quarta-feira, fevereiro 15, 2012

Floresta diferente? - ANDRÉ MELONI NASSAR


O Estado de S.Paulo - 15/02/12


Em época de concessão da administração de aeroportos à iniciativa privada por um governo do PT, talvez se possa ter a esperança de que este governo aceite abrir algumas portas para formas mais modernas de gestão do patrimônio de biodiversidade existente no Brasil. A ideia que apresento aqui é a seguinte: as florestas existentes nas propriedades privadas não deveriam ser consideradas nas políticas brasileiras de conservação da biodiversidade? Por acaso essas florestas são deferentes em relação ao potencial de conservar flora e fauna, das que estão em unidades de conservação (UCs) e reservas indígenas - estas, sim, elegíveis para as metas?

Embora possa parecer, essa proposta não é mera provocação, tampouco tem a intenção de criticar o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc). No entanto, diante das mudanças que serão aprovadas nos sistemas de gestão das florestas em propriedades privadas, caso o Congresso Nacional aprove a reforma do Código Florestal, os mecanismos de mercado ganharão relevância ante os tradicionais sistemas de comando e controle, justificando, assim, essa proposta.

Um dos mais óbvios mecanismos de mercado são os pagamentos por serviços ambientais, sobretudo os associados à conservação da biodiversidade. Tornar as florestas em propriedades privadas elegíveis para as políticas de conservação da biodiversidade, dado um conjunto de condicionantes que explico a seguir, significa reconhecer que elas também poderão receber pagamentos por serviços ambientais quando estes se tornarem realidade no Brasil.

Contando União, Estados e municípios, o Brasil tem cerca de 110 milhões de hectares (ha) de reservas indígenas, 52 milhões de ha de UCs de proteção integral, 55,8 milhões de ha de UCs de uso sustentável e 43,5 milhões de ha de áreas de proteção ambiental (UCs de uso sustentável instituídas em áreas privadas). Por outro lado, entre reservas legais (RLs) e áreas de preservação permanente (APPs) conservadas - os dois instrumentos definidos pelo Código Florestal que impõem a conservação nas propriedades privadas -, tem-se ao redor de 250 milhões de ha. Ou seja, as áreas privadas, mesmo considerando o enorme contingente de propriedades que não está em conformidade com o código vigente, possuem um montante de florestas equivalente ao total de áreas protegidas pelas reservas indígenas e UCs instituídas pelo Snuc. Não há, portanto, como negar a grande importância das florestas existentes em propriedades privadas.

À luz das políticas brasileiras de conservação da biodiversidade, as florestas em RLs e APPs são ignoradas. Apesar de o Código Florestal prever que são áreas fundamentais para a conservação da biodiversidade, na prática elas são reconhecidas somente como uma obrigação imposta aos proprietários rurais. Com isso criamos, no Brasil, uma separação concreta entre florestas com as mesmas funções ambientais que, em razão do tipo de propriedade (pública ou privada), são tratadas diferentemente. Partindo do princípio de que o objetivo é conservar a biodiversidade, essa distinção não faz nenhum sentido.

Um exemplo que confirma essa tese são as metas da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), tratado internacional que busca garantir níveis mínimos de conservação da biodiversidade. Para a CDB, uma área protegida é geograficamente delimitada e regulamentada para conservar a biodiversidade. O mesmo conceito é adotado pela União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN).

A CDB recomenda que as metas devem ser cumpridas por meio de sistemas em áreas protegidas, bem como via "outras medidas especiais de conservação, e integradas em paisagens terrestres e marinhas mais amplas". No entanto, a política brasileira reconhece como áreas protegidas elegíveis para cumprir as metas da CDB apenas as UCs e terras indígenas. Se as APPs e áreas de RL são protegidas pelo Código Florestal, como uma restrição à propriedade da terra que visa a conservar a biodiversidade, uma vez efetivamente preservadas, devem contar para as metas brasileiras de proteger ao menos 17% de cada bioma até 2020.

Não estou, evidentemente, defendendo a inclusão de todas as florestas em RLs e APPs. Aliás, se fosse assim, o Brasil já estaria cumprindo as metas da CDB em cada um dos biomas encontrados em nosso território. É preciso estabelecer critérios.

Considerando a relevância das APPs para a conservação da biodiversidade, proteção do solo e da água, entre outros serviços ambientais, essas áreas, desde que incluídas no Cadastro Ambiental Rural (CAR), deveriam contar para as metas brasileiras.

O segundo critério se aplicaria às RLs. Se UCs são elegíveis para as metas de conservação de biodiversidade, isso significa que maciços florestais são preferíveis a fragmentos. Isso me leva a propor que grandes áreas de RLs deveriam também ser elegíveis - o que estimularia os proprietários de terra a conservar extensões grandes ou, aprovado o novo Código Florestal, a compensar RLs em grandes maciços.

Um terceiro critério para dar elegibilidade às RLs seria o seguinte: florestas em RLs que adensam APPs e estabelecem corredores ecológicos dentro e entre as propriedades também ganhariam status diferenciado. Este critério e o anterior poderiam ser aplicados em conjunto.

Em minha opinião, está passando da hora de derrubarmos esse conceito de separar as florestas entre as que têm valor para a biodiversidade - e por isso são reconhecidas nas políticas de conservação - e as que não o têm, às quais sobra a proteção pela obrigação. Sendo as florestas em áreas privadas em nada diferentes em termos de conservação de fauna e flora das demais florestas, esse serviço ambiental não deveria ser ignorado, como sempre foi até hoje.

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