domingo, outubro 14, 2012

Decoro desnecessário - LEE SIEGEL


O Estado de S.Paulo - 14/10


Há uma expressão americana vinda do mundo do boxe: "nas cordas". É quando um lutador encurrala o outro nas cordas com uma sucessão rápida de golpes, diminuindo o espaço do ringue e socando, socando até que seu adversário caia ou o árbitro os separem. Na noite de quinta, Joe Biden jogou Paul Ryan nas cordas com uma sucessão de golpes - na forma da dedução de juros de hipotecas.

Reconheço que dedução de juros de hipotecas não soa excitante. Falta a ela a intensidade dramática de outros temas que estão guiando essa campanha: desemprego, a perda de casas, o problema de um Irã nuclear, o destino do Medicare, o destino da legalização do aborto. Mas a dedução de juros de hipotecas é o fio que, se continuar a ser puxado pelos democratas, vai desmascarar a campanha Romney-Ryan.

Assim como o aborto é um tema volátil na América, porque simboliza os próprios limites do prazer, as deduções nos juros de hipotecas ecoam muito mais do que simplesmente a possibilidade de receber de volta parte dos juros que você paga anualmente por conta de um empréstimo. A dedução dos juros de hipotecas tem a ver com a própria natureza do capitalismo americano.

Rapidamente: se você tem, digamos, uma hipoteca a ser paga ao longo de 30 anos, então de 80% a 90% dos pagamentos feitos nos primeiros dez anos vão não para a dívida principal, mas para os juros que incindem sobre ela. Mesmo com as baixas taxas atuais, e mesmo no que diz respeito a padrões medievais, isso é usurário. Mas ninguém neste país vai falar em público sobre as taxas excruciantes de juros em empréstimos de moradia. Desde o colapso da indústria imobiliária em 2008, você ouve muito sobre como os abstratos e especulativos mercados derivados causaram a liquefação desse setor. O que você não ouve é a simples verdade de que as pessoas que acertaram hipotecas, e não puderam pagá-las, não puderam pagá-las porque hipotecas têm taxas usurárias de juros.

Os bancos ajudam a criar riqueza, são um motor essencial na condução da economia. Sem o dínamo dos bancos modernos, a democracia moderna não existiria. Vida longa aos banqueiros razoáveis, equilibrados, responsáveis socialmente! Eu me lembro de visitar a Espanha não muito depois de ela se tornar uma democracia e de ver um novo banco em cada esquina, como sentinelas da liberdade. Mas bancos e indústrias adjacentes, como a dos cartões de crédito, têm operado por décadas quase sem controle. Foi um democrata, Bill Clinton, que transformou em lei a revogação de importantes seções do Ato Glass-Steagall, removendo o muro entre transações bancárias e comerciais - e ajudando a causar o desastre financeiro de 2008. Foi um democrata, Joe Biden, que votou - ao lado de muitos outros democratas - a favor de tornar mais complicado declarar falência, agradando às companhias de cartão de crédito cujas taxas exorbitantes de juros deixaram os americanos sufocados em dívidas.

Há argumentos contra a dedução dos juros de hipoteca, mas eu não vou chateá-los com eles porque estão todos equivocados. Permitir que as pessoas peguem de volta o que significa apenas uma fração daquilo que pagaram em termos de juros usurários para seus bancos é permitir que a classe média mantenha a cabeça acima do nível da água. Críticos da lei dizem: "Vejam os países que não permitem a dedução". Mas países como França e Alemanha têm outras políticas sociais que impedem as pessoas de escorregar pelas rachaduras do sistema. Ao contrário da América, por exemplo, eles garantem que seus cidadãos tenham acesso a saúde. Com os poucos milhares extras que ganham por ano com a dedução, donos de casas da classe média mal conseguem pagar por crescentes franquias de seguros de saúde.

A narrativa, agora, é de que o combate de quinta à noite entre Biden e Ryan foi um combate entre gerações, uma vez que Biden tem cerca de 30 anos mais do que Ryan. Isso é um absurdo. Em termos geracionais, estas eleições sempre foram entre um grupo de principalmente brancos que estão envelhecendo, que odeiam Obama e prefeririam ver um Golden Retriever na Casa Branca a um presidente jovem e negro, e jovens americanos que estão preocupados com a possibilidade dos republicanos tirarem deles a Previdência Social e o Medicare a que terão direito quando envelhecerem. Ryan pode ter apenas 42 anos, mas nasceu já na meia-idade e, a esta altura, já passou dos 100 em termos emocionais, apesar de que sem uma gota da sabedoria e humanidade que acompanham a idade. Biden, por outro lado, pode estar perto dos 70 anos, mas está repleto de coração, de vitalidade emocional.

Ainda assim, na noite de quinta, ele se deixou constranger pelo ridículo senso de decoro dos liberais, com medo de que soar agressivo demais possa afastar eleitores. Este é um erro de cálculo trágico. O país é viciado em filmes e shows de TV violentos, pelo amor de Deus! As pessoas adoram o espetáculo da agressão virtuosa. Quando Biden desafiou Ryan diretamente a responder se uma presidência Romney eliminaria a dedução dos juros de hipotecas - ou seja, jogar a classe média no chão e chutá-la na cara -, Ryan ignorou a questão. O durão Biden repetiu a pergunta, e eu comecei a torcer tão alto que acordei meu filho de 6 anos de idade, que saiu de seu quarto esfregando os olhos e me perguntando como "Ron Paul" estava se saindo. (Ele sempre confunde Ron Paul com Paul Ryan). Ryan ignorou a pergunta novamente e naquele instante Biden deveria ter acertado o soco do nocaute, perguntando diretamente qual será o futuro das deduções se Romney for eleito, mas... Biden deixou passar, e o debate continuou.

Para irritação de minha mulher, eu mostrei a meu filho como se dá um devastador uppercut no queixo e o levei de volta para seu quarto. E então fui dormir, sonhando com FDR e Oscar de la Hoya.

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