domingo, outubro 02, 2011

OS BANDIDOS DE TOGA - REVISTA VEJA


OS BANDIDOS DE TOGA
REVISTA VEJA
Eles existem, sim. E, na semana que vem, a mais alta corte do país terá de decidir como a Justiça brasileira lidará daqui para a frente com criminosos disfarçados de magistrados

LAURA DINIZ

Judiciário é o menos corrupto dos poderes, afirmou, em uma entrevista recente a VEJA, a ex-ministra do Supremo Tri­bunal Federal (STF) Ellen Gracie Northfleet. Ela pode estar certa, mas é inegável que ele é também,
entre os poderes, o menos investigado. Nos próximos dias, o Supremo enfrentará um de­bate histórico sobre esse tema delicado. A mais alta corte do país terá de determinar co­mo a Justiça brasileira lidará daqui para a frente com investigações que atingem os pró­prios integrantes - sejam eles juízes de pri­meira instância, desembargadores ou minis­tros de tribunais superiores. É um pomo da discórdia: a Associação dos Magistrados Bra­sileiros (AMB), um órgão classista, quer amordaçar o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), criado em 2004 para investigar e punir juízes corruptos. O coração do CNJ é a sua Corregedoria, comandada pela ministra Elia­na Calmon. À investida da AMB, ela reagiu dizendo, em entrevista, que há no Brasil "ban­didos que estão escondidos atrás da toga" e que eles não podem ser acobertados. Sua fala provocou uma reação vigorosa da parte do
presidente do Supremo, e também presi­dente do CNJ, ministro Cezar Peluso. No plenário do conselho, e diante da ministra, ele disse que as declarações de Eliana Calmon eram "um atentado ao estado democrático de direito" e que, em quarenta anos de magistratura, "nunca havia lido uma coisa tão grave". Em nota, afirmou ainda que, ao dizer o que disse, a corregedora lançava "dúvi­das sobre a honra de milhares de juízes que diariamente se dedicam ao ofício de julgar com imparcialidade e honestida­de". Outros magistrados, diante do epi­sódio, mostraram espanto e cobraram da ministra "os nomes". Não é tão difí­cil descobri-los. Ao longo desta repor­tagem, há oito exemplos acachapantes de bandidos que se ocultaram atrás da toga. Em comum, têm o fato de ter sido investiga­dos e punidos administra­tivamente por seus des­mandos - mas sem nun­ca ter sido julgados crimi­nalmente por eles.
Para chegar a esses casos, VEJA esquadri­nhou o resultado das maiores operações reali­zadas na última década pela Polícia Federal (PF) envolvendo juízes. Do trabalho, emergiram duas conclusões. A primeira: há, sim, uma profusão de juízes-bandidus atuando no Brasil. As investiga­ções revelam episódios como o do ministro do Superior Tribunal de Jus­tiça que se deixou subor­nar por uma quadrilha que explorava a jogatina ilegal e o do magistrado de Roraima que extorquia funcionários para susten­tar o filho de sua amante. 
A segunda conclusão é que, mesmo g quando esses bandidos togados são identificados, eles quase nunca pagam por seus crimes. Nas quinze operações analisadas, 39 magistrados foram in- ­vestigados. Destes, só sete foram julgados até agora, apenas dois foram condenados e só um continua preso - assim mesmo, domiciliarmente. É muito pouco, sobretudo quando se consideraa montanha de evidências obtidas pelos policiais contra os acusados.
O que torna tão espinhosa a tarefade investigar juízes, denunciá-los e puni-los é, evidentemente, a intimida­ção que.causam figuras com tanto po­der. O receio contamina membros da polícia, do Ministério Público e da im­prensa. Comprar briga com um magis­trado nunca é bom negócio. O juiz in­vestigado de hoje pode ser o mesmo que, amanhã, vai decidir sobre um processo em que figure o investigador.
E poucas coisas podem ser tão destru­tivas quanto a pena vingativa de um magistrado sem escrúpulos. Além des­ses aspectos subjetivos, há também os de ordem prática. Quando o suspeitode um crime tem direito a foro espe­cial - caso dos juízes -, a polícia perde o comando da investigação. O inquérito passa a ser presidido por ou­tro juiz, e não por um delegado. As­sim, não é raro que, por força do cor­porativismo, essas investigações fi­quem anos no fundo das gavetas dos magistrados. 
Os juízes detêm tanto poder porque exercem uma função especial na socie­dade. Em sua rotina de trabalho, essa ctistinção se expressa de várias formas. Nas salas de julgamento, eles se sentam sempre um degrau acima das outras pes­soas - advogados, promotores, réus ou testemunhas. Vestem uma roupa dife­rente, a toga (que na Roma antiga distin­guia os cidadãos dos escravos), e são chamados de "excelência" ou "meritís­simo". Entre os benefícios que se ofere­cem a eles, estão altos salários, cargo vitalício até os 70 anos e aposentadoria integral. Tanta deferencia tem uma ra­zão: os juízes são os primeiros guar­diões do estado de direito - pilares, por­tanto, da democracia. Quando os ho­mens decidiram deixar de resolver seus conflitos pela força e abraçaram a ideia de que só haveria paz se todos concor­dassem em obedecer a uma mesma au­toridade - o cerne do conceito de "con­trato social" -, coube a juízes a honrosa missão de arbitrar os conflitos. O papel dos magistrados é tão fundamental na sociedade e sua função é tão nobre que eles precisam se cercar de garantias que os ajudem a exercer seu papel com a competência, o equilíbrio e a sabedoria que deles se esperam. Pelos mesmos motivos, são obrigados a cumprir as leis com mais rigor do que os outros. Preci­sam ter uma reputação inatacável.
Mas sempre haverá os que optarão por trair o voto de confiança que a sociedade lhes outorgou. Os bandidos de toga compõem uma parcela ínfima no universo de 16000 magistrados que há no Brasil, mas, de tão perniciosos, é necessário que sejam rapidamente identificados e punidos. Essa é a guer­ra encampada pela ministra Eliana Calmon. Ela defende a ideia de que o CNJ possa abrir investigações para apurar a conduta de qualquer magistra­do sobre o qual recaiam suspeitas. Es­sa medida tem se mostrado eficaz nos últimos anos. Como a lógica do siste­ma judiciário dificulta o julgamento de seus próprios integrantes, o CNJ tor­nou-se o caminho mais curto para as puniçOes, já que, nesse caso, elas se restringem a medidas administrativas. O conselho não tem poder para pren­der umjuiz bandido, por exemplo. Isso deveria ser feito pelo caminho usual da Justiça, mas, na prática, raramente acontece. O que o CNJ pode fazer - e tem feito com continuidade - é retirar dos cargos os juízes bandidos e deter­minar sua aposentadoria compulsória. Não é uma pena exemplar, mas estanca rapidamente os efeitos deletérios que pode causar à sociedade o trabalho de um mau magistrado.
Mesmo esse castigo brando, quase amigável, afronta o espírito de corpo dos juízes brasileiros representados pela AME. A associação que pretende tirar do CNJ o direito de investigar magistrados quer que a prerrogativa seja exclusiva das corregedorias dos tribu­nais de Justiça estaduais. É sabido, no entanto, que esse modelo não funciona bem - sobretudo porque a maior parte dos corregedores tende a ser mais do que condescendente com o colega da sala ao lado. O STF, agora, será cha­mado a disciplinar a questão. Na sema­na passada, essa discussãO elevou a temperatura nos corredores da corte. Os ministros estão inclinados a apoiar um sistema em que a prerrogativa de iniciar as investigações continue com as corregedorias estaduais - mas, se os processos forem tocados com lenti­dão, o CNJ poderá abrir uma investiga­ção própria. É um formato equilibrado. O presidente do STF, ministro Cezar Peluso, depois de reclamar do fato de a ministra Eliana Calmon ter exposto em público a chaga dos juízes corruptos, chegou ao fim da semana mais sereno:
"Um desvio funcional na magistratura é mais grave do que um ato de corrup­ção em qualquer outro lugar. O CNJ está cumprindo muito bem a sua fun­ção de apurar e punir esses desvios, e isso deve continuar", disse ele a VEJA. Quando os bons se unem pelas boas causas, ganha a sociedade. Com o CNJ fortalecido, só quem tem a perder são os bandidos de toga. •
COM REPORTAGEM DE PAULA LOPES E TARIMA NISTAL 
SÓ UM ESTÁ PRESO ...
É quase impossível que um juiz bandido seja condenado no Brasil. Em primeiro lugar, são raros os policiais e promotores que topam enfrentá· lo. E, quando isso acontece, os outros juízes resistem a julgar seu colega
Na última década, 39 juízes foram investigados em operações de grande porte da Polícia Federal.
Destes, 31 foram denunciados à Justiça pelo Ministério Público e 7 chegaram efetivamente a ser julgados.
Apenas 2 foram condenados
e só 1 continua preso, ainda assim em sua própria casa. 

EU TE AJUDO, VOCÊ ME AJUDA
Em 2006, o desembargador Sebastião Teixeira Chaves, então presidente do Tribunal de Justiça de Rondônia, queria que a Assembleia Legislativa aprovasse um projeto para aumentar o rendimento dos desembargadores de seu estado. A medida, claro, engordaria o seu próprio contracheque. Em conversas gravadas pela PF, o então presidente da Assembleia, deputado estadual José Carlos Oliveira (PSL), negocia como desembargador a aprovação do reajuste. Na sequência, em outra conver­sa obtida pela PF, Teixeira Chaves pede a um juiz que interceda para liberar os bens do deputado Oliveira, que estavam bloqueados pela Justiça. "Precisa definir isso - a gente vai acabar sem salário .. .", diz. Dez dias depois, parte dos bens do deputado (que empregava a mulher do desem­bargador como assessora) foi liberada - e o salário dos magistrados subiu. Apesar do flagrante fartamente documentado, a puniçãoa Teixeira Chaves limitou-se a uma aposentadoria precoce. E com salário integral - 24000 reais por mês.

O CORREGEDOR INCORRIGÍVEL
É obrigação do corregedor-geral de todos os tribunais de Justiça apurar as denúncias contra juízes e garantir que os desonestos sejam varridos da magistratura. Uma sindicãncia conduzida pelo Conselho Nacional de Jus­tiça em 2009, porém, descobriu que o corregedor-geral do TJ do Amazo­nas, desembargador Jovaldo dos Santos Aguiar, dedicava-se a fazer jus­tamente o contrário. Durante sua gestão, ele "paralisou indevidamente" o andamento de dezesseis processos contra magistrados, segundo apurouo CNJ. Não é difícil entender por quê - o próprio desembargador provou ser um expoente da bandidagem togada. A apuração do CNJ lista mais de dez episódios em que ele favoreceu pessoas e empresas por meio de de­cisões arbitrárias e métodos ilícitos. O caso mais impressionante foi des­crito por um advogado. "O agravo eu levei prontinho, o desembargador só fez assinar", disse. "Ele recebeu dois pacotes, são 20000 ... dois pacotes de dinheiro que eu levei, paguei lá dentro do gabinete do Jovaldo." Em fe­vereiro do ano passado, o desembargador recebeu a punição máxima que o Judiciário impõe aos membros pegos em flagrante delito: a aposentado­ria compulsória. Desde então, ganha para ficar em casa.
"CRITICAR OS MAUS É DEFENDER OS BONS"
A ministra Eliana Calmon, do Superior Tribunal de Justiça, ocupa um dos cargos mais espinho­sos do Judiciário. Corregedora nacional de Jus­tiça, ela é responsável por comandar a máquina que investiga e pune juízes desonestos. Nessa posição, está acostumada a comprar boas brigas. Na semana passada, Eliana deu voz à convicção da parcela honesta da magistratura brasileira ao declarar que não se podem acobertar as ações de "bandidos que se escondem atrás da toga". Na quinta-feira, a ministra falou a VEJA.
Os crimes cometidos por um bandi­do de toga são piores que os de um bandido comum? O magistrado pre­cisa ter um comportamento absoluta­mente correto. O juiz é quem garante que o comportamento dos cidadãos se mantenha de acordo com a lei e os bons costumes da sociedade. O Poder. Judiciário é fiador, em última análise, da própria cidadania. Por isso, o des­lize ético de um profissional pago com dinheiro público para fazer o bom di­reito é mais grave que o deslize de qualquer outro.
Depois de afirmar que no Brasil há "bandidos escondidos atrás da to­ga", a senhora foi acusada por par­te de seus colegas de atacar toda a magistratura ... Criticar juízes que co­metem desvios, e eles são a minoria, édefender os bons magistrados; significa separar o joio do trigo. Se a magistratu­ra não punir os maus juízes, parecerá que são todos iguais. Bandidos de toga deixam de ser juízes - e precisam ser castigados.
Como é a experiência de julgar um colega? Extremamente penosa. É um grande constrangimento julgar pes­soas que têm a nossa amizade. Na magistratura, temos vida profissional longa, convivemos vinte anos, às ve­zes mais, com as mesmas pessoas. Tenho vários colegas que fizeram con­curso comigo, e estou na Justiça há 33 anos, uma vida. Uma vez, tive de julgar um colega no Superior Tribunal de Justiça. Eu o vi casar, vi a mulher dele engravidar, o bebê nascer e cres­cer. Éramos amigos. E, então, recebi uma denúncia contra ele. Foi muito sofrido. Dormi abraçada com os autos até achar uma evidência forte de cul­pa. Votei pela condenação.
É comum juízes fraquejarem em ca­sos assim? Os juízes julgam a si pró­prios. A abertura e a conclusão dos processos se dão por votação, em órgãos colegiados. Para votar, é preci­so haver um mínimo de magistrados presentes. Muitos pensam: "Não posso votar"; e então não comparecem à sessão. A falta de quórum é a ocor­rência mais comum. Na hora de julgar, muitos não têm coragem de condenar, mesmo com a convicção de que o colega é culpado. Ou então, por causa da fragilidade humana, há quem veja os indícios que poderiam isentar o colega de culpa com uma lente de aumento - e termine absolvendo.
E como a Corregedoria Nacional de Justiça pode melhorar o quadro? Não aceitamos que os processos fiquem parados. Periodicamente, fazemos ins­peções nas corregedorias dos estados. Se há processo parado, vamos para cima, a fim de saber o porquê. No mais das vezes, escutamos: "Ah; não teve quórum!". É como se dissessem:"Como não houve condições de julgar e eu já não estava com vontade de punir meu colega, deixei na prateleira". É a lei da inércia. Por isso, a Correge­doria Nacional precisa saber de todos os processos abertos nos estados. Só assim podemos controlá-los.
As corregedorias estaduais são dis­pensáveis? De jeito nenhum. Há tra­balho para todos. Quando há notícia de mau comportamento de um juiz, é preciso investigar imediatamente. Pode ser a Corregedoria Estadual ou a Nacional. O importante é frear a impunidade.
DOUTOR CAMPELLO E SUAS MULHERES
Em 2002, o desembargador do Tribunal de Justiça de Roraima, Mauro Campello, chamou uma assessora à sua sala e a recebeu abraçado com a amante. Segundo acusa o Ministério Público Fede­ral, citando o inquérito da PF sobre a Operação Pretorium, Campello propôs à assessora o seguinte "acordo": ela entregaria 200 reais por mês do próprio salário para ajudar a sustentar o filho da amante, com 5 anos na ocasião, e, em troca, teria o emprego garantido até o menino completar 18 anos. A servidora negou-se a obedecer, mas, dias depois, foi procurada pela mulher do desembargador - a oficial. Desta, ouviu proposta ainda pior: para continuar no cargo, teria de "contribuir" com 1500 reais por mês para que ela, que havia acaba­do de perder o emprego, não ficasse sem renda. Com medo de ser demitida, a assessora cedeu. Contou à PF que, mensalmente, entre­gava na casa do desembargador um envelope com o dinheiro, no qual se lia: "Dra. Larissa - xerox dos documentos". O relato da as­sessora foi corroborado por outras duas testemunhas. Campello for afastado em 2010, mas conseguiu reassumir o cargo neste ano. 
CRIME EM FAMÍLIA
A intimidade entre um grupo de empresários do setor de importação e o então presidente do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, desembargador Frederico Pimentel, ficou clara em uma gravação feita pela PF, em 2008, durante a Operação Naufrágio. Nela, um empresário diz para o outro, referindo-se a um recurso judicial que pretendiam impetrar:"Tem que agravar no dia em que o presidente estiver lá, por­que, se agravar num dia em que estiver o vice, o vice caceta a gente!". Segundo denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal, o recurso chegou às mãos de Pimentel pou­cos dias depois. O desembargador usou sua influência para conseguir um resultado favorável aos empresários e, em tro­ca, levou "uns caixotes". "Tem que ficar em cima do Frederi­co. Ele tem que trabalhar. Ontem, ele pegou os caixotes", diz um empresário do grupo em uma gravação. Segundo o Mp, ofilho do desembargador, também chamado Fred e recém­empossado juiz, ajudava o pai no "negócio" das sentenças. Pelo episódio, levou uma moto Yamaha, modelo R6. Desco­berto, perdeu o cargo e o direito à aposentadoria, uma vez que não havia completado dois anos no posto. Já seu pai foi afastado, mas recebe aposentadoria normalmente. 
CAÇA-NÍQUEL PARTICULAR
Paulo Medina, ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça, é o magistrado de mais alta patente já envolvido em um escândalo de venda de sentenças no Brasil. Ele responde a um processo no Supremo Tribunal Federal por favorecer uma máfia de empresários que explorava a jogatina, em especial bingos e caça-níqueis. Diálogos monitorados pela Polícia Federal deixam claro que o irmâo do ministro, Virgílio Me­dina, vendia decisões em nome dele. Em um dos casos registrados, Virgílio Medina cobrou 600000 reais por uma liminar do irmâo que liberaria 900 máquinas de ca­ça-níqueis apreendidas em Niterói, no Rio de Janeiro. Depois da liberaçâo, as gra­vações mostram o irmão do magistrado telefonando para os empresários para acertar o pagamento. Em outro episódio, o próprio juiz Medina foi flagrado enquan­to instruía um advogado sobre a melhor estratégia jurídica para ganhar um proces­so no SU Medina foi aposentado sob o argumento de que todo juiz deve ter reputação ilibada, mas ain­da recebe, limpos, 25386,97 reais por mês. 
O CARA DE PAU
Para conseguir o que queria, o desembargadorDirceu de Almeida Soares, do Tribunal Regional Federal da 4 a Região, em Porto Alegre, recorria a uma estraté­gia de grande eficiência: sua tremenda cara de pau. Se uma causa de seu interesse se encontrava nas mãos de outro magistrado, ele redigia a sentença e simplesmen­te a entregava ao colega para que fosse assinada. Fez isso, por exemplo, com a juíza Ana Beatriz Palumbo, num processo que envolvia um grupo de advogados li­gados a ele. A juíza recusou-se a assinar a sentença e denunciou o desembargadorao Ministério Público Federal, no Paraná. Depois dela, mais quatro juízes vieram a pú­blico reclamar de pedidos semelhantes. Em depoimento, disseram que se sentiam constrangidos pelas investidas - escancaradas e enérgicas - de Soares para influen­ciar o conteúdo de suas decisões. Um juiz contou que o desembargador pedira a ele que "amolecesse a mão" e concedesse uma liminar liberando mercadorias apreendi­das, pertencentes a clientes de um "advogado conhecido". O desembargador chegoua ser afastado pelo CNJ, mas completou 70 anos recentemente e se aposentou. 
PROPINA PAGA EM CHEQUE
Com a peraçao as rgada, deflagra­da em 2008, a Polícia Federal descobriu que o titular da 12 a Vara Federal de Mi­nas Gerais era um homem de negócios - e não um juiz. Weliton Militão vendia sentenças no atacado. A denúncia ofe­recida contra ele pelo Ministério Público Federal lista oito episódios em que o magistrado negociou o teor de suas de­cisões. Além de grampos telefônicos e provas documentais, o inquérito inclui um cheque nominal de 46000 reais pa­go a ele a título de propina. Para prati­car s~us malfeitos, o juiz tinha um par­ceiro - um empresário que prestava consultoria para prefeituras que, por causa de dívi­das com o INSS, haviam perdido o direito de receber repasses do Fundo de Participação dos Municípios. O juiz Militão concedia decisões que liberavam os pagamentos e, em tro­ca, cobrava uma comissão. Em 2010, ele foi aposentado compulsoriamente. Como sem­pre, com um belo salário - 15000 reais mensais.

O BANDIDO DE FARDA - REVISTA VEJA



O BANDIDO DE FARDA
REVISTA VEJA

o bárbaro assassinato da juíza Patricia Acioli foi cometido a mando de um membro da cúpula da PM do Rio. Assombroso,o episódio mostra que é preciso ir muito mais fundo para expurgar a bandidagem das entranhas da corporação

LESLlE LEITÃO



A face mais nefasta da polícia do Rio de Janeiro ficou exposta, na semana passada, ao vir à tona um fato assombroso sobre o as­sassinato da juíza estadual Patricia Acio­li, de 47 anos. Após 47 dias de uma in­vestigação que já havia apontado a par­ticipação de onze PMs na execução da magistrada, alvejada com 21 tiros em frente à sua casa, chegou-se ao mentor da barbárie: o tenente-coronel da Polícia Militar Cláudio Silva de Oliveira, de 45 anos, que comandava o 7° Batalhão dePolícia de São Gonçalo, cidade vizinha ao Rio - justamente a jurisdição da juíza morta. Nos meses que antecede­ram o crime, Patricia estava obstinada em reunir provas para levar à cadeia Oli­veira e seu bando, que, já se sabe, prati­cavam extorsões, desvios de armas e drogas e até homicídios - pelo menos 29. A primeira vitória da juíza deu-se em 24 de janeiro, quando ela decretou a prisão de um major que operava como braço direito do coronel Oliveira. Desde então, Patrícia propalava nos corredores do fórum: "Agora falta o cabeça". Ex­oficial do Batalhão de Operações Espe­ciais (Bope), a tropa de elite fluminense, Oliveira era homem de confiança do comandante-geral da PM, Mário Sérgio Duarte - seu colega nos tempos de Bo­pe, que o alçou ao posto máximo de ba­talhões importantes. Não restou outra saída para Duarte senão renunciar.

VEJA teve acesso a detalhes da in­vestigação que revelam um enredo sinistro. O primeiro movimento do coro­nel Oliveira ocorreu exatamente uma semana depois de a juíza decretar a pri­são de seu braço direito na bandidagem, em janeiro. Como represália, o coronel transferiu para longe os dois PMs que se encarregavam da proteção de Patricia, no que teve o aval do comandante Duar­te. A escolta havia sido acertada entre ela e o batalhão de São Gonçalo em 2007, quando o Tribunal de Justiça a deixara desassistida - três anos antes de seu algoz assumir a área. Sem nenhu­ma guarida, a magistrada passou a ser intimidada. Certa vez, seu enteado foi ostensivamente seguido pelas ruas de Niterói. Tratava-se, segundo a própria juíza, de "ameaça velada do coronel Cláudio". À medida que ela apertava o cerco ao grupo, o crime ia sendo meti­culosamente engendrado: quatro PMs foram designados para pesquisar seus hábitos em detalhes. O bando sabia que Patricia nygociava uma delação premiada com um dos integrantes do batalhão, que, ao que tudo indica, havia assumido a culpa de um assassinato cometido por um homem forre de Oliveira. Foram duas as tentativas frustradas de eliminá­la antes da emboscada fatal.

Até ser preso, o coronel Oliveira era considerado pela cúpula da segurança pública do Rio um quadro "operacio­nal" - o que, no jargão policial, desig­na o tipo valente que resolve problemas com eficiência mesmo que para isso precise cometer deslizes. No caso dele, uma ficha em que constam oito anota­ções criminais (abuso de autoridade, lesão corporal, constrangimento ilegal, prevaricação, maus-tratos, tortura, ho­micídio e violência à mulher - este último, o único caso ainda não arquiva­do). Um ex-colega de batalhão, que tra­balhou ao lado de Oliveira por cinco anos, resume assim o seu estilo: "O Cláudio é do tipo que toma a vida dos traficantes um inferno quando invade a área deles, para depois se vender mais caro aos criminosos". Em um depoi­mento prestado na semana passada, um cabo que confessou ter disparado contra a juíza conta que o chefe chegou a ins­taurar no batalhão um sistema de divi­são do produto das apreensões e da pro­pina paga por traficantes.

Quando analisava a promoção de Oliveira a comandante de batalhão, em outubro de 2010, o secretário de Segu­rança do Rio, José Mariano Beltrame, recebeu informes· da inteligência da ,PM contendo denúncias sobre seusacordos escusos com traficantes e mili­cianos. O agora ex-chefe da PM Mário Sérgio Duarte dizia não haver nada comprovado contra o subordinado, e un­giu sua promoção à revelia dos indícios que pesavam contra ele. Todo o episódio mostra de forma inequívoca que, se ex­p'urgar o banditismo de dentro da policia do Rio de Janeiro não é tarefa trivial, ela deve ser levada às últimas consequên­cias, sem abrir brechas à leniência que costuma turvar a vista dos poderosos na hora de punir os amigos.

IVAN ANGELO - O português de bengala


O português de bengala
IVAN ANGELO
REVISTA VEJA SP

Desculpe o título, que pode ter levado você, leitor, ao engano de precaver-se contra alguma anedota preconceituosa ou, se é dos que apreciam tal anedotário, à decepção de não encontrar aqui o que esperava. O título se refere à língua portuguesa, “inculta e bela”, hoje também trôpega.

Trôpega, entre outras coisas, porque na língua falada no Brasil se abusa de expressões que não são necessárias para o sentido do que se fala, servem apenas de bengala para quem fala, nas quais as pessoas se apoiam no intuito de ganhar um tempinho para encaminhar melhor a ideia, ou que para nada servem, a não ser talvez manter o passo. Sem o abuso, tais expressões dão colorido à linguagem; com ele, incomodam, e aí temos a fala apoiada em bengala ou, nos casos mais graves, em muleta.

Não me refiro a cacoetes, que estes são pessoais e marcam quem fala, mas a muletas coletivas, gerais. Cacoetes são como o do tio de um jornalista mineiro que, de tanto encaixar aqui e ali a palavra “porém”, ganhou o apelido de tio Porém, a quem o jornalista pandegamente chamava de “meu tio adversativo”. Ou o daquela psicóloga mineira que, de tanto repetir “percebe”, ficou sendo a Maria Percebe. Ou o da tia portuguesa que em cada frase mete dois “portanto”.

Você naturalmente já ouviu falas que andam por aí de bengala.

Eis um exemplo de bengala: “Sabia?”. Na dramaturgia fácil das telenovelas, aparece vinte vezes por capítulo. Não se faz uma afirmação, por mais banal, sem apoiá-la na bengala: “sabia?”. Dá vontade de dar neles com a bengala, assim: os atores da Globo falam todos do mesmo jeito, sabia? Os mais novos vão copiando os mais velhos, sabia? Nas novelas antigas não falavam tantos “sabia”, sabia? Quase sempre são os atores que põem esses cacos, sabia?

Tem bengala que já entra no começo da fala, como o “então”. Sem quê nem pra quê, como se a pessoa concluísse uma explanação ou retomasse uma fala que não houve, alonga-se um “então” depois de um silêncio: “Então...não sei ainda se vou fazer pedagogia”.

Tem a bengala explicativa: “O que acontece?”. Precede uma explicação, uma justificativa, mas não é necessária.

Tem a bengalinha do pronome inútil (ele, ela), sem a menor função na frase: “A prefeitura ela demora trinta dias para fornecer uma guia”; jornalistas da televisão dizem: “As informações elas continuam chegando”; ou: “ O leão ele não corre de graça”.

E tem também a bengalinha da preposição inútil “em”, sem função: “Somos em quatro”; “Éramos em dois”.

Tem uma bengala já antiga na língua, o “entende?”, com a qual se pretende induzir alguém a compreender o que geralmente é simplíssimo. Joaquim Nabuco, em1900, imaginem, 1900!, já se queixava dessa bengala e de quem a usava: “Todos nós temos algum conhecido que pontua as suas frases com esse fatigante ‘entende?’ que os nervos do marquês de Maricá não podiam suportar. O ‘entende?’ do indivíduo que quer forçar o ouvinte a nada perder do que ele diz”. ( "Minha Formação", capítulo IV)

Usam-se por aí muitas outras expressões que, quando desnecessárias nas frases, se tornam penduricalhos: “tipo assim”, “não é verdade?” etc. Imagine uma fala simples:

— Não sei ainda se vou fazer pedagogia. É complicado lidar com criança. A criança exige muito, não sabe fazer as coisas sozinha. Fico na dúvida.

Tem gente que para dizer isso se apoia numa porção de bengalinhas:

—Então... Não sei ainda se vou fazer pedagogia. O que acontece? É complicado lidar com criança, sabia? A criança ela exige muito, tipo assim, não sabe fazer as coisas sozinha, entende? Fico na dúvida, não é verdade?

Prefiro a língua mais enxuta e exata. Entende?

MAÍLSON DA NÓBREGA - A nova política econômica


A nova política econômica
MAÍLSON DA NÓBREGA
REVISTA VEJA


Temos uma nova política econômica. Sua formação remonta aos tempos finais do governo Lula, mas ela se consolidou a partir da Medida Provisória 539, de 26/7/2011, que criou as bases legais de uma intervenção estatal inédita nos mercados futuros. O objetivo é influenciar a trajetória da taxa de cambio. O IOF passou incidir nos contratos de derivativos. O Conselho Monetário foi autorizado a fixar margens de garantia desses contratos, até aqui tarefa de especialistas da BM&F conhecedores dos mercado e familiarizados com complexos modelos de avaliação de riscos.

Em seguida, surpreendentemente, o Banco Central baixou a taxa de juros (Selic), contrariando as expectativas da maioria dos analistas e aparentemente sob pressão política. O BC apostou na deterioração da economia mundial e na promessa de geração de robustos superávits primários no setor público. A piora da crise dos países ricos provocaria efeitos desinflacionários no Brasil. O esforço fiscal ajudaria a combater a inflação. Esses cenários não parecem ser os mais prováveis.


A presidente Dilma, eleita democraticamente, tem o direito e o poder de mudar a política econômica. A hora da verdade virá com a inflação. O BC assegura que ela convergirá para a meta de 4,5% em 2012. Muitos analistas, entre os quais este escriba, não partilham desse otimismo


Logo após, o governo aumentou brutalmente o IPI sobre automóveis importados, numa inequívoca ação protecionista. A súbita mudança de regras e as exigências de conteúdo mínimo nacional em produtos industriais lembraram os velhos tempos do fechamento da economia.

A política econômica substituída se fundava no conhecido "tripé": metas para a inflação, câmbio flutuante e superávits primários. Reconhecida aqui e lá fora como parte relevante do sucesso do Brasil, aquela política ganhou realce na análise das agências classificadoras de risco, que nos atribuíram o "grau de investimento" a partir de 2008. Com coragem e intuição, Lula manteve a política. A maioria do PT não gostou, mas se resignou. O exercício do poder falou mais alto.

Com a substituição de Antonio Palocci no Ministério da Fazenda (2006), a resistência à política econômica aumentou. Mudanças surgiram ainda no governo Lula, particularmente o uso de manobras contábeis para esconder a forte expansão de gastos de 2010. Agora, a crise mundial foi o pretexto para a guinada definitiva. Passou-se a privilegiar o crescimento e não a estabilidade de preços, embora o governo reitere seu compromisso com o controle da inflação. O "tripé" ainda está de pé, mas com ares de alicerces deteriorados, que em algum momento podem deixar o edifício ruir.

A guinada foi apoiada por notórios críticos da política econômica anterior. Comemorou-se o que lhes pareceu o advento da verdadeira independência do BC, que antes se teria curvado a interesses de segmentos, em relação promíscua com o sistema financeiro. Os bancos teriam influenciado elevações da Selic para aumentar os lucros. O raciocínio é tosco, mas costuma ser aceito pelos menos informados.

É preciso reconhecer, todavia, que a mudança é legítima. A presidente Dilma, eleita democraticamente, tem o direito e o poder de mudar a política econômica. Se estiver certa, os "desenvolvimentistas" se provarão corretos e o país recuperará perdas derivadas de erros do passado, inclusive no governo Lula. Entre os que apoiam a nova orientação, há quem sustente que a Selic nada tem a ver com o controle da inflação. A única consequência de sua redução seria a economia de bilhões para o Tesouro, hoje desperdiçados com as altas taxas de juros. Há "desenvolvimentistas" que não chegam a tanto, mas sustentam que a nova política manterá a inflação sob controle.

A hora da verdade virá com a inflação. O BC assegura que ela convergirá para a meta de 4,5% em 2012. Muitos analistas, entre os quais este escriba, não partilham desse otimismo. Para eles, a inflação de 2011 superará o limite superior da meta, que é de 6,5%, e poderá ficar perto de 6% em 2012.

A nova política econômica tem seus riscos, mas nos oferece a ocasião para um teste. Se estiver certa, será a glória para os "desenvolvimentistas", que por ela tanto clamaram. Em caso contrário, o fracasso nos levará de volta aos rumos anteriores, com muitos custos. Será uma pena se a queda da inflação vier do colapso da economia mundial. Seria um sinal falso, pois o resultado decorreria de um acontecimento externo e não da nova política.

GOSTOSA


EDITORIAL O ESTADÃO - Dinheiro mal gerido


Dinheiro mal gerido 
EDITORIAL 
O ESTADÃO - 02/10/11

Ao reconhecer que a área de saúde enfrenta um "problema sério de gestão", a presidente Dilma Rousseff apontou para uma das mais graves deficiências da administração pública brasileira, sobretudo a federal, e que não se restringe ao setor por ela mencionado. No caso do governo federal, a má qualidade de gestão se estende a praticamente todas as áreas, e uma de suas consequências mais visíveis e danosas para o contribuinte e para os cidadãos em geral é o atraso crônico dos programas de investimentos em melhoria e expansão dos serviços públicos. A sociedade paga impostos escorchantes, mas a contrapartida do governo, que é a oferta de serviços, vem com muita lentidão, quando vem, e com qualidade inferior à esperada.

Referindo-se especificamente à saúde, Dilma não se queixou da falta de dinheiro. "A gente tem recursos e o uso desses recursos tem de ser melhorado", disse a presidente à TV Record. "Nós vamos melhorar a gestão da saúde nesse país e, quando ficar claro para a população que ela precisa de mais coisa, ela mesma vai se encarregar de pedir", prometeu, fazendo referência indireta à recriação de um imposto específico para a área de saúde. "Temos de provar, o governo federal, estaduais, municipais, que podemos gerir bem a saúde e, a partir daí, começar a conversar claro com a população."

Se isso for feito, será possível constatar que, se bem aplicados, os recursos públicos atuais são mais do que suficientes para melhorar os serviços de saúde, sem cortar investimentos em outras áreas e sem a necessidade de um novo imposto.

Dinheiro existe, mas os investimentos em outras áreas não estão sendo feitos na velocidade necessária, pois, por problemas de gestão, os projetos demoram para sair do papel. Apontado há meses por instituições não governamentais e pela imprensa, o atraso na execução dos programas de investimentos começa a preocupar o próprio governo, como mostrou o Estado (29/9).

Característica do governo Lula, a dificuldade de gastar está se transformando em marca da administração petista, pois também o governo Dilma vem executando muito lentamente seus programas de investimentos. O ritmo é tão lento que até o secretário do Tesouro, Arno Augustin, teve de admitir isso em recente entrevista ao Estado.

O problema mais notório é o do Ministério dos Transportes, o mais afetado pela "faxina" nas áreas atingidas por denúncias de irregularidades. Essa é a pasta responsável pelo maior volume de investimentos federais, e a troca do ministro e da diretoria do Dnit paralisou muitas obras.

Mas Ministérios não alcançados pela "faxina" também apresentam resultados apenas sofríveis quanto à aplicação das verbas destinadas a investimentos. Embora atingido em março pelo corte de R$ 5,1 bilhões de sua dotação original de R$ 12,6 bilhões para este ano, o programa Minha Casa, Minha Vida ainda dispõe de um volume expressivo de dinheiro. Mas praticamente nada saiu do papel em 2011, por causa de entraves legais. Do ponto de vista contábil, o programa já pagou cerca de R$ 4 bilhões em 2011, mas são recursos incluídos na conta "restos a pagar", de compromissos assumidos em exercícios anteriores. Obras novas quase não há.

O Minha Casa, Minha Vida é parte do novo Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC 2, e resume a execução desse programa no governo Dilma. Embora o atual governo tenha desembolsado R$ 16,7 bilhões para o PAC, mais de 80% desse valor se refere a compromissos herdados do governo anterior.

Há sérios atrasos nas obras da Copa do Mundo - que, no que se refere aos estádios, recebem a atenção dos dirigentes do futebol. Mas as obras de mobilidade urbana, que serão o principal legado da Copa para o brasileiro comum, só receberam 1,1% dos investimentos previstos.

Ainda que tardio, pois surge nove meses depois do início de seu governo, o reconhecimento do problema pela presidente Dilma Rousseff é um passo essencial para buscar soluções. O País espera, de fato, que o governo seja capaz de realizar os investimentos que programou, no ritmo que programou.

HUMBERTO WERNECK - Literatura terminal



Literatura terminal 
HUMBERTO WERNECK
O ESTADÃ0 - 02/10/11

Você bate as botas e alguém grava na lápide um texto que o faria morrer de vergonha


Ao lado de discutíveis vantagens, morrer tem seus inconvenientes – e um deles é ficar exposto a uma subliteratura em mais de um sentido fúnebre. Você pode argumentar que àquela altura – ou fundura – já não seria o caso de se preocupar com questões estilísticas. Inês estando morta, tanto faz alguém gravar na pedra uma “saudade imorredoura”,quando a extinta criatura gostaria mesmo é que imorredoura fosse ela,não a saudade. Pode ser. Pra que tanta pose, doutor, pra que esse orgulho?, questionou em samba Billy Blanco, por sinal já chegado a esse estágio em que “todo mundo é igual quando a vida termina com terra em cima e na horizontal”.

Ainda assim, peço licença para voltar a uma questão que me parece grave – inclusive no sentido que tem, na língua inglesa, a palavra grave.

Você bate as botas e alguém manda gravar na lápide um texto que o faria morrer de vergonha, se morto já não estivesse. A morte é também isso. Por que, então, não cuidar do texto antes da fatal batida de botas?Como fez a escritora Dorothy Parker, ao imaginar letras minúsculas sobre uma vasta superfície de pedra: “Se você conseguiu ler aqui, é porque já chegou perto demais!” Também é dela este aqui: “Desculpe o pó...”

Confesso que para uso próprio ainda não aprontei algo brilhante, ou mesmo fosco, a ser lido pelos pósteros ao pé de minha campa. Já pensei em recorrer à dramática secura de uma inscrição que li no cemitério de Havana, verdadeiro grito gravado no mármore: ¡Irene Manuela!
Mas talvez não mereça a carga emotiva dos pontos de exclamação arrevesados – assim como não me julgo,em meus piores momentos, merecedor de algo com que me deparei ao perambular por um cemitério de defuntos finos de São Paulo em busca de artes funerárias de Victor Brecheret.Lá está,sob o nome de um fulano, numa lápide de granito negro: “A Bosta”. Sim, nem toda pá é de cal, e tudo vira pó, inclusive aquilo.

O fato de ser autor de um dicionário de lugares-comuns e frases feitas me criaria constrangimento se quisesse incidir na “saudade de seus entes queridos”. Mais coerente seria buscar inspiração num pocket book que já começa a ser curioso por ter a forma de uma daquelas lápides de cemitério inglês, com uma corcova no alto. Chama-se A small book of grave humour. Nele, certo Fritz Spiegl recolheu velhos epitáfios,mais hilariantes que lacrimogêneos.

Esta inscrição, por exemplo, trata commortal franqueza amemória de um defunto humilde: “Aqui jaz John
Taggart,homem honesto, baixo de estatura e manco de uma perna. Estava satisfeito com uma pequena participação que tinha numa lojinha em Wigtown, e isso era tudo.” Outra, ao reverenciar as virtudes morais da falecida, lança enxofre sobre a honra de suas conterrâneas:
“Aqui jaz a pobre Charlotte,que não morreu rameira, e sim virgem, aos 19 anos, algo raro de se ver nas vizinhanças.”

Dois epitáfios são obras-primas de humor nonsense:
Todos foram enterrados em Wimble, menos eu, que estou enterrado aqui.” “Aqui jaz John Higley,cujos pais morreram num naufrágio. Se tivessem sobrevivido, os dois estariam enterrados aqui.”

No túmulo de um líder mórmon, afamado por dotes não exatamente espirituais, o Fritz anotou: “Homem de muita coragem e de soberbo equipamento.”

Não faltam ao livro umas tantas reclamações póstumas:

“Ó morte cruel, como pôde você ser tão desapiedada, levando-o antes e me deixando para trás.Em vez disso, você deveria ter levado os dois, o que teria sido mais agradável para o sobrevivente.”

“Aqui jaz o corpo de Molly Dickie, a esposa de Hall Dickie Taylor. Com dois grandes médicos, meu adorado marido tentou, em vão, curar meus males. Por fim arranjou um terceiro, e aí eu morri.”

“Em memória de Charles Ward, filho zeloso, irmão amoroso e marido afetuoso. Nota: Este túmulo não foi
mandado erigir por sua mulher, Susan. Ela erigiu um túmulo para John Salter, seu segundo marido, esquecendo o afeto de Charles Ward.”

Como não me serve nenhuma das fórmulas reunidas pelo Fritz Spiegl, eu talvez acabe plagiando o poeta Mário Quintana, que, inconformado com a iminência de seu passamento, quis epitáfio nestes termos: “Eu não estou aqui.” Pois também eu pretendo não estar.

AGAMENON - Hoje ainda é dia de rock!


Hoje ainda é dia de rock!
AGAMENON
O GLOBO - 02/10/11

Roque in River continua mas o Brasil não parou. Eu não pretendia ir à Cidade do Rock essa semana, mas assim que soube tinha muito assalto na área fui correndo pra lá a fim de fazer uns ganhos. Isso porque a PM do Rio anda muito ocupada assassinando juízas indefesas e não tem tempo pra correr atrás da bandidagem do rock.

Além dos furtos, leio nos jornais que outro problema grave do Rock in Rio é a alimentação. Isso é uma mentira, uma invenção da mídia golpista! Eu comi uma gerente do Spoletto, uma atendente do Bob’s e uma garçonete do Habib’s, sendo que essa só me custou 40 centavos e a fila nem era tão grande assim. Revoltado com a onda de assaltos no Rock in Rio, o governador Serginho Cabral Júnior Filho mandou fechar a UPP do Complexo do Alemão e abrir uma UPP (Unidade Pacificadora do Pop) na Cidade do Rock. Mesmo porque a famosa comunidade afro-germânica carioca já está dominada. Dominada pelo tráfico. Mas a juventude brasileira não pode se deixar alienar pelo sexo, pelas drogas e pelo rock and roll.

Existem outras coisas para não se preocupar também. O STF, Supremo Tribunal de Frango, está travando uma luta de Ultimate Fight contra o CNJ, Conselho Nacional de Jujuba, que disse que existem bandidos escondidos atrás da toga. Para se defender dos ataques do ministro César Peludo, o CNJ está pensando em chamar o campeão casca grossa Anderson Silva. A Justiça no Brasil é injusta, corporativista, discriminatória e corrupta mas pelo menos tem uma coisa de bom: é lenta. Basta não ser preto, pobre ou puta, que você pode fazer qualquer coisa no Brasil.

Veja o caso do Edmundo Animal, que matou um montão de gente e não foi preso nem pela carrocinha. E agora, pra piorar a situação, me vem a ministra Irinão Lopes, da Secretaria de Políticas para as Mulheres querendo proibir o anúncio da Gisele Bündchen de calcinha. Segundo a ministra, que é a cara do cartunista cross dresser Laerte (veja a foto), a propaganda da Hope humilha as mulheres do sexo feminino. E ela tem toda a razão: a Gisele Bündchen, exibindo aquele corpaço desnudo e com tudo de fora, deixa qualquer criatura do sexo feminino humilhada.

A rigorosa ministra está mexendo em casa de marimbondo, quer dizer, marimbunda. Se ela proibir esse anúncio, milhares de homens revoltados irão às ruas protestar contra a liberdade de expressão e masturbação (direito de ir e vir), previstos na Constituição e fundamentais numa democracia. AGAMENON MENDES PEDREIRA quer proibir Isaura, a sua patroa, de andar de calcinha e sutiã em casa

Porque Marta não desiste - REVISTA ÉPOCA


Porque Marta não desiste 
REVISTA ÉPOCA

Para empregar uma definição aceita pela psicologia, profissão original da senadora Marta Suplicy (PT-SP), pode-se dizer que sua pré-campanha à prefeitura de São Paulo enfrenta um diagnóstico de transtorno bipolar. Entre os eleitores, ela é líder absoluta nas pesquisas de intenção de voto. Reconhecida nas ruas, é chamada para abraços e autógrafos. A caixa de e-mails de assessores vive recheada de mensagens de militantes que se oferecem para ajudar no que for preciso - até de graça. Numa plenária com cinco pré-candidatos, só Marta recebeu aplausos demorados. Quando foi discursar, senhoras de cabelos brancos, nenhuma maquiagem e roupas simples levantaram nas cadeiras brancas de plástico para tirar fotos de celular.

Da cúpula do PT, do governo Dilma Rousseff e do universo político do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Marta tem recebido sinais de indiferença e até agressividade. Patrocinada por Lula, a pré-candidatura do ministro da Educação, Fernando Haddad, já fez a maioria entre a bancada de vereadores paulistanos, tem apoio de prefeitos e ex-prefeitos da Grande São Paulo e, na semana passada, foi engrossada até por afilhados do presidente nacional da legenda, o deputado Rui Falcão, até então herói da resistência do partido a Haddad. Para deixar o caminho livre para Haddad, a presidente Dilma ofereceu até um ministério ao deputado Gabriel Chalita (PMDB-SP). Mas não ofereceu nada equivalente a Marta. O melhor que ela obteve foi a postura elegante do Planalto, que até agora não vetou nenhum de seus projetos no Senado, que incluem assumir relatorias que rendam dividendos eleitorais.

O grande problema de Marta chama-se Lula. Ele lançou a candidatura Haddad porque está convencido de que a liderança de Marta nas pesquisas é real, mas insuficiente para vencer numa cidade onde o PT ganhou apenas duas eleições entre as sete disputadas desde que a escolha passou a ser feita nas urnas. Os adversários dizem que Marta tem tido votação declinante e que, se fosse mesmo favorita, seu eleitorado já estaria acima dos 30% atuais. Muitos petistas também se queixam de que ela sabe de suas deficiências para conquistar novos eleitores, mas, "menina rica que sempre teve todas as bonecas na infância", como define uma ex-auxiliar, recusa-se a mudar para ser mais competitiva.

Não é a primeira vez que Marta e Lula se enfrentam em situações delicadas. Mas, desta vez, ela foi para a briga em público. Disse, em duas entrevistas, que Lula preferia perder em São Paulo ao escolher um candidato com 0% nas intenções de voto a abrir espaço a uma concorrente legítima e testada. O argumento de Marta é que Lula tem receio de vê-la transformar-se numa voz de peso no futuro do PT. Ela acredita que, interessado em manter poderes de ferro em 2014, seja para candidatar-se ao Planalto, para tentar o governo de Estado ou mesmo para seguir recebendo homenagens no exterior, Lula fará o possível para impedir que ela volte à prefeitura da maior cidade brasileira, acumulando musculatura para 2014 ou 2018.

Em função dessa postura, imperdoável na corte lulista, Lula resolveu "dar uma lição na Marta", dizem dirigentes petistas. Eles consideram que, mais tarde, ela pode até receber um prêmio de consolação para deixar a disputa de forma honrosa. Mas, por enquanto, deverá sentir a dor do isolamento. Quando os dois conversaram, uma única vez, para falar sobre a prefeitura, Lula lhe disse educadamente que preferia que Marta ficasse no Senado, onde poderia cumprir missões importantes para o governo Dilma. Também lembrou que seu suplente, o vereador Antonio Carlos Rodrigues, é do PR, sigla amaldiçoada após a faxina no Ministério dos Transportes. Segundo o relato de um assessor, nessa hora Marta sorriu em tom irônico, reclamando que Lula não precisa ser tão pouco sincero.

Os assessores de Marta dizem que o problema é mais profundo que a eleição municipal. Acusam Lula de não aceitar a postura "insubmissa" de Marta. Como argumento, dizem que só em 2002, quando Marta era prefeita, Lula foi - pela única vez - o candidato presidencial mais votado em São Paulo. Após a vitória na eleição municipal, Marta reuniu seu primeiro escalão para avisar que o mandato seria dividido em duas partes: antes e depois da eleição presidencial. "Estudamos as tarefas que poderiam ajudar na eleição de Lula, e elas viraram nossa prioridade", diz um ex-secretário. Marta correu então para distribuir uniformes a alunos de escolas municipais. Sem dinheiro para construir corredores de ônibus, a prefeitura pôs cones de borracha nas avenidas para reservar áreas exclusivas ao transporte coletivo. As crianças ganharam duas refeições nas escolas municipais e vans gratuitas para ir às aulas.

Em 2006, Marta queria concorrer ao governo paulista. Lula apoiou Aloizio Mercadante e, com o auxílio de prefeitos, derrotou-a por apenas cinco votos no partido. No fim do primeiro turno, o escândalo dos aloprados deixou Mercadante fora de combate. Para pedir votos a Lula no segundo turno, a recém-abandonada Marta subiu de novo ao palanque. A votação de Lula aumentou entre os dois turnos. Em 2010, ela foi traída pelos petistas que, na reta final, descarregaram votos em Netinho, do PCdoB, tentando impedir sua ida ao Senado.

Quem conversa com Marta fica com a certeza de que ela se sente muito usada e pouco retribuída. Seu bom humor se reflete na conhecida capacidade de produzir frases espirituosas. Falando em hipóteses, se disse convencida de que o tucano José Serra ainda pode voltar à disputa, quem sabe com a camisa do PSD de Gilberto Kassab. "Se disputar a prefeitura, Serra pelo menos sai do Twitter." Dona do eleitorado e do rosto político do PT na cidade, Marta diz que vai até o fim porque não tem muito a perder. Se vencer as prévias, o partido será obrigado a ajudá-la. Se for derrotada, os petistas virão implorar que ajude Haddad a tornar-se um candidato crível. Mais que um consolo, pode ser uma vingança.

MIRIAM LEITÃO - Tudo dominado


Tudo dominado
MIRIAM LEITÃO
O GLOBO - 02/10/11

O movimento social está quase todo dominado. A UNE não representa os estudantes, mas sim o PC do B que faz parte da base política do governo, recebe uma enorme mesada, e entre seus tristes papéis está de vez em quando sair em defesa de acusados de corrupção, quando isso é do interesse do governo. As centrais sindicais também vivem de dinheiro público e dos projetos políticos de seus dirigentes. Muitas ONGs, até as que defendem a ética, recebem recursos públicos.

O Brasil tem poucos mecanismos e instituições para o combate à corrupção. Alguns se esforçam, mas nada vai muito adiante. Já foram demitidos nos últimos oito anos, segundo o secretário-executivo da Controladoria-Geral da União (CGU), Luiz Navarro, 3.500 funcionários, 70% por corrupção. Mas, como ele lembra, "ninguém está preso". A Polícia Federal faz operações em que revela fatos estarrecedores, mas o que incomoda o governo e mobiliza a cúpula do Judiciário é se as pessoas devem ou não ser algemadas. Além disso, a prisão, como se sabe, é breve porque é apenas para o levantamento de provas. Depois, entra-se num processo longuíssimo que a opinião pública não consegue acompanhar nem entender. A impunidade se instala como um vírus que vai corroendo a confiança nas instituições democráticas.

A declaração da ministra Eliana Calmon repercutiu porque é verdadeira. Obviamente num país onde a corrupção avança tanto não há um poder blindado contra o mal: há bandidos de toga, com mandato, com ministério, com farda. Eles se infiltraram em todos os poderes, ministro Cezar Peluso, infelizmente. O alerta da corregedora nacional de Justiça fortalece o Judiciário e não o expõe como pensaram os críticos da ministra. Protege-se a integridade de um poder combatendo os que não merecem fazer parte dele, e não com o costumeiro espírito de corpo que acontece, com frequência, no Legislativo.

Num programa que fiz esta semana na Globonews sobre corrupção, o secretário-geral da ONG Contas Abertas, Gil Castello Branco, falou de um estudo da Fiesp, feito recentemente, que quantifica o custo da problema. Do programa, participou também Luiz Navarro, da CGU.

- É difícil quantificar porque corrupto não dá recibo, nem nota fiscal, mas o cálculo é que o custo fique entre R$50 bilhões e R$84 bilhões. No menor cálculo, é o que o governo arrecadaria com uma nova CPMF - diz Gil Castello Branco.

O Contas Abertas estabeleceu como princípio não receber recursos públicos. Por isso não faz convênio nem com órgãos do executivo que trabalham na mesma direção, de aumento da transparência do gasto público, como a CGU. A Controladoria, pelo seu lado, tem inúmeras limitações exatamente por não ser aquilo que o PT, como lembrou Gil, propunha na campanha: uma agência independente com orçamento próprio. A CGU é órgão da Presidência, não pode investigar a Presidência. O Itamaraty e o Ministério da Defesa estão fora da sua alçada. O Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que os ministros não podem responder a sindicâncias, nem podem ser auditados pela CGU, porque exercem cargos políticos e não administrativos.

- A CGU audita, investiga, e forma o conjunto de elementos para que a Polícia Federal ou o Ministério Público possam propor a ação. Até o momento em que a ação é ajuizada tudo vai bem, depois, há uma quantidade incrível de recursos e prazos. O STJ tomou a decisão de não aceitar interceptação telefônica de juiz de primeira instância alegando que antes é preciso esgotar todas as instâncias de investigação. Isso põe em derrocada um instrumento importante - diz Navarro.

A CGU tem feito um trabalho importante, mas seus poderes, recursos e área de atuação são insuficientes. Há também restrições incompreensíveis.

Por outro lado, as ONGs que deveriam fiscalizar o governo são muito dependentes do próprio governo: R$3 bilhões foram transferidos para instituições sem fins lucrativos. O Orçamento é difícil de ser entendido e há ainda zonas de sombra, explica Gil: o Sistema de Convênios onde está o dinheiro para as ONGs, os gastos das estatais têm pouca transparência. As informações sobre aditivos aos contratos não podem ser acessadas. O Sindec, onde estão os aditivos aos contratos do Ministério dos Transportes, também não estão disponíveis.

Neste contexto, a melhor notícia que surgiu recentemente foram as manifestações espontâneas como as do 7 de setembro, que, em Brasília, levaram 25 mil pessoas às ruas, e não por convocação de sindicato ou partido político. O movimento na mídia social é mais intenso, lembrou Navarro. Uma proposta no site do Senado para que corrupção seja considerado um crime hediondo recebeu 450 mil acessos. No Congresso, lembrou Gil, há 100 projetos engavetados que combatem a corrupção. Com tantas teias prendendo o avanço institucional do Brasil, a grande esperança é de fato o movimento emergente e espontâneo contra a corrupção.

A Controladoria-Geral da União é órgão de assessoramento da Presidência da República, tem recursos definidos pelo governo, está proibida de investigar ministros. Não audita algumas áreas do governo. O Conselho Nacional de Justiça chegou a apoiar uma proposta que em última instância reduz seus poderes. Não há um corrupto preso. O Brasil está sem ferramentas para combater a corrupção.

BARBARA GANCIA - Até mais, Darth Vader!



Até mais, Darth Vader!
BARBARA GANCIA
FOLHA DE SP - 02/10/11 

Adeus, estou de partida. Vou-me embora para o Marrocos fazer uma operação de mudança de sexo, nos encontramos na volta. Deseje-me sorte que eu vou precisar.

Está bem, carrego um pouco nas tintas, talvez a cirurgia a que serei submetida não seja tão dramática, quem sabe eu não possa estar exagerando?

Mas não deixa de ser verdade que me sinto como se estivesse a caminho de uma daquelas obscuras clínicas marroquinas famosas no mundo inteiro por efetuar "extreme makeover" no conjunto motor e funilaria.

A intervenção que farão em mim não será tão radical, admito, nenhum órgão relevante me será extirpado ou adicionado e a previsão é que eu vá entrar e sair andando do hospital no dia em que a cirurgia foi marcada.

O procedimento, disse-me o doutor, é simples e indolor, o médico apenas me aplica um sossega-leão, introduz um bisturi na minha laringe, punciona (hum, sexy!) os edemas que se formaram ao longo das minhas cordas vocais -resultado de anos de consumo de cigarro, de matraquice incessante e da frustrada tentativa de superar o volume das caixas de som dos ambientes (muito finos, diga-se) que frequentei.

Fui diagnosticada com um problema chamado edema tabágico, o que eu imagino que deva ser a antítese da condição vivida pelo lutador Anderson Silva. Nosso campeão do vale-tudo tem voz de Chapeuzinho Vermelho e eu, de Lobo Mau.

Outro dia fui brincar de Lego Star Wars com um amigo de seis anos. Ele logo impôs: "Eu sou o Luke Skywalker". Como assim? "E eu sou quem?", perguntei, pensando que a resposta seria "Princesa Léa". "Você é o Darth Vader." Bem, se é assim, o senhor que se vire aí com seu jogo, seu controle e seu "nunchuck" que eu vou pra casa fazer uma assadeira de brigadeiro para comer sozinha. Quem sabe não decida fatiar um bode com sabre de luz para acompanhar?

Diga a verdade, um comentário desses não era para dar uma emburrada generalizada? É muito traiçoeiro esse tal de edema tabágico. Ele não prega peças só em crianças de seis anos. Trabalhei uma legião de atendentes de telemarketing no ouvido vibrando. Na décima vez que eu interrompo para proclamar: "Veja bem, não é senhor, é senhora" e o sujeito do outro lado não consegue conceber que eu não esteja tirando uma da cara dele, meu humor vai pelo ralo junto com meu dia, minha semana e meu mês.

Resolvi dar um basta nessa novela, mesmo porque meu estilo de vida não tem mais nada a ver com a disputa palmo a palmo por decibéis com a guitarra lá em cima do palco. Incrível como a voz carrega uma identidade e uma história, e a minha (dois maços por dia abandonados ao longo da estrada) não comunga mais comigo. Nem meu cliente merece, não é mesmo?

Chega de submeter os ouvintes da Bandnews FM à possibilidade de partir o carro no poste por conta do susto que a Cuca vem pegar Gancia pode ocasionar. A partir da outra semana, serei uma nova eu. Bom dia luz do sol, bom dia arco-íris, adeus, trevas do bueiro! Farei minha reentrada cantando "You Make Me Feel Like Dancing", do Leo Sayer, em alguma mídia que você consiga acessar. Me aguarde.

GOSTOSA


JOSUÉ GOMES DA SILVA - O culpado é o doente?



O culpado é o doente?
JOSUÉ GOMES DA SILVA 
FOLHA DE SP - 02/10/11

Setenta e cinco por cento dos brasileiros, ou cerca de 143 milhões de pessoas, população superior à do Japão, dependem do SUS (Sistema Único de Saúde). Os outros 25%, ou 47 milhões de cidadãos, número equivalente à totalidade dos habitantes da Espanha, são capazes de pagar por planos/seguros de saúde privados. Contudo tanto uns quanto outros enfrentam problemas.
São bastante conhecidas as reclamações dos pacientes quanto à saúde no Brasil. Mas os milhões de brasileiros que recorrem aos planos de saúde privados, e que pagam custos crescentes, muito acima da inflação (nos últimos três anos, só os empresariais subiram 43%), não deveriam ter tantos obstáculos no atendimento.
Tal cenário lembra a sabedoria popular: "Falta pão e ninguém tem razão", como evidencia a presente greve em rodízio dos médicos credenciados nesses planos.
Tais profissionais estudam seis anos, fazem mais dois de residência, outros de especialização, compram livros, assinam revistas técnicas e participam de cursos e congressos caros para se manterem atualizados. Trabalham muito e não são remunerados nem pelo piso da tabela da Associação Médica Brasileira.
Os planos, por sua vez, argumentam que seus custos são crescentes, já que, entre outros fatores, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) exige maior número de procedimentos cobertos, impõe limites máximos no prazo de atendimento e no reajuste dos seguros individuais. E há quem reclame dessa ação reguladora...
Por sua vez, os custos dos hospitais e dos tratamentos médicos são crescentes. Fator interessante, pois o uso de tecnologia avançada eleva custos em vez de reduzi-los. Os laboratórios, que investem pesado em pesquisa e desenvolvimento, sofrem com patentes, preços de insumos e aprovação de novos medicamentos.
Fabricantes de equipamentos se justificam na mesma toada.
Buscando manter sua saúde financeira, as seguradoras, setor cada vez mais oligopolizado, tentam conter custos e criam dificuldades na prestação dos serviços, dão preferência a planos empresariais em vez dos individuais.
Afinal, de quem é a culpa por tantas desventuras? Quais são os responsáveis por esses graves problemas da saúde? Cento e noventa milhões de brasileiros gostariam de uma resposta convincente!
Se algumas pessoas acham que pagam muito e recebem pouco, há quem retruque afirmando que ganha pouco e oferece muito. Por isso, doutores fazem greves, hospitais deixam de atender pacientes, fabricantes de remédios aumentam preços e planos de saúde dificultam, cada vez mais, os serviços aos segurados.
Diante desse quadro, cabe a pergunta: será, então, que a culpa é nossa, dos doentes?

MAC MARGOLIS - O inferno de Evo Morales



O inferno de Evo Morales
 MAC MARGOLIS
O ESTADÃO - 02/10/11

Quando se lançou candidato à presidência da Bolívia em 2005, Evo Morales conseguiu atrair bolivianos de todos as bandeiras. Por mais que esse líder sindical de ascendência aimará ostentasse suas raízes sectárias, muita gente da elite boliviana - branca, urbana e abastada - apostou na sua destreza política e articulação social.

Se não morriam de amores por seus arroubos socialistas, pelo menos enxergavam nesse jovem e carismático líder um bálsamo para as profundas fendas sociais e raciais do convulsionado país andino. "Acreditava que ele, só ele, era capaz de promover a paz", disse um ex-diretor de uma agência internacional de desenvolvimento com larga experiência na Bolívia.

Bons tempos, aqueles. Hoje a Bolívia está mais dividida que nunca. A divisão não é apenas o fosso milenar, entre brancos e índios ou ricos fazendeiros da baixada e pobres camponeses dos Andes. Na Bolívia de Evo, é o índio contra o mestiço, cocaleiros contra ambientalistas, governo contra governo, e todos contra a polícia.

A explosão social se desenha há anos, mas se potencializou nos últimos dias, com a polêmica sobre a construção de uma nova estrada que atravessará o seio do país, do norte ao sul. São 306 quilômetros apenas, uma obra modesta pelo padrão heroico da engenharia sul-americana.

A OAS, construtora brasileira que toca a obra, já encarou empreitadas bem mais complexas. Mas a julgar pela convulsão que se criou, deve ser a maior encrenca por quilômetro do hemisfério. E, se o imbróglio se alastrar, pode acabar trincando ainda mais a quebradiça nação andina, fragilizando um governo já enfraquecido e ainda contaminando as relações entre a Bolívia e seu maior parceiro econômico, o Brasil.

Lançada há dois anos, a rodovia ligará a pequena San Ignacio dos Moxos, no departamento amazônico do Beni, a Villa Tunari, em Cochabamba, ao custo de US$ 415 milhões. Apesar de cruzar terras remotas e pouco interessantes à economia brasileira, terá financiamento de US$ 322 milhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), pelo acordo celebrado com pompa pelos governos de Evo e Lula, com direito a juras fraternas e muita flor de coca, safra principal da região e matéria-prima da cocaína.

Sim, a estrada corta áreas protegidas, o Parque Nacional e Território Indígena Isiboro-Securé ( Tipnis), com impactos incertos sobre a fauna, flora e diversas comunidades nativas que lá moram. Mas tudo valia pela "integração nacional" e pelo resgate das preteridas etnias, artigos de fé da nova Bolívia, rebatizada ao sabor da Constituição de Evo de Estado Plurinacional.

Os indígenas do Tipnis tiveram outra ideia e, em agosto, começaram uma longa - e pacífica - caminhada de protesto rumo à La Paz. A caminho, o protesto engordou, com adesões de peso, de diversas comunidades indígenas, a nata do eleitorado de Evo.

O governo reagiu e, seguindo ordens que ninguém assume, enviou a tropa de choque à frente. Houve cassetetes, gás lacrimogêneo, tiros, dezenas de feridos e crianças desaparecidas. Agora vem o sismo político. Uma meia dúzia de ministros e autoridades do governo caíram e Evo leu um pedido de desculpas forçado à nação.

A julgar pelo clima nas cordilheiras, foi pouco. O Movimento Sem Medo, ex-aliado de Evo e agora oposição ferrenha, abriu queixa no Ministério Público contra os responsáveis pela repressão. Sobrou ainda para OAS, acusada de superfaturar a estrada. A suspeita - sempre negada pela construtora - é antiga e já vazou até pelo WikiLeaks, mas ganhou nova vida no rescaldo da crise do Evo.

Corrupção, conflito e bravatas. A história política da Bolívia é a de um país com memória longa e pavio curto. Só na última década, irrupções sociais levaram a confrontos violentos, derrubando os presidentes Gonzalo Sánchez de Lozada, em 2003, e Carlos Mesa, dois anos depois. Assim emergiu Evo, esperança das cinzas. Agora, arrisca-se acabar nelas.

PAULO COELHO - A história de Buda - final

A história de Buda - final
PAULO COELHO 
DIÁRIO DO NORDESTE - 02/10/11

Na semana passada contei aqui como Sidarta, filho de um rei do Nepal, resolveu abandonar tudo depois de tomar conhecimento do sofrimento humano. Ele passou seis anos meditando, mas tudo que conseguiu foi enfraquecer seu corpo. No momento em que este artigo começa, está recuperando-se de um quase afogamento, bebeu leite, e seus discípulos o abandonaram porque achavam que já não resistia à tentação.

Animado com a refeição que acabara de comer, ele não deu importância à partida dos antigos discípulos; sentou-se junto a uma figueira, e resolveu continuar meditando sobre a vida e o sofrimento. Para testá-lo, o deus Mara enviou três de suas filhas, que procuraram distraí-lo com pensamentos sobre o sexo, a sede, e os prazeres da vida. Mas Sidarta estava tão absorto em sua meditação, que não percebeu nada disso; naquele momento, ele passava por uma espécie de revelação, recordando-se de todas as suas vidas passadas. À medida que fazia isso, lembrava-se também das lições que havia esquecido (já que todos os homens aprendem o necessário, mas raramente são capazes de utilizar o que aprenderam).

No seu estado de êxtase, experimentou o Paraíso (Nirvana), onde "não há terra, nem água, nem fogo, nem ar, que não é este mundo nem outro mundo, e onde não existe nem sol, nem lua, nem nascimento, nem morte. Ali está o fim de todo o sofrimento do homem."

No final daquela manhã, ele atingira o verdadeiro sentido da vida, e transformara-se em Buda (o Iluminado). Mas, ao invés de permanecer neste estado pelo resto de seus dias, resolveu voltar ao convívio humano e ensinar a todos sobre o que tinha aprendido e experimentado.

Aquele que antes se chamava Sidarta, agora transformado em Buda, deixou para trás a árvore sob cujos ramos conseguira atingir a iluminação, e partiu para a cidade de Sarnath, onde encontrou os seus antigos companheiros; desenhou um círculo no chão, para representar a roda da existência que leva constantemente ao nascimento e à morte. Explicou que não tinha sido feliz como um príncipe que possuía tudo, mas tampouco aprendera a sabedoria através da renúncia total. O que o ser humano devia buscar, para chegar ao Paraíso, era o chamado "caminho do meio": nem buscar a dor, nem ser escravo do prazer.

Os homens, impressionados com aquilo que ouviam de Buda, resolveram seguí-lo, peregrinando de cidade em cidade. À medida que escutavam a boa nova, mais e mais discípulos e discípulas se juntavam ao grupo, e Buda começou a organizar comunidades de devotos, partindo do princípio que eles podiam se ajudar mutuamente nos deveres do corpo e do espírito.

Em uma dessas viagens, Buda regressou à sua cidade natal, e seu pai sofreu muito ao vê-lo pedindo esmolas. Mas ele beijou seus pés, dizendo: "o senhor pertence a uma linhagem de reis, mas eu pertenço a uma linhagem de Budas, e milhares deles também viviam de esmolas." O rei lembrou-se da profecia que fora feita durante a sua concepção, e reconciliou-se com Buda. Seu filho e sua mulher, que por muitos anos se queixavam de terem sido abandonados, terminaram por compreender sua missão, e fundaram uma comunidade onde seus ensinamentos passaram a serem transmitidos.

Quando estava chegando aos oitenta anos de idade, comeu um alimento estragado, e soube que iria morrer de intoxicação. Ajudado pelos discípulos, conseguiu viajar até Kusinhagara, onde deitou-se pela última vez ao lado de uma árvore.

Buda chamou seu primo, Ananda, e disse:

"Estou velho e minha peregrinação nesta vida está próxima do final. Meu corpo parece uma carroça que já foi muito usada, e mantém-se funcionando apenas porque algumas de suas peças estão precariamente amarradas com tiras de couro. Mas agora basta, é o momento de partir."

Depois virou-se para os seus discípulos, e quis saber se alguém tinha alguma dúvida. Ninguém disse nada. Três vezes fez a pergunta, mas todos permaneceram em silêncio.

Disse então suas últimas palavras:

"Tudo que foi criado está sujeito à decadência e à morte. Tudo é transitório. (A única coisa verdadeira é): trabalhem a própria salvação com disciplina e paciência."

Buda morreu sorrindo. Seus ensinamentos, hoje codificados sob a forma de uma religião filosófica, estão espalhados por quase toda a Ásia. Consistem, em essência, de uma profunda compreensão de si mesmo, e de um grande respeito pelo próximo.

AFFONSO CELSO PASTORE - Riscos de uma atitude ousada



Riscos de uma atitude ousada
AFFONSO CELSO PASTORE 
O Estado de S.Paulo - 02/10/11

O Banco Central tomou a decisão de iniciar um corte precoce da taxa de juros, afirmando que não há riscos de que a inflação se situe acima da meta de 4,5% em 2012. É uma opção extremamente arriscada, e para garantir que não resulte apenas em uma inflação persistentemente acima da meta, teria de contar com a cooperação da política fiscal, com a elevação da meta de superávit primário para conter a demanda agregada e baixar a taxa real "neutra" de juros.

Não se trata de uma elevação transitória do superávit primário, como a insinuada pelo Ministro da Fazenda poucos dias antes de o Banco Central iniciar o corte de juros, quando anunciou que o governo não gastaria a receita extraordinária de R$ 10 bilhões, dois quais R$ 6 bilhões vieram de uma ação judicial perdida pela Vale do Rio Doce. O que é preciso é uma elevação permanente do superávit primário, livre das manobras que mascararam o seu efeito sobre a demanda agregada na fase das "políticas contra cíclicas", em 2008/2009.

Duas são as ações necessárias. A primeira é uma elevação permanente do superávit fiscal primário que leve a uma queda da taxa real de juros neutra. A dimensão desse ajuste teria de ser suficiente para trazer o déficit nominal para zero em um horizonte de tempo não muito longo. A segunda seria uma alteração na composição dos gastos públicos, reduzindo a proporção das despesas correntes, de forma a aumentar a poupança do setor público.

O Brasil é um país com baixas poupanças domésticas, e o financiamento de taxas mais elevadas de investimento implica a absorção de poupanças externas, que é realizada através do aumento das importações líquidas. Essa dependência se elevou nos últimos 20 anos. Nas décadas de 1970 e 1980, uma importação líquida de 4% era necessária para gerar taxas de investimento de 25% do PIB, que, às atuais taxas de crescimento da população economicamente ativa e da produtividade total dos fatores, levaria a uma taxa de crescimento do PIB em torno de 5,5% ao ano.

Mas, naqueles anos, o governo era um poupador, e atualmente tem uma poupança negativa. A queda da poupança faz com que essa mesma importação líquida seja, atualmente, associada a taxas de investimento próximas de 19% do PIB, que levam a uma taxa de crescimento menor, em torno de 4,5% ao ano. Se quisermos crescer mais, teremos de aumentar a poupança total doméstica, e isso se inicia com o aumento da poupança do setor público.

O crescimento econômico também é limitado pela elevada taxa real de juros. Ela não é alta por uma teimosia do Banco Central, que estaria apenas satisfazendo o desejo de lucro dos grandes bancos, como apontam análises que se baseiam na teoria conspiratória, e não na teoria econômica. Ela deriva do fato de que a taxa "neutra" real de juros - a que equilibra oferta e procura - é ainda muito elevada. Já foi mais elevada no passado, quando a dívida pública era maior, gerando prêmios de risco mais altos nos bônus de dívida soberana, e pode cair ainda mais se o governo dimensionar os superávits primários para reduzir aceleradamente a dívida pública.

Tais mudanças na política fiscal permitiriam taxas maiores de investimento com menores déficits nas contas correntes, ao lado de taxas reais de juros persistentemente menores. Mas é preciso resistir a passes de mágica, como o de que o déficit nominal deveria ser reduzido cortando a taxa de juros, e não elevando o superávit primário. Para que essa terapia tivesse sucesso, a inflação não poderia depender da taxa de juros. Quem não dá qualquer importância às evidências empíricas e se contenta negando qualquer relação entre os juros reais e a demanda agregada, simplesmente postula que a inflação é exógena, e que a elevação da taxa de juros serve apenas para aumentar o lucro dos bancos e valorizar a taxa cambial. Se nos contentarmos em habitar o mundo da fantasia e seguirmos essa recomendação, estaremos a um milímetro de distância da reintrodução, no Brasil, da dominância fiscal. Isto é, estaríamos colocando o Banco Central a serviço de uma política fiscal mais expansionista, levando, como no passado, a inflações mais elevadas.

Vale a pena recordar um pouco da história da dominância fiscal e do descontrole inflacionário no Brasil.

No governo Kubitschek não havia um banco central. O Banco do Brasil era ao mesmo tempo um banco comercial comum e uma autoridade monetária, à qual o Tesouro tinha acesso direto, financiando os déficits com a emissão de moeda. A ambição de "crescer 50 anos em 5" disparou os gastos públicos, e a inflação cresceu para gerar a arrecadação do imposto inflacionário.

O PAEG (Plano de Ação Econômica do Governo) começou a corrigir esse problema quando realizou uma reforma tributária, controlou os gastos públicos e criou um banco central com a função única de realizar a política monetária. Era um passo adiante, mas tinha uma falha. As autoridades julgavam que não precisavam eliminar a inflação, mas simplesmente aprender a conviver com ela. Somente era possível vender títulos públicos se estes fossem protegidos da erosão do imposto inflacionário, o mesmo ocorrendo com as hipotecas, e por isso foi criada a correção monetária.

Mas, se a indexação poderia proteger da inflação os títulos públicos e as hipotecas, porque não aplicar o mesmo mecanismo a preços, salários e à taxa de câmbio, preservando a competitividade das exportações?

A consequência foi a perda de qualquer âncora nominal que permitisse manter a inflação sob controle. Em um mundo com mobilidade de capitais não há controle monetário quando há metas para o câmbio real. A taxa cambial não pode ser a âncora nominal, porque é indexada às inflações passadas, e a moeda não pode ser a âncora nominal, porque dada a mobilidade de capitais se ajusta passivamente aos choques inflacionários. Sem âncora nominal, e com todos os preços e salários corrigidos pela inflação passada, esta se projeta indefinidamente para o futuro.

Quando em 1979 o governo Geisel reagiu à crise internacional optando por não realizar um "ajustamento", e sim por "crescer para fora da crise", o fez induzindo empresas estatais a se endividarem no exterior, financiando-se com empréstimos externos permitidos pela "reciclagem de petrodólares". A política fiscal foi expansionista, não através do aumento do déficit público do governo central, mas através do aumento dos gastos de empresas estatais. O aumento da dívida externa financiava os investimentos, mas gerava a expansão monetária e do crédito, porque as metas para o câmbio real tornavam impossível o controle monetário, destruindo qualquer âncora nominal que contivesse o crescimento da inflação. O "choque inflacionário" se iniciava com a política "fiscal" expansionista dos investimentos de empresas estatais, e se propagava pela submissão do Banco Central, que não tinha instrumentos, porque naquele regime econômico a moeda se ajustava passivamente.

Atualmente a economia brasileira não é indexada, e a estabilidade é garantida por um Banco Central que deveria ser totalmente independente. O temor é que ele esteja sendo empurrado para o experimento de reduzir a taxa de juros, amainando seu compromisso com a meta de inflação, e buscando "crescer para fora da crise", derrubando a taxa nominal de juros que levaria à queda dos déficits públicos nominais.

Se o mundo entrar em uma recessão suficientemente grande para desacelerar a economia brasileira, essa estratégia temporariamente terá sucesso. Mas será um sucesso restrito ao período da crise, e não conduzirá a uma queda permanente da taxa real de juros, nem permitirá que o país cresça mais com déficits menores nas contas correntes. Se, contudo, a desaceleração mundial for menor, colheremos uma inflação persistentemente mais elevada, que somente poderá ser combatida restaurando uma total autonomia do Banco Central, e seguindo uma política fiscal que eleve os superávits primários e a poupança do setor público.

JOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS - A volta da aliança inflacionária



A volta da aliança inflacionária
JOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS 
O Estado de S.Paulo - 02/10/11

O Imposto de Produtos Industrializados (IPI) dos carros importados foi recentemente elevado em 30 pontos porcentuais. Os carros pequenos que pagam 7% vão pagar 37%, e os de 25% serão tributados em 55%, um pesadíssimo aumento. O anúncio foi feito perante uma animada plateia de industriais e sindicalistas, perante os quais utilizou-se o argumento de que é preciso proteger a produção e o emprego nacionais. Será?

Não parece ser necessariamente o caso, uma vez que, dados acordos existentes, os carros produzidos no Mercosul e no México (em sua imensa maioria pelas montadoras já no Brasil há muito tempo), não serão atingidos. As importações dessas regiões correspondem a mais de 70% do total de veículos trazidos do exterior. Assim, o grosso do impacto será sobre os coreanos e chineses, e o efeito sobre o emprego e a produção no Brasil será muito modesto. O efeito maior é limitar a concorrência e não proteger a produção nacional e, portanto, permitir a elevação de preços. O peso de 30% de impostos adicionais certamente será distribuído ente redução de margens e elevação de preços ao longo do tempo.

Além do efeito concorrência, pode ser dito que:

1 - O consumidor será prejudicado pela redução das oportunidades de escolha e porque a maioria dos carros aqui produzida é bem antiga e de pior qualidade. A classe média vai pagar a conta.

2 - O impacto líquido no emprego (resultado de eventual maior produção local, depois de descontada a importação do México e do Mercosul, e considerando o menor crescimento dos sistemas de distribuição dos veículos que vão pagar mais imposto) deve ser modestíssimo, se positivo. Até onde sei, a produção do México é a mais beneficiada porque, pelo acordo atual, os carros lá produzidos podem ter até 30% de conteúdo local e não os 60% aplicados no acordo do Mercosul para Brasil e Argentina. No caso do Uruguai, o conteúdo é de 50% (decreto 4458, de 5/11/2002).

3 - O investimento em novas fábricas de montadoras que aqui ainda não produzem fica prejudicado, porque para não pagar o imposto será preciso utilizar pelo menos 65% de componentes nacionais. Ora, acho que desde a instalação da indústria automotiva no Brasil nunca uma planta começou a produzir com tal grau de nacionalização. É mais uma razão para se limitar a concorrência.

Na verdade, o que temos é a reedição de um movimento antigo, dos tempos da superinflação pré-Real, que foi batizado de coalizão inflacionária. Este termo foi cunhado e utilizado pelo economista argentino José Luiz Machinea para entender a inflação daquele país; Machinea argumentava que as indústrias mais fortes se entendiam com os sindicatos mais poderosos, especialmente no ramo automotivo, par a conceder generosos acordos salariais, que depois eram repassados aos preços, movimento possível dado o fechamento da economia ante a competição internacional.

O mesmo argumento passou a ser utilizado na explicação da nossa inflação dos anos 80, agravado pelo fato de que as usinas de aço, estatais na época, eram levadas a não elevar o preço das chapas para não pressionar a inflação, distorcendo ainda mais os preços relativos. A correção monetária generalizada e políticas expansionistas contribuíam para realimentar a alta dos preços. Foi essa situação que acabou levando à ideia de que a abertura à concorrência externa seria uma precondição essencial para um ataque bem-sucedido ao processo inflacionário. Da mesma forma, a privatização seria indispensável para melhorar a política fiscal (por exemplo, o subsídio ao aço custou ao Tesouro mais de US$ 20 bilhões nos anos 80) e elevar a eficiência da economia como um todo, o que acabou ocorrendo no Plano Real.

O novo plano automotivo lembra muito o passado. Permite entender porque os acordos salariais recentes na indústria automotiva foram tão generosos, variando de 14 a 20%, quando se consideram o reajuste geral e os valores fixos em reais a propósito de distribuição de resultado, bônus e outros esquemas. A maior diferença em relação ao passado está na elevação de tributos ao invés da concessão de subsídios diretos e indiretos. Entretanto, a pressão inflacionária subsequente é a mesma.

Câmbio. O real se desvalorizou forte nestes dias. Enquanto escrevo este artigo está em R$ 1,86 por dólar.

Várias são as razões para este movimento, a primeira delas a recente valorização do dólar lá fora, resultado da chamada fuga para a qualidade. Reforça esse movimento uma elevação das remessas de filiais brasileiras de empresas internacionais para as matrizes, evidentemente uma decorrência da piora da situação econômica, especialmente na Europa. Adicionalmente, a grande alteração das regras cambiais produziu uma mudança forte nas operações das tesourarias e de arbitragem. Isso decorreu menos do imposto de 1% sobre derivativos, mas muito mais por conta do enorme grau de arbítrio que agora dispõe o Conselho Monetário Nacional (CMN) para alterar, de um dia para o outro, regras sobre as alíquotas do IOF, margens etc. Basta pensar que o imposto pode, por exemplo, subir de 1% para 5% ou 10%, impondo perdas enormes nas operações. Com este grau de risco, muitos aplicadores deixaram de operar; outros alteraram a estrutura das operações, ficando comprados no Brasil e vendidos no balcão no exterior, ao contrário do que se fazia antes; por sua vez, as tesourarias logo perceberam que a ausência de vendedores criou oportunidades lucrativas na compra de dólares. Hoje apenas os exportadores e o Banco Central são vendedores, o que torna a moeda brasileira leve para depreciar, mas com maior grau de incerteza.

Prever o curso do dólar é sempre atividade de elevadíssimo risco, especialmente com o mercado manco, ou seja, com a ausência de vendedores regulares fora os exportadores. Entretanto, creio que pode ser dito que, enquanto a incerteza for tão elevada quanto a atual, nossa moeda seguirá mais desvalorizada. Apenas com uma eventual regularização do movimento de investimentos internacionais é que o real poderia voltar para uma faixa de R$ 1,70 por dólar.

Isto nos leva, mais uma vez, a dizer que os riscos para a inflação estão muito elevados. Aos efeitos do novo protecionismo e das pressões vindas do câmbio (nos preços de alimentos e nos custos industriais), devemos adicionar a força do mercado de trabalho, o reajuste do salário mínimo, as elevações contínuas dos preços de serviços e a expansão dos gastos públicos no próximo ano (inclusive pela anunciada contratação de mais 55 mil funcionários pelo governo).

Será preciso um derretimento de proporções bíblicas na economia mundial, incluindo Índia, China e toda a Ásia, para que o cenário no qual as autoridades apostam possa ocorrer. A alternativa possível é que o governo esteja disposto a conviver com a inflação mais elevada, independentemente de seus custos.