sexta-feira, julho 13, 2012

O ritual das meninas da padaria - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO


O Estado de S.Paulo - 13/07


Esperas em aeroportos são entediantes, principalmente para quem chega cedo como eu, para desespero de minha mulher que se irrita com aquele nada a fazer a não ser olhar lojas-pega-turistas, que se acham espertos ao comprar uma mercadoria que sairá "muitos mais barato" do que no Brasil. E carregam aqueles sacolões, tipo viajante de rodoviária no final de ano. Pois estava eu em Charles De Gaulle, Paris, e a brasileirada ruidosa ainda não tinha chegado. De repente, aquela senhora, com o rosto lacerado e uns bandaids enormes surgiu à minha frente. Não reconheci. Ela foi educada, ao contrário daqueles que insistem em que você identifique:

- Sou Heloisa. Uma das meninas.

Pronto, tudo se iluminou. O problema é quando retiramos alguém do contexto. Leva um tempo para identificar. Outro dia, o Nildo, chapeiro da CPL, passou por mim, se despediu. Quem é esse, tão cordial? Estava sem o uniforme da padaria, sem aquele bonezinho protetor, estava longe do balcão. O chapeiro que faz um chapado perfeito, no ponto, dourado. Estive frente a frente com conhecido jogador de futebol e não tinha a mínima ideia de quem era. Também, ele estava sem uniforme, fora do campo, não suado, nem ofegante, como eu ia saber?

Heloisa faz parte de um grupo que apelidei "as meninas" da CPL, a padaria da esquina, point do bairro, centro de convivência. Todos os domingos, pontualmente às oito, elas chegam. Passo em busca do pão e do meu "chapado" e indago:

- Já fizeram a chamada?

- Todas "bateram" o ponto, confirmam.

Anna Maria, Heloisa, Malu, Sonia, Rosely e Stella sentam-se sempre à mesma mesa, mais próxima ao autoelétrico do Pereira, que marca o limite do território da CPL. Porque uma delas fuma e não deseja incomodar. Se bem que a essa hora da manhã, as mesas estão quase todas vazias. Aos poucos chegarão casais com bebês; solitários com seus cães; os pintores Paulo Calazans e Genilsson (em momentos diferentes); o jornalista Maurício Kus, que teve uma das maiores assessorias de imprensa da cidade, e hoje curte um tempo sabático; Pedro e Gilvana, com quem todos fazemos molduras e encomendamos nossos vidros. Antes do almoço os motoqueiros, qual Marlon Brandos, ocuparão a esquina. Porém, as meninas são das primeiras. Gostam do sossego, precisam colocar os assuntos em dia.

Todas deram suas aulas, em faculdades, defenderam teses, mas a vida acadêmica ficou para trás. Uma, a Malu, foi radical, dedica-se hoje à gastronomia. O torpe aperto de mão entre Lula e Maluf, que virou o estômago do País, a novela Avenida Brasil, a volta da Gabriela, o tempo, os filhos, netos, as empregadas. Nunca ouvi ali uma palavra sobre futebol. Também não fico parado muito tempo, é a hora delas. Heloisa, a que me encontrou no aeroporto, explica que o rosto lacerado foi resultado de uma queda na rua, em Berlim. Um corte na testa, sangue, em minutos chegou o resgate, quando viu ela estava no hospital, cuidada.

De vez em quando, o assunto dos carros repletos de lixo e tralhas entra na pauta. O professor acumulador que tem seis ou oito automóveis lotados de tranqueiras muda o local de estacionamento. O mistério foi revelado entre uns poucos, o público continua se admirando, se indagando o que significa aquilo. As meninas são bem-humoradas (não é que não tenham seus problemas), insistem em manter a tradição que vem de anos. Aquele encontro dominical, longe do doméstico, da família, das obrigações cotidianas, do prosaico dia a dia.

É um instante todo delas, de liberdade, descontração, curtição, abobrinhas, troca de informações, novidades do bairro. Já ouvi sobre política. Elas esperam que a ministra, que é do bairro, apareça um dia, como já apareceu antes. Foram elas que me alertaram sobre a demolição noturna (covarde) da casa branca senhorial da esquina da Teodoro Sampaio. Até o escritor Milton Hatoum, que morou no bairro anos atrás, sofreu com a queda da mansão.

Assim, a cada domingo verifico que a paz permanece, o bairro continua o mesmo, os pequenos rituais estão mantidos, precisamos deles, para nos livrar da ansiedade. Os diálogos são invariáveis entre nós a cada domingo.

- Bateram ponto?

- O relógio quebrou, José mandou consertar.

José é o dono, torcedor fanático da Portuguesa

- Vieram todas?

- Duas faltaram, mas justificaram.

- Portanto não terão o dia descontado nem perderão um dia das férias.

- Uma viajou.

-Uma está de licença médica. Nada grave.

- E a pauta deste domingo?

- É livre, generalidades.

O café da manhã se inicia, chegam sucos, chapados. Vou com meus pães, meu pão de ló, e quase até chegar ao meu prédio, ouço os risos das meninas. É domingo, o mundo está em paz. Ao menos, nosso mundinho aqui.

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