sábado, agosto 04, 2012

Assunto incontornável - SÉRGIO TELLES


O Estado de S.Paulo - 04/08


Esta semana, o julgamento do mensalão pelo STF é assunto que se impõe de forma incontornável. Acontecimento que traçará rumos para nosso futuro, o que for definido ali mostrará se nossas instituições estão estabilizadas, com os três poderes agindo de forma independente, ou se continuamos um país atrasado, a encenar lamentáveis simulacros de democracia, impossibilitado de exercê-la plenamente.

Alguns não gostam quando se aponta para a divisão entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, preferindo esconder a disparidade com tranquilizadores eufemismos. Mas é somente reconhecendo a diferença que podemos superá-la. Ufanismos patrióticos baratos e ingênuos são incutidos na população desinformada para proveito dos predadores que ocupam o poder.

Os mais pessimistas - ou realistas? - acreditam que no julgamento vencerá a tese apregoada por Lula e adotada pelo PT. Como se sabe, o ex-presidente, ao se defrontar inicialmente com as denúncias, pediu desculpas à nação e, alegando nada saber, como sempre fazia, se disse "traído". Ao constatar que a tormenta não o derrubara, esqueceu-se do que havia dito e passou a afirmar que o mensalão não acontecera, tudo não teria passado de uma maquinação golpista das "elites", difundida pela imprensa "burguesa e venal".

Para o comum dos mortais, a negação de uma realidade incômoda e sua substituição por uma versão mais conveniente é entendida como uma mentira, produto de deliberada má-fé visando a enganar o outro, ou como sintoma de determinadas patologias mentais, como a mitomania ou o delírio, que criam realidades paralelas, distantes dos acontecimentos objetivos. Mas não é assim com os políticos. Para eles, essa é uma prática corriqueira, usual especialmente nos regimes totalitários. Ela se aproxima do antigo e resistente conceito de "soberania", usado pelo poder sempre que quer impedir a discussão ou a crítica das indefensáveis arbitrariedades ou ilegalidades de seus atos. De certa forma, a veterana "soberania" é o oposto da moderna "accountability", exigência por parte da sociedade de prestação de contas daqueles que foram colocados em posição de poder. Derrida diz que a "soberania" não deveria ser defendida ou praticada e sim analisada ou desconstruída, pois assim se revela seu caráter narcísico e onipotente, que induz a danosas consequências.

No fim do julgamento do mensalão, terá sido dado um passo decisivo em nossa história. Por isso, há uma grande expectativa no ar. E um temor.

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A foto em que James Holmes aparece com os cabelos tingidos de cor laranja, com o olhar perdido e melancólico, é a própria ilustração da loucura, da perda de identidade, da fragmentação do ego, da eclosão da psicose. Ali está exposto seu lado frágil e desamparado, contraparte de sua delirante identificação com o poderoso Coringa, arqui-inimigo de Batman capaz de exercer um terrível morticínio em Aurora, no Colorado.

Quando ocorre um crime dessa magnitude, os especialistas esmiúçam a vida do assassino, no intuito de estabelecer hipóteses sobre as causas de seu comportamento aberrante. Muitas vezes fica patente que os assassinos são provenientes de famílias profundamente disfuncionais, onde sofreram marcantes traumas. A constatação de que muitos passam por privações semelhantes sem desenvolver comportamentos homicidas apontaria para a existência de outros fatores determinantes. Mesmo assim, o regular aparecimento desses dados confirma a importância dos fatores ambientais (família, relações primárias constitutivas do sujeito) que potencializam ou neutralizam tendências genéticas.

Ao contrário do senso comum, que atribui ao crime cometido a culpa sentida pelo criminoso, Freud mostra que a culpa precede e motiva o crime cometido. Atormentado por um inexplicável sentimento de culpa decorrente de conflitos inconscientes, o sujeito termina por praticar um crime para receber a desejada punição que aliviará a pressão até então exercida por seu sádico superego. Assim como Holmes e outros grandes criminosos que chegam à mídia, qualquer meliante pé de chinelo também teria seus motivos secretos para explicar seus delitos. Por esse motivo, Freud especulava se no futuro os julgamentos de criminosos não seriam substituídos por tratamentos de doentes.

A concepção psicanalítica que mostra a necessidade de punição como a motivação profunda dos crimes provocaria uma verdadeira revolução nos procedimentos legais ligados a confissão, julgamento e condenação dos crimes. Sem invalidar a necessidade da punição pela infração da lei, propõe que no julgamento sejam levadas em conta as condições psíquicas inconscientes do infrator, algo até o momento inexequível.

O caso de James Holmes conjuga à sua loucura pessoal a loucura social coletiva dos Estados Unidos, que consiste na negação do perigo implícito na venda irrestrita de armas de fogo. Os lobbies da indústria de armas submetem toda a sociedade fazendo uso indevido da 2.ª Emenda da Constituição norte-americana, que assegura o direito do cidadão de se armar, direito garantido num momento histórico em que todos deveriam estar preparados para lutar contra os ingleses, caso eles quisessem tomar posse novamente da colônia.

Há um fato tocante no crime de James Holmes. Poucos dias antes de consumar seu gesto, ele enviou a um professor de psiquiatria da universidade onde estudava um caderno com anotações detalhadas sobre o que planejava fazer. Infelizmente, o destinatário não teve oportunidade de ler a missiva, que só foi reconhecida após a consumação dos fatos.

O ato de Holmes pode ser entendido como um pedido de socorro. Mesmo nos quadros psicóticos mais graves, nos quais a personalidade está cindida, fracionada, dividida, dominada por delírios e alucinações, persiste um lado que mantém a crítica e o contato com a realidade, que reconhece a própria insanidade, embora esteja debilitado demais para contê-la. Assistindo impotente ao cortejo da loucura, só lhe resta emitir débeis pedidos de socorro ao exterior, que podem passar despercebidos por aqueles a quem recorre.

O caderno de Holmes mostra que a chacina esteve presente por um longo tempo em sua mente, tomando corpo até ser concretizada na realidade. Ao enviá-lo ao psiquiatra, possivelmente Holmes pedia que alguém de fora o impedisse de executar aquilo que seu lado transtornado o impelia a realizar e que sozinho não tinha forças para evitar.

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