sábado, agosto 04, 2012

Vinte anos: 1992-2012 - MIGUEL REALE JÚNIOR


O Estado de S.Paulo - 03/08


Em agosto de 1992 dava-se início ao pedido de impeachment do presidente Fernando Collor de Mello. Neste mês de agosto começa o julgamento do mensalão. Há alguma semelhança entre os dois acontecimentos.

Com Collor presidente, tratou-se a República como coisa própria. Arrecadaram-se fundos, por via de ameaças de PC Farias aos prestadores de serviços à administração. Parte desses recursos era depositada na conta da secretária particular do presidente, que pagava suas contas pessoais. A moralidade político-administrativa foi gravemente afrontada.

No mensalão não houve apropriação de numerário por pessoas do núcleo do governo. Mas se feriu, também, gravemente a República, com o uso de verbas para a compra de votos de deputados mediante a entrega de envelopes recheados em hotéis de Brasília. Desfez-se a democracia pelo desvirtuamento das relações do governo com o Legislativo, do qual parcela era cooptada graças ao vil metal. Montava-se maioria sem compartilhar poder. As dádivas nada tinham que ver com recursos de campanha, mesmo porque ocorriam em momentos distantes dos pleitos eleitorais, mas sempre às vésperas de votações importantes na Câmara dos Deputados. Fez-se tábula rasa da moralidade político-administrativa.

Participei dos dois momentos lembrados: do impeachment de Collor, como um dos autores da petição apresentada pelos presidentes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e da Associação Brasileira de Imprensa (ABI); do mensalão não como advogado, visto, de plano, ter rejeitado atuar no caso, e sim por haver sido coordenador do movimento Da Indignação à Ação, de apoio à CPI.

O impeachment de Collor começou por iniciativa de alguns advogados: José Carlos Dias, Dalmo Dallari, Fábio Comparato, Flávio Flores da Cunha Bierrenbach, René Ariel Dotti e eu - que nos reunimos na casa de José Carlos Dias em meados de julho de 92. René Dotti fez o primeiro esboço relativo aos fatos. Comparato escreveu a parte referente aos conceitos de decoro e de dignidade próprios do cargo público que haviam sido feridos.

Em 16 de agosto, domingo para o qual Collor convocara os brasileiros a saírem às ruas com as cores da Bandeira e todos surgiram de preto, Márcio Thomaz Bastos e eu fomos a Brasília a convite da CPI para auxiliar na elaboração do relatório final. Coube-me fazer a análise das provas e da Operação Uruguai, pela qual se pretendia justificar os depósitos feitos à secretária do presidente. Em entrevista ao jornal O Globo, referi, à vista dos dados da CPI: "A Casa da Dinda (residência de Collor) não se explica sem PC Farias e este não se explica sem a Casa da Dinda".

De volta a São Paulo, com cópia de parte essencial da CPI e do inquérito existente na Polícia Federal, trabalhei na consolidação dos textos de René Dotti e de Fábio Comparato, bem como da petição proposta pelo ministro Evandro Lins e Silva em nome da ABI. Especifiquei no pedido de impeachment fatos que as provas coligidas permitiam detalhar. Em 27 de agosto, no apartamento de Márcio Thomaz Bastos, o grupo inicial e mais outros advogados examinaram o texto final a ser submetido aos presidentes da OAB, Marcello Lavenère, e da ABI, Barbosa Lima Sobrinho.

Do pedido de impeachment constava, em face de resistências possíveis de Collor, o alerta: "As praças públicas tomadas de cidadãos indignados são a demonstração da perda de dignidade para o exercício do cargo de presidente". Mais adiante se frisava que o afastamento do presidente se patenteava como medida de saneamento político e administrativo dentro do estrito quadro constitucional.

Collor tentou, por meio de seus escudeiros, formadores do grupo denominado "esquadrão da morte", constranger os julgadores, deputados e senadores, durante o processo de impeachment, buscando, de toda forma, cooptar apoios no Congresso, em confronto com a espontânea manifestação dos "caras-pintadas". A tentativa frustrou-se.

Agora, diante da hipótese de eventual condenação de mensaleiros, pretendeu a CUT mobilizar filiados em prol da absolvição, exercendo pressão sobre os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Na proximidade do julgamento montou-se campanha de desmoralização do Judiciário e da imprensa, divulgando-se, sem pejo, ser o mensalão um golpe dos meios de comunicação. Em face dessa estratégia comprometedora das instituições, há a manifestação clara do procurador-geral da República no sentido de os fatos serem os mais graves de nossa História.

O movimento Da Indignação à Ação, de 2005 - que congregava entidades como o Ministério Público Democrático, a Associação dos Advogados de São Paulo, a Associação dos Funcionários Públicos de SP, o Centro Acadêmico XI de Agosto, o Instituto dos Advogados de São Paulo, a OAB-SP e o PNBE -, proclamava não só apoio à CPI e ao seu relator, deputado Osmar Serraglio, mas também a necessidade do efetivo julgamento dos fatos agora objeto de decisão no STF.

O manifesto do movimento insistia: "É imprescindível uma investigação séria, irrestrita e corajosa, pelo Legislativo, pelo Executivo e pelo Ministério Público, completando até o fim o esforço que se iniciou". Destacava a necessidade de uma reconstrução republicana, apenas possível graças a um julgamento isento de pressões dos acusados e de seus amigos, para brotar uma decisão livre de vícios e de conchavos.

É essencial, portanto, reafirmar o respeito ao STF contra qualquer ameaça velada ou explícita aos julgadores, em escritórios ou praças, visando a impor à força a absolvição. É a hora de a sociedade civil mostrar-se vigilante para garantir que os Poderes da República sigam independentes. Espera-se que se frustre, passados 20 anos, outra tentativa de constranger julgadores de fatos relevantes da tumultuada vida política brasileira. Este julgamento constituirá um marco definidor da liberdade de decidir da Suprema Corte.

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