sábado, dezembro 10, 2011

O inconsciente universal - SÉRGIO TELLES


O Estado de S.Paulo - 10/12/11


Recentemente foi noticiado que, no Zimbábue, uma gangue de mulheres atua por todo o país sequestrando homens com o objetivo de lhes roubar o sêmen, que seria usado em rituais de magia ou vendido em outros países. Apesar de tais rumores circularem há mais de um ano, somente agora foram detidas três mulheres acusadas de tal conduta criminosa. Após prestarem declarações, foram soltas sob fiança e enfrentaram uma multidão enfurecida ao saírem da cadeia. Os homens vítimas desse ataque sentem-se envergonhados e temem que sua masculinidade tenha ficado comprometida.

Tais supostos acontecimentos evidenciam uma forte carga fantasiosa de teor sexual e remetem a uma situação similar, ocorrida na Nigéria nos anos 70 e 90 do século passado, objeto de um interessante artigo de Frank Bures. Naquela ocasião, uma quantidade significativa de homens procurava as autoridades policiais com a queixa de que seus pênis haviam sido roubados, bem como seus testículos. Diziam ter sentido subitamente algo estranho em seus genitais e, ao apalpá-los, percebiam que eles haviam desaparecido ou diminuído de tamanho. Nesse caso, eles temiam que o pênis desaparecesse ou fosse sugado para dentro do próprio corpo, o que causaria suas mortes. Muitos deles entravam em pânico e aos gritos anunciavam o ocorrido. Algumas vezes apontavam um dos circunstantes como o autor do roubo, o que provocava o imediato linchamento do acusado pela multidão. Estava configurada uma situação na qual uma comunidade inteira compartilhava intensamente do mesmo sintoma mental.

A epidemia de pênis roubados chamou a atenção de um psiquiatra, dr. Sunday Ilechukwu, que descreveu os surtos acontecidos entre 1975 e 1977, e sua recidiva em 1990 e em anos seguintes. Documentos oficiais registram que em abril de 2001 foram linchados 12 suspeitos de roubo de pênis na Nigéria, 6 no Benin e, entre 1997 e 2003, 36 na África Oriental.

Constatou-se que o quadro era bem mais antigo, tendo sua primeira descrição aparecido na China em 300 a. C. num livro de medicina, em que era chamado de suo-yang, "pênis encolhido". Em 1874, Benjamin Matthes, estudando os costumes da ilha Sulawesi (Indonésia), descreveu a mesma sintomatologia, usando a denominação local de lasa koro, "encolhimento do pênis", terminologia que terminou por se impor. Em 1950, dr. Pow Meng Yap escreveu um artigo publicado no British Journal of Psychiatry com o título Koro, a culture-bond depersonalization syndrome.

Desde então, a síndrome do pênis roubado ou koro tem aparecido em vários lugares, como as epidemias em Singapura (1967, 500 casos), Tailândia (1976, 2 mil casos), Índia (1982) e novamente na China (1984-5).

Vemos que a síndrome do pênis roubado aparece em contextos culturais bem diversos, desde que surgiu na China, espalhou-se pelo Sudeste da Ásia e se instalou no continente africano.

A DSM-4, o manual norte-americano da psiquiatria adotado no mundo ocidental, coloca casos como o koro num apêndice, classificando-os como "síndromes ligadas à cultura", quadros psíquicos que ocorrem em países com costumes próprios e diferentes dos ocidentais. É uma classificação discutível, pois todas as síndromes inevitavelmente adquirem sua forma em função da cultura onde ocorrem. Ao afirmar que apenas algumas delas são assim classificáveis, os autores da DSM-4 parecem partir da presunção que os costumes e a cultura ocidentais são o paradigma da humanidade, e que as demais culturas são "exóticas". Não lhes ocorre que, para os pertencentes a outras culturas que não a ocidental, a sintomatologia que incide nos Estados Unidos, como o transtorno de múltipla personalidade, a bulimia, os quadros dismórficos, a síndrome de ter um chip inserido para a espionagem do governo, o pet hoarding (comportamento compulsivo de recolher animais abandonados e mantê-los em cativeiro sem as mínimas condições sanitárias) seria para eles tão "exótica" quanto são para nós as "psicoses étnicas" que atingem os povos "primitivos", como o roubo de pênis na Nigéria ou o roubo de sêmen no Zimbábue.

O viés etnocêntrico da classificação fica mais evidente quando lembramos que a síndrome do roubo do pênis era conhecida na Europa da Idade Média, constando do Malleus Maleficarum, o guia de instruções para o manejo com as bruxas, que eram capazes de roubar a virilidade de um homem de várias formas, uma delas justamente fazendo desaparecer seu membro.

O koro mostra como o conteúdo inconsciente do sintoma é universal. Não obstante vicejar em culturas distantes da nossa, o koro ilustra de forma cristalina a angústia de castração, elemento central da teoria psicanalítica, uma das magnas expressões da cultura europeia.

Se o conteúdo do sintoma é universal, a forma é plasmada pela cultura. Nas culturas asiática e africana, a angústia de castração se manifesta diretamente na sintomatologia do koro. Entre nós ela aparece disfarçada, pois a repressão se deu por outras vias. Enquanto na Nigéria os homens sentem que seu pênis foi roubado, aqui vemos os casos de impotência ou ejaculação precoce, condições que, de forma semelhante, lhes roubam a virilidade. Se na África e na Ásia, os homens pensam que seu pênis está encolhendo e vai desaparecer, os ocidentais (seriam só eles?) pensam de forma obsidente no tamanho de seus pênis.

As configurações psíquicas inconscientes emergem na consciência individual ou social de forma diferente em função da cultura vigente num determinado tempo e lugar, como mostrou Freud ao comparar as peças de Sófocles e Shakespeare. Se na Grécia Antiga a conflitiva em relação ao pai podia ter uma manifestação mais direta como em Édipo Rei, séculos depois, na Inglaterra elisabetana, ela já sofrera uma maior repressão e se expressa de forma mais indireta como em Hamlet.

Casos como o koro (e quaisquer outras manifestações de cegueira histérica) são também importantes por mostrarem de forma inconteste como os órgãos da percepção perdem sua função quando invadidos pelo desejo inconsciente. Os pacientes de koro não sentem nem veem sua própria genitália, apesar de estar ela onde sempre esteve. Esse fato deveria ser lembrado por aqueles que supervalorizam os processos perceptivos e cognitivos em detrimento da visão psicanalítica.

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