domingo, novembro 04, 2012

Antes da tempestade - LEE SIEGEL


O Estado de S.Paulo - 04\11


Isto não deveria acontecer. Estou escrevendo minha coluna no começo da semana, tentando terminá-la antes de o furacão Sandy cortar a eletricidade. Se as previsões do tempo estiverem corretas, tenho cinco ou seis horas antes de ventos de 140 quilômetros por hora derrubarem árvores e as atirarem sobre os postes e fios da rede elétrica. Tempestades como esta simplesmente não ocorrem em minha parte do país. Se o Sandy se revelar tão terrível como os especialistas preveem, teremos um tempo que não se viu igual por aqui em quase 100 anos.

Fomos apanhados de surpresa. Foi uma correria no fim de semana - estou escrevendo este texto na segunda-feira, 29 de outubro - para comprar uma lanterna (os garotos perderam ou quebraram as que tínhamos) e fazer um estoque de comida enlatada e água engarrafada. Meu maior medo é que os ventos fortes arrebentem a grande janela de vidro na sala de visitas, deixando a água entrar na casa. Nem seria preciso dizer, a mais fervorosa esperança de meu filho de 6 anos é que os ventos fortes arrebentem a grande janela de vidro da sala de visitas, criando um espetáculo aterrador de desastre. A bem da verdade, depois do que ele e sua irmã de 2 anos fizeram com os móveis, um furacão na casa é quase redundante.

O momento é estranho. Enquanto a gigantesca tempestade faz seu lento e tortuoso percurso rumo à Costa Leste, e os ventos sopram lá fora e a chuva começa a fustigar as janelas, outro evento inesperado está se passando. Mitt Romney está fazendo seu lento e tortuoso percurso rumo à Presidência. O candidato, que já foi motivo de chacota tanto para liberais como para conservadores, está empatado com o presidente e ganhando de Obama nos Estados indecisos que decidirão a eleição.

Do lado de fora de minha janela, folhas douradas e escarlates rodopiam na rua escurecida. O vento amainou. A chuva parou. Paira sobre tudo uma estranha calma, cativante e ameaçadora. A sensação de ficar suspenso no espaço e no tempo me deixa irritado.

O prefeito Michael Bloomberg ordenou a retirada de suas casas de quase 400 mil pessoas que vivem na costa ou ao longo de rios em Nova York. Linhas de metrô foram fechadas. Os trens que ligam a cidade aos subúrbios deixaram de funcionar. E, no entanto, dias antes de a mãe natureza fazer a cidade se recolher, a cidade havia sido traumatizada pela natureza humana. No Upper West Side, uma mãe trabalhadora voltou para casa e encontrou seus dois filhos mortos, esfaqueados pela babá, que sobreviveu à sua tentativa de cortar a própria garganta após ter cometido os assassinatos. O fato é inenarrável. É inimaginável. Ninguém sabe o que fez a babá surtar. Ela havia tido alguns problemas de dinheiro, mas estaria, segundo disseram, em excelentes termos com a família que destruiu.

Agora, mães de todo o país vivem aterrorizadas. As mulheres devem poder seguir suas carreiras e vocações com segurança. A pessoa em quem você confia seus filhos deve, supostamente, protegê-los. Referências, pesquisa de antecedentes, intuição, tudo isso garante que você encontrou uma pessoa confiável. Os guardiães supostamente não devem se voltar contra aqueles a quem guardam, especialmente inocentes vulneráveis como as crianças. O fato impensável no Upper West Side não deveria ocorrer. Babás deveriam ser tão confiáveis quanto a polícia.

E então, um choque: um policial de Nova York, Gilberto Valle, lotado no Upper West Side, foi acusado de canibalismo. As autoridades descobriram um arquivo em seu computador intitulado Sequestrar e Cozinhar, no qual detalhava seus planos para sequestrar, cozinhar e comer mulheres. "Cozinhe-a em fogo brando, mantenha-a viva o máximo de tempo possível", ele escreveu a alguém que as autoridades descrevem como um coparticipante da conspiração. A advogada de Valle alega que seu cliente estava apenas se entregando a algumas fantasias doentias, mas isso parece improvável. A procuradora federal encarregada do caso contra Valle diz ter provas de que ele usou uma viatura policial para seguir uma mulher, e, de fato, a abordou em um ponto "de maneira intimidadora".

"Quis custodier ipsos custodes?", perguntou o poeta romano Juvenal. "Quem guardará os próprios guardiães?" À medida que as pessoas parecem recuar cada vez mais para as zonas psíquicas internas privadas, e fragmentadas, e a sociedade parece cada vez menos capaz de regular comportamentos aberrantes, o que acontecerá com os indivíduos a quem confiamos nossas vidas - a quem conseguiremos recorrer se não a babás, a policiais, ao próprio presidente americano?

O vento engrossou e a chuva está começando a ficar novamente torrencial. Dizem que a confluência de uma frente fria vinda do Oeste com os vapores das águas quentes do Sul trazidos pelo furacão e a Lua cheia, que aumentará as marés, criará uma tempestade monstruosa, transfigurando um outono radiante - uma estação em cuja beleza inspiradora de devaneios se pode confiar - num vórtice devastador. Isso não deveria acontecer. Mas está ocorrendo.

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