domingo, agosto 19, 2012

Gestores de crises - GAUDÊNCIO TORQUATO


O Estado de S.Paulo - 19/08



No momento em que a comunidade nacional começa a ouvir a expressão e a receber os abraços de 478.846 candidatos (31.088 a prefeito e vice e 447.758 a vereador), a pergunta se faz oportuna: o pleito municipal poderá ser o canal para jorrar água limpa na fisionomia de nossa política? Como se sabe, seus dutos irrigam a base do edifício de nossa democracia representativa. A resposta à pergunta comporta a análise de algumas variáveis, a começar da condição que cerca a grande maioria dos 5.565 municípios, que recebem pouco mais que 15% do bolo tributário. A sofrível situação econômica das localidades mostra que de seu mato não sairá coelho. Ou seja, governantes de pires na mão, por mais hábeis que sejam na arte da prestidigitação, não conseguirão puxar o eixo da renovação, principalmente quando se sabe que esse "empreendimento milagroso" carece do esforço de todos os que se locomovem na roda da política.

Comprimidos por demandas crescentes, sob a teia do endividamento dos entes federativos, os alcaides estão conscientes de que seu papel é tentar que as comunidades consigam sobreviver ao caos que assola os municípios. A cada ciclo político-eleitoral se escancara a hipótese: o fator econômico dita a condição da política, sendo responsável, aqui e alhures, pelo conjunto de mudanças na estampa do Estado contemporâneo. A escassez de recursos propicia o aparecimento de figurantes menos populistas. A paisagem contém novos sinais. Os governantes hoje são mais suscetíveis aos humores e rumores da política, sujeitando-se todo o tempo ao escrutínio das populações; os tempos de transparência exigem deles compromisso com a verdade; as comunidades clamam por soluções de curto prazo; o discurso com a abordagem de "preparar o amanhã", "construir a Pátria para nossos filhos e netos" dá vez à expressão "o futuro é agora"; a interlocução de líderes e liderados, antes de cima para baixo, hoje se dá unilateralmente, em função da interatividade e horizontalidade proporcionadas pelas redes sociais; no lugar de heróis da Pátria que "vendiam" esperança e felicidade, agora surgem gestores, devidamente paramentados em fatiotas de talhe econômico, que focam sua "venda" em artigos de primeira necessidade.

Como se aduz, novos paradigmas iluminam a política, acarretando mudanças de forma e fundo. Seus mecanismos clássicos - ideologias, partidos, Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, grupos da situação e oposição - abrigam novas dimensões. Alguns, como os Parlamentos, entram em declínio; outros, como os Poderes Executivos, aglutinam forças ou, como o Judiciário, se tornam mais abertos. O arrefecimento dos particularismos doutrinários e de clivagens partidárias do passado, centradas no antagonismo de classes, cede lugar ao personalismo e à multipolaridade da ação política. Esse fato explica a multiplicação de novos circuitos de representação - as entidades que promovem a intermediação de grupos organizados - e a prevalência de fulanos, beltranos e sicranos sobre os partidos que os acolhem. Basta conferir as siglas que acolhem os candidatos a prefeito. Poucos eleitores acertarão, principalmente os nomes conhecidos nas grandes cidades. Mudou também o espaço da política. O território agora é o das questões locais, provenientes de categorias e núcleos especializados. A micropolítica expande-se, gerando uma onda de específicas demandas.

A engrenagem política, que agora só funciona com parafusos econômicos bem azeitados, modela a feição dos atores. Os palcos da governança recebem personagens não tão afeitos às artes e técnicas do discurso, como os protagonistas de ontem. A tipologia passa a juntar perfis de roupagem técnica, indivíduos com noções básicas de administração, finanças, gestão pública. Os populistas não saíram por completo da paisagem, vale lembrar, até porque as tintas da velha política demoram a desbotar. Mas o painel da administração pública, a partir do Executivo municipal, já sinaliza alteração no modus operandi. A propósito, o símbolo mais expressivo da nova fisionomia de governança entre nós é a presidente Dilma. Perfil técnico, aprecia instrumentos de planejamento e controle e é experimentada na arte de cobrar. Prefere o discurso econômico ao político. Sente-se confortável como supergerente de obras, como se afere pelos pacotes que anuncia, o último deles, de R$ 133 bilhões, para alavancar a economia e reequipar a infraestrutura de transportes.

Lá fora o tom também sai da partitura econômica. Nos EUA as expressões dos candidatos democrata, Barack Obama, e republicano, Mitt Romney, impregnam-se de economês, ambos discorrendo sobre políticas fiscais e monetárias, a gigantesca dívida norte-americana, os programas de assistência médica, os gastos militares. Isso explica a escolha do candidato a vice na chapa de Romney, o deputado conservador Paul Ryan, rígido defensor de ajuste nas contas públicas e da redução do Estado na economia. Na Europa, a orquestra política só ensaia cantos econômicos. A Alemanha sente os efeitos da crise e reduz exportações. A Espanha aguarda com expectativa o dinheiro prometido para reforçar o caixa de seus bancos. A China começa a desacelerar os eixos da economia. Nações poderosas e portentosas sofrem as agruras de uma crise que corrói suas entranhas e ameaça paralisar programas sociais de vulto. Nesse quadro de extrema escassez, fenece a imagem do político tradicional e ascende a figura do administrador público.

Sob essa intrincada teia de fios econômicos, o Brasil escolherá em outubro seus prefeitos, ou melhor, seus gestores de crise. Termo que, na acepção grega, aponta para conjuntura perigosa, momento decisivo. E, no ideograma japonês, indica o campo das oportunidades, podendo, portanto, significar expansão, inovação, aperfeiçoamento. Que assim seja!

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