domingo, abril 15, 2012

O sumiço da peruca de Jesus - HUMBERTO WERNECK


O Estado de S.Paulo - 15/04/12


Se ainda estivesse entre nós, e é uma pena que não esteja, Geraldo Mayrink teria visto confirmar-se em dobro, na última Semana Santa, sua constatação, tantas vezes repetida, de que não há limites para a insânia. Como todos nós, o saudoso jornalista teria deplorado o trágico momento em que o ator Thiago Klimeck, de 27 anos, se enforcou acidentalmente sob os olhares do povo, quando, na praça da matriz em Itararé, interior de São Paulo, interpretava o personagem Judas - só podia ser ele - numa encenação da Paixão de Cristo. Ninguém percebeu de imediato a gravidade do que se passava. Nos últimos dias, informava-se que o cérebro de Thiago, privado de oxigênio durante os quatro minutos em que o corpo esteve pendurado, teria sofrido danos irreversíveis.

A tragédia de Itararé teve uma contrapartida burlesca que, sem prejuízo do respeito que tinha pela fé alheia, teria divertido o bem-humorado Mayrink. Aconteceu na pequena Inhaúma, a 90 quilômetros de Belo Horizonte, na noite da Quarta-Feira Santa. Pouco antes de sair à rua a Procissão do Encontro, em que dois cortejos, um masculino, outro feminino, levando imagens do Bom Senhor Jesus dos Passos e de Nossa Senhora das Dores, respectivamente, a certa altura se fundem, numa espécie de pororoca da fé, para simbolizar o encontro, a caminho do Calvário, de Cristo com sua Mãe.

Tudo estava pronto para a saída quando alguém, na turma dos homens, deu pela falta de um acessório, e não qualquer um: a peruca do Senhor dos Passos.

Imagem com peruca? Sim, explicou a reportagem do jornal Estado de Minas, contando que antigamente era costume fabricar santos carecas e adornar suas cabeças com perucas de cabelos naturais - não raro, ofertadas por devotas que, atendidas em suas preces, de bom grado sacrificavam as cabeleiras. "Na época de festas e datas comemorativas", detalhou o repórter, "as perucas eram lavadas e recebiam papelotes para formação de cachos."

Como as jubas, mesmo santificadas, com o tempo se deterioram, adquirindo o aspecto de esgarçadas vassouras de piaçava, algum tempo atrás os fiéis de Inhaúma rodaram o pires e investiram o total arrecadado, cerca de R$ 1,7 mil, na encomenda de perucas para o Senhor dos Passos e a Nossa Senhora das Dores. Os adornos capilares foram confeccionados em Maravilhas - município mineiro que, aliás, também tem seu folclore em matéria de ícones: lá existe um Santo Antônio que, reza a lenda, não gostava da capela onde o entronizaram, e por isso, anos a fio, fugia toda noite rumo a uma fazenda, não se sabe se com ou sem peruca. Ficou nesse vaivém até que os moradores de Maravilhas conquistaram sua simpatia com uma grande festa. Paparicado, o santo casamenteiro nunca mais fugiu.

No centro comunitário da Inhaúma, de onde sairia a procissão masculina, os fiéis, perplexos, coçavam as cabeças, sem saber o que fazer. Não dava para levar ao Calvário um Cristo calvo. Como se aproximasse o momento do encontro Dele com Nossa Senhora das Dores, o jeito foi desengavetar uma peruca velha, já aposentada, e com ela compor o visual do Bom Senhor dos Passos. Ninguém reparou.

Previsivelmente, o sumiço das melenas do santo se tornou e continua sendo o assunto imperioso entre os 6 mil habitantes de Inhaúma. Não passou despercebido o fato que o autor do crime não se interessou pela peruca, mais frondosa, de Nossa Senhora das Dores. E houve quem observasse, sem qualquer sentimento de orgulho municipal, que furto de peruca em igreja talvez seja algo inédito, pois larápios na casa de Deus em geral surrupiam imagens, cálices, castiçais.

Quem será a criatura capaz de tamanho sacrilégio? No começo se falou de uma mulher que, tendo cortado os cabelos da filha mais do que deveria, teria se apoderado do adereço do santo para disfarçar a barbeiragem. Uma semana depois, a polícia descobriu que na vizinha Cachoeira da Prata alguém pusera à venda uma peruca. Será a mesma do Bom Senhor dos Passos? O mistério entrou pelo fim de semana e pode ainda reservar surpresas, uma vez que, como dizia o Mayrink, não há limites para a insânia.

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