quarta-feira, fevereiro 22, 2012

Um esclarecimento final - VLADIMIR SAFATLE


FOLHA DE SP - 22/02/12

O senhor José Pereira Coutinho diz gostar de polidez. Ele deve então começar por oferecer aquilo que gostaria de receber. Depois de iniciar uma polêmica comparando-me a um turista diletante e desinformado e de terminar seu texto com a respeitosa argumentação "fazer turismo é bom. Pensar com a cabeça toda é melhor", é exercício de cinismo demonstrar raiva por ter sido tratado da mesma forma.

Sobre os argumentos de sua resposta, eles são prenhes de erros. Primeiro, afirma que a "parte de cimento da barreira de segurança da Cisjordânia constitui apenas 5%". Isso que o senhor Coutinho chama de "barreira" tem 708 km de extensão, sendo que 61,8% do projeto original está construído, 8,2% em construção e 30% por construir. Na parte construída, há 61 km de um muro de concreto de 8 a 9 metros de altura, que passa principalmente pelas áreas urbanas de Jerusalém, Belém, Qalqiliya e Tulkarm. Fotos podem ser vistas por qualquer um na internet. Ou seja, o muro equivale a algo próximo de 14% do que já existe, e não 5%. Ele ainda será ampliado. Como se vê, precisão não é o forte do jornalista.

A leveza do senhor Coutinho em relação a números é idêntica ao peso de suas afirmações. Ele diz que "Israel construiu este muro quilométrico apenas na retórica de Vladimir Safatle". Bem, fico feliz em saber que minha retórica consegue construir muros de 61 km de extensão. Nunca achei que palavras tivessem tanta força. De toda forma, preciso confessar ao senhor Coutinho: não fiz isso sozinho, construí o muro com a ajuda da Corte Internacional de Justiça, a principal corte da ONU. A mesma Corte que publicou em 2004 uma condenação contra o governo de Israel por meio de um documento cujo título é "Consequências Legais da Construção de um Muro nos Territórios Palestinos Ocupados". No documento, a Corte afirmava ser completamente ilegal uma construção que, em 85% de sua extensão, avançava sobre território palestino. Mesmo assim, sei que há leitores que afirmarão que a ONU é um antro de amigos de terroristas e que apenas a opinião do senhor Coutinho conta.

Mas, como era de se esperar, o senhor Coutinho afirma que o muro irreal não é obstáculo para a paz. Nem mesmo os assentamentos o são. Para tanto, ele lembra que o governo de Israel desmantelou assentamentos em Gaza e no Sinai quando tais territórios foram devolvidos. Eu mesmo levantei este contra-argumento em meu primeiro texto. No entanto, o jornalista simplesmente "esquece" um pequeno problema de escala. Há hoje 520 mil colonos na Cisjordânia. Não havia nada nem perto disso em Gaza e no Sinai. Na última vez em que um primeiro-ministro israelense tentou desmantelar assentamentos na Cisjordânia, ele foi assassinado -não pelo Hamas ou por algum grupo terrorista, mas por um colono israelense. Depois disso, o processo de paz nunca mais foi o mesmo.

Sobre essa questão, vale sempre a pena perguntar: se os assentamentos não são realmente obstáculo para a paz, então por que o governo de Israel não segue as exigências da comunidade internacional e para, de uma vez por todas, de construir novos assentamentos? Eu mesmo visitei assentamentos que foram construídos no ano passado. Mas é verdade que alguém que não enxerga muros dificilmente enxergaria obstáculos.

Em vez de apurar sua visão, o senhor Coutinho prefere usar o velho argumento de que os palestinos são os únicos responsáveis pelo seu próprio sofrimento. Uma verdadeira pérola. Para o argumento funcionar, ele não pode dizer sequer uma palavra a respeito do fato de a carta programa do Likud não reconhecer a existência de um Estado palestino. Ele não pode dizer nada a respeito das claras afirmações de Netanyahu, no Congresso norte-americano, expondo sua recusa absoluta em aceitar as fronteiras de 1967, contrariamente ao que Obama havia exigido. Por fim, e isso é muito mais grave, ele "esquece" que a liga árabe ofereceu, em 2002 e 2007, uma proposta de normalização completa e definitiva das relações dos países árabes com Israel em troca da retirada israelense dos territórios ocupados e de uma solução para o problema dos refugiados. Tal proposta recebeu um forte suporte da autoridade palestina. O governo israelense recusou nas duas vezes. Ou seja, uma visão mais honesta do processo afirmaria, no mínimo, que ocasiões para a paz foram igualmente desperdiçadas por ambos os lados.

No entanto, tudo o que o senhor Coutinho diz é que o reconhecimento do Estado da Palestina foi oferecido por Israel em 2000, com Barak, e 2008, com Olmert. Mas ele não tem coragem de dizer claramente o que eram tais propostas. Primeiro, a "solução" proposta por Ehud Olmert incluía, entre outras coisas, a anexação completa de Jerusalém e de vários assentamentos. Ela ignorava soberanamente que um dos pontos fundamentais de negociação sempre foi o reconhecimento de que a parte árabe de Jerusalém seria devolvida aos palestinos para a constituição da capital de seu futuro Estado.

Segundo, a respeito da proposta de Barak e das negociações de Camp David, melhor do que retornar a uma visão simplista do processo que tenta simplesmente demonizar Arafat é ler o clássico artigo de Robert Malley, "Camp David: a Tragédia de Erros". Malley era o negociador norte-americano e representante do governo Clinton à ocasião. Sua descrição é fiel e ponderada, feita por alguém que esteve, desde o início, dentro do processo. O resultado que sai daí é muito diferente do que o senhor Coutinho tenta apresentar. As recusas e inseguranças de Arafat tornam-se mais compreensíveis e ficam longe da ideia de "mais uma prova de que, no fundo, os palestinos querem a simples destruição do Estado de Israel". Mas já percebi que o jornalista não leva a sério descrições de pessoas que veem os processos com os próprios olhos. Diga-se de passagem, a respeito da "proposta" de Barak referente aos refugiados a que o senhor Coutinho alude, ela começou prevendo o retorno de 15 mil palestinos e terminou com não mais do que 100 mil em um contingente de 4 milhões. De toda forma, já expressei minha opinião a respeito deste problema.

Por fim, o senhor Coutinho diz não se impressionar com "interjeições adolescentes" do tipo "há situações inaceitáveis sob quaisquer circunstâncias". Julgo sintomático que a defesa de juízos incondicionais e universais em política seja vista por ele como um exercício retórico (mais um) para "impressionar alguns alunos pós-púberes". Com isso, ele se coloca abaixo de qualquer princípio efetivo de universalização de direitos e mostra claramente suas credenciais políticas, o que também não me impressiona.

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