domingo, dezembro 02, 2012

O Papai Noel e os bicos - DAVID COIMBRA

ZERO HORA - 02/12


No coração galopante da cidade, na Praça 15, tem a casinha do Papai Noel. O Papai Noel fica sentado sob a porta de entrada, esperando as crianças atrás da sua pança. Ao lado dele há duas grandes urnas de acrílico. Uma com cartas endereçadas, exatamente, ao Papai Noel, o que é uma contradição. Afinal, o Bom Velhinho está ali, em barba e osso, pode ouvir pessoalmente as reinvindicações das crianças. Por que fazê-las também por carta? Vai ver é a necessidade cartorial que o brasileiro tem de documentar tudo, de deixar o passado imortalizado em papel. Sei lá.

Seja.

O que me interessou mesmo foi a outra urna. A dos bicos. Ou chupetas, como você preferir. Havia uns cem bicos na urna. Fiquei olhando para eles. Imaginei as criancinhas que, diante do Papai Noel e suas promessas de mimos no Natal que se avizinha, puxavam o bico de entre os dentes e o abandonavam para sempre. O menininho de mão com a mãe, fitando seu bico na urna pela última vez. Pela última vez...

Foi comovente.

Dentro daquela urna estavam cem símbolos da dor da vida humana neste Vale de Lágrimas. Cem símbolos de renúncia, de passagem de fase, do prazer abdicado em nome do amadurecimento.

Cem menininhos e menininhas deixaram lá seus bicos e, com eles, um pedaço da primeira infância. Por que, meu Deus? Por quê?

A renúncia

O meu guri está passando exatamente por esse drama. Tem cinco anos de idade e ainda chupa bico. Já devia tê-lo largado, ele sabe disso, todos dizem isso para ele. Mas ele não consegue. Foi o que me disse dia desses, sentado no colchão da sua cama, os pés balançando:

– Acho que não vou conseguir largar o bico, papai...

E suspirou.

Suspirei também. E depois falei:

– Já larguei vários bicos nessa vida, meu filho – novo suspiro. – É duro, é dolorido, mas a gente acaba largando...

Dia da decisão

A chegada do Natal está deixando meu filho aflito. Ele ouviu dizer que Papai Noel reivindica bicos em troca de presentes, e agora passa os dias especulando:

– Acho que ele não vai ter tempo para pedir meu bico, não é, papai? Ele tem muitas crianças para atender, tem que sair correndo com aquelas renas...

– E se eu desse meu bico para o Coelhinho da Páscoa? Acho que o Coelhinho também gosta de pegar bicos...

– Mas, afinal, o que é que o Papai Noel faz com todos esses bicos lá no Polo Norte?

– É. Acho que não vou conseguir mesmo. Melhor deixar o meu trenzinho com o Papai Noel...

Cachoeira do Sul

Não foi no Rio o melhor Carnaval da minha vida, e olha que já passei Carnaval no Rio em meio a todo o telecoteco-borogodó, e até saí atrás da Império Serrano na Sapucaí naquele ano do bumbum-paticumbum-prugurundum. Nem foi em Floripa, e isso que já estive na Praia Brava, no Bar do Pirata, trinchando torpedinhos de siri. Nem em qualquer fio paradisíaco da franja do Atlântico. Nada disso. Os melhores carnavais da minha vida os desfrutei em Cachoeira do Sul.

Cachoeira do Sul, imagine

Cachoeira está engastada bem no centro do Rio Grande do Sul. Talvez por isso tenha um pouco de cada palmo do Estado. Às vezes, Cachoeira mostra a franqueza ingênua da Fronteira Oeste. O meu amigo Meia (de “Zé Colmeia”) parece um fronteiriço, embora viva a vida inteira em Cachoeira. Lembro que o Meia dizia:

– Escrever eu escrevo, o que não sei é acolherar as letras.

Não é uma frase da Fronteira?

Já o meu amigo Sérgio Lüdtke, que foi quem me levou para Cachoeira, o Sérgio é o típico descendente de alemão – destemido comedor de embutidos, sedento bebedor de chopes, tão ordeiro quanto festeiro, qualidades germânicas que não são excludentes. O apartamento que o Sérgio dividia com outros três cachoeirenses aqui na Praia de Belas era um lugar sempre... movimentado. Uma noite, saímos para a esbórnia e o irmão do Sérgio, o Café (de “Carlos Fernando”) desapareceu.

Voltamos para o apartamento e ele não estava lá. Quando acordamos, estava. Dormia no carpete da sala com um pé de sapato de mulher sobre o peito. Era um sapato bonito, um escarpim, de salto alto e fino. Um único pé. O que fazia no peito do Café, ele nunca soube explicar.

O certo é que o Café, como o Sérgio e todos os demais cachoeirenses, exceto um, todos adoravam uma festa. Assim, o Carnaval de Cachoeira era incomparável. Nós tínhamos um bloco, o Ala-la-ô, que nunca foi campeão, suponho que por causa da energia despendida no chamado “esquento”.

Quando chegava a hora da apresentação nos clubes, estávamos, por assim dizer, dispersos. Perdemos troféus, mas as lembranças guardamos. Nossas lembranças são os nossos títulos.

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