a 2014. O tom da autoridades deve ser otimista. Mas as medidas concretas que anunciarem darão a medida das atuais relações entre China e Brasil.

Lições de uma tragédia - ANTONIO PENTEADO MENDONÇA

O ESTADÃO - 06/02/12


Olhar com objetividade os fatos do desabamento dos prédios no Rio de Janeiro é a melhor forma de entender o que ocorreu e evitar outros acidente semelhantes


A queda de três edifícios no centro do Rio de Janeiro abre espaço para abordagens das mais variadas sobre uma série de temas diretamente relacionados com a ocupação urbana.

Em primeiro lugar, surge a ação ou omissão dos Municípios, os únicos detentores do poder de polícia indispensável para evitar que tragédias como esta aconteçam ou, no caso, que se repitam. Todavia, conhecendo a atuação deficiente dos diferentes agentes espalhados pelos mais de cinco mil municípios brasileiros, é impossível garantir que a lição do desmoronamento dos prédios no Rio de Janeiro terá efeito prático e que outros desastres como este não ocorrerão.

Para entender o que aconteceu e o que pode ser feito para evitar que outros acidentes se transformem em tragédias, é necessário olhar os fatos com objetividade. Assim, a verdade embasada na realidade de anos e anos de acidentes semelhantes, em todas as partes do mundo,é que,num evento desta natureza, raramente há uma única causa que possa ser responsabilizada pelo desmoronamento de todo o edifício.

No caso do Rio de Janeiro especificamente, somam-se a idade do prédio onde o acidente teve início; as alterações feitas em sua estrutura, a começar pelas janelas irregulares que foram sendo abertas numa lateral que, de acordo com o projeto, deveria ser inteiramente fechada; as reformas feitas nos andares, com modificações da configuração original sem levar em conta que elas poderiam afetar o equilíbrio da construção, comprometendo a capacidade de carga, as amarrações e a resistência das colunas; a omissão da administração do próprio edifício, que ao longo dos anos foi vendo as reformas serem feitas, sem se preocupar se influiriam na segurança; e a omissão da prefeitura, que, ao que parece, não se interessou em fiscalizar o prédio, ainda que com sinais evidentes, em mais de uma ocasião, de que estava sendo reformado.

O que levou ao desabamento do Edifício Liberdade, o maior dos três edifícios, provavelmente jamais será sabido com absoluta certeza. Já a queda dos outros dois prédios não deixa dúvida. Caíram arrastados pelo primeiro. Ou seja, a causa da queda é certa e gera, consequentemente, o direito à reparação dos danos sofridos, tendo, no caso, inclusive, réu conhecido.

Não que os danos causados aos ocupantes do primeiro edifício não possam ser cobrados. Da mesma forma que não há que se afastar o eventual direito de regresso de quem arcar com as indenizações geradas pelo desmoronamento dos outros dois prédios.

De acordo com a lei brasileira, todos os danos causados a terceiros devem ser indenizados. O desmoronamento dos três edifícios causou danos de quatro naturezas: danos corporais aos mortos e feridos, danos materiais, danos patrimoniais e danos morais. Cada um deles tem regras específicas para ser dimensionado e elas estão aí para serem aplicadas ao caso concreto.Vale dizer,todos os prejudicados, todos que sofreram danos diretos ou indiretos em função do acidente, podem exigir a reparação de seus prejuízos.

Como a culpa primária pelo acidente pode não restar indiscutivelmente demonstrada, na medida em que pode haver uma série de razões que interferiram para a sua ocorrência,uma eventual ação de indenização deve levar em conta todos os potenciais responsáveis, tendo claro que,de acordo com a interpretação consumerista, o direito de ação contra a figura jurídica do Edifício Liberdade é líquida e certa, já que sua responsabilidade pelo acidente é inquestionável.

Quanto à questão do seguro,dificilmente haverá cobertura. Não que o desmoronamento de um edifício não possa ser segurado. Pode e não é uma garantia difícil de se obter. Apenas, no Brasil, não costuma ser contratada. Da mesma forma que não é comum a contratação de um seguro de responsabilidade civil com importância segurada suficiente para fazer frente aos valores das mais diferentes ordens, devidos a terceiros por conta dos danos corporais, materiais, patrimoniais e morais gerados pelo triplo desmoronamento

MARIA CRISTINA FRIAS - MERCADO ABERTO

FOLHA DE SP - 06/02/12



Medidas ajudaram empresas, mas Itália chegou ao limite, diz empresário

Franco Bernabè, presidente da Telecom Italia, grupo que detém a TIM, a segunda maior operadora no Brasil, onde conta com 59 milhões de clientes, afirma que as medidas tomadas pelo governo Mario Monti beneficiaram o empresariado italiano, mas "a Itália chegou ao limite".

Impedido de falar sobre planos para o Brasil, dada a proximidade da divulgação de resultados, Bernabè expressou a hoje comum insatisfação na Europa fora da Alemanha contra a liderança da premiê Angela Merkel.

A seguir, trechos da entrevista feita na sede da companhia, em Roma.

A liderança europeia não deu as respostas certas e no tempo certo de que a crise é de débito. A Itália é o país que deu respostas mais oportunas ao nomear um governo de grande autoridade, com Monti, uma das pessoas mais respeitadas na Europa. Conseguiu fazer reformas que, em outras países, teriam gerado instabilidade social fortíssima. De uma noite para a outra, Monti retardou a aposentadoria para a idade de 65 anos. A saída de Berlusconi foi muito positiva inclusive para o confronto de países. Ele criou uma enorme desilusão porque dizia que problemas não existiam, que a Itália era fortíssima.

Mas Monti só pode resolver os problemas da Itália se houver uma liderança europeia responsável. Falta um Banco Central Europeu (BCE) real. Todos os BCs, diante de uma crise de liquidez emitem moeda para reagir aos riscos de iliquidez e de "default". O BCE não tem instrumentos. O Fundo de Estabilidade é um substituto do que deveria ser. A união fiscal é impossível. Talvez, no longo prazo.

Alemanha
A Alemanha fez reformas importantes que permitiram crescimento, mas se beneficiou enormemente do euro porque teve durante anos uma moeda mais fraca do que o marco. A sra. Merkel erra ao dizer que não quer pagar os custos da falta de austeridade fiscal alheia e compromete gravemente as relações com outros países. A Alemanha tem sido pouco generosa com o resto da Europa porque no século passado faliu quatro vezes. Quando declarou insolvência em 1948, os EUA, em vez de exigirem extraordinária austeridade fiscal, fizeram o Plano Marshall, permitiram que ela se recuperasse. A economia mundial cresce mais graças à generosidade do que ao rigor fiscal. Seria diferente se eles tivesse feito a Alemanha pagar pelo nazismo e as duas guerras que fez. A sra. Merkel deve pensar que a Alemanha é o que é graças aos EUA e às potências vencedoras. Há hoje uma forte reação antialemã.

A Merkel já mandou para casa Berlusconi, provavelmente mandará também Sarkozy, e provocou uma meia revolução na Grécia. Não contam apenas as suas eleições na Alemanha, mas o equilíbrio na Europa. Todos devem colocar as contas em ordem, mas a Alemanha está criando um sofrimento grave e inútil. A Itália tem deficit fiscal menor do que a Alemanha, ainda que dívida maior. A experiência da Grécia é dolorosíssima. Há quatro anos faz política restritiva e o PIB será 20% mais baixo em 2012 do que há quatro anos.

Medidas e o empresariado
As medidas tomadas por Monti foram favoráveis às empresas: incentivam reinvestimento dos lucros e reduzem o imposto sobre o trabalho. Os empresários não querem outras medidas. A Itália chegou ao limite. Pode-se criar uma crise social. É hora de medir as medidas.

Vida sem crédito
O mercado interbancário desapareceu. Os bancos pegam recursos do BCE e os depositam no BCE. O dinheiro foi colocado à disposição, mas não circula. Estamos em típica armadilha de liquidez keynesiana. É o mesmo debate de como pagar pela Guerra. Depois de 80 anos, ele nada ensinou aos políticos europeus. Sou otimista. Os EUA estavam piores que a Europa, mas têm a febre que imprime dólares e os consumidores falidos gastam e estão felizes. Os europeus são muito mais propensos à flagelação.

Teles na Europa
Nos EUA e na Ásia, o mercado é muito mais concentrado. Há centenas de empresas em operação na Europa e forte concorrência, o que enfraquece empresas europeias. Investimos em fibra ótica no Brasil, no ano passado, antes que na Itália.

"A Alemanha tem sido pouco generosa com o resto da Europa porque no século passado faliu quatro vezes. Em 1948, os EUA, em vez de exigirem extraordinária austeridade fiscal, permitiram que se recuperasse. A sra. Merkel deve pensar que a Alemanha é o que é graças aos EUA e às potências vencedoras"

HOTELARIA MINEIRA
A Accor e o grupo Maio/Paranasa anunciam hoje a construção de um empreendimento com dois hotéis em Belo Horizonte (MG).

O investimento será de cerca de R$ 140 milhões.

As obras do projeto, que terá 444 apartamentos, devem começar no final deste semestre, segundo Felipe Boni, da Accor. "A inauguração está programada para o primeiro trimestre de 2014", diz.

Será o oitavo empreendimento realizado em parcerias entre os dois grupos.

Em 2010, foi regulamentada na cidade uma lei que flexibiliza a altura máxima dos hotéis e permite que a construção ocupe uma parcela maior dos terrenos.

Até 2014, a Accor dobrará o número de hotéis com suas bandeiras na capital mineiras e chegará a 12 unidades.

"Toda a iniciativa que vise diminuir a burocracia e incentivar o setor é bem-vinda."

SAQUE INDIANO
Após vender 2.000 caixas eletrônicos para a Índia, a brasileira Perto, fabricante do produto, prepara-se para instalar fábrica no país asiático.

O investimento será de US$ 35 milhões (cerca de R$ 60 milhões) e a expectativa é que a unidade comece a produzir em dois anos.

"A Índia é um mercado enorme e com nível de automatização bancária baixo se comparado com o Brasil", diz o presidente da empresa, Thomas Elbling.

A planta deverá fabricar entre 500 e 800 caixas eletrônicos por mês para o mercado interno e para países vizinhos.

A companhia ainda estuda cidades potenciais do país e seus incentivos ficais para decidir onde irá se instalar. O anúncio do local escolhido será feito até junho.

Neste mês, a empresa começa as obras de ampliação de sua fábrica no Rio Grande do Sul. Serão investidos R$ 35 milhões para aumentar a produção mensal de 800 terminais para 1.400 unidades.

com JOANA CUNHA, VITOR SION e LUCIANA DYNIEWICZ