quarta-feira, novembro 16, 2011

Onze freiras filipinas - ANTONIO PRATA


FOLHA DE SP - 16/11/11

Poucos lugares são tão malfalados quanto os aeroportos: espaços impessoais e anódinos -acusam seus detratores -, enormes living-rooms que de "living" não têm nada: ambientes mortos para um tempo morto. O antropólogo francês Marc Augé chegou a cunhar um termo para definir essas e outras construções pós-modernas, idênticas em Cingapura ou Saratoga, Madri ou Madagascar, coringas de aço, vidro e concreto: "não-lugares".
Acho uma injustiça. Dizer que aeroportos são espaços anódinos é julgar o quadro pela moldura. E a obra? Desfile incessante de tipos humanos, mostruário de estilos, um casting digno de Fellini ou Jacques Tati. O jovem executivo falando ao celular. A gostosa de minissaia, arrastando a malinha e olhares cobiçosos. O casal que chora na despedida. O casal que chora no reencontro. O casal que briga no free-shop -"Mas por que não comprou lá em Orlando que tava vazio, Elisângela?!". Os esportistas de uniforme, levando bagagens compridas e misteriosas -caiaques? Varas para salto? Tráfico de cocaína? A celebridade de óculos escuros: "É ele?!", "Não, não é ele!". As onze freiras filipinas -nunca vi freiras filipinas em outro lugar que não os aeroportos; nunca vi um aeroporto sem freiras filipinas: seria uma ordem secreta de monjas aeroportuárias?
Quando me canso da assistir à rica parada, dou um pulo na livraria. "Péssima! Só tem best-seller raso e livro de autoajuda!" -dirão os aerófobos. Ótimo que seja assim! -digo eu. Tchekhov, Kafka e Graciliano me esperam em casa, ao lado da poltrona. A eles dedicarei longas tardes de domingo; na sala de embarque, contudo, desejo apenas um livro de capa laranja, algumas risadas, um crime a ser resolvido. Afinal, aeroportos são uma espécie de recreio compulsório. Impossível escrever uma crônica num aeroporto, enviar o comprovante de residência para o despachante, cuidar de toda aquela infinidade de pequenas ou grandes pendências que nos acompanham, diuturnamente, vida afora. Afora: pois, ali dentro, estou imune. Se alguém me liga com um assunto chato, digo "fulano, é o seguinte, tô embarcando aqui pra Boa Vista" e o sujeito logo acalma, diz "claro, desculpa, falamos semana que vem", e volto ao meu livro, com pausas eventuais para a contemplação de aviões e seus focinhos, do lado de lá da vidraça.
Fome? Que a ditadura do dieteticamente correto não venha me importunar. Quinua, granola e alfafa, bem-vindas sejam a nossos lares -comemoram minhas artérias-, mas minhas papilas gustativas aspiram por um Big Mac ou uma bomba da Ofner, e o clima de férias -mesmo que eu esteja viajando a trabalho -permite-me a gordurosa autoindulgência.
O piquenique termina com a voz no alto-falante, chamando meu voo. Caminhando pelo finger, escrevo um SMS: "Embarcando. Saudades, já. Te amo". Horas depois, num saguão tão diferente e tão parecido, ligo o celular: "Saudades também, meu amor, liga chegando?". Digito o número e passo sorrindo pelas freiras filipinas. Nem me notam, enquanto retiram as malas da esteira: onze malas idênticas e puídas, marrom clarinho, que os esportistas ajudam a pegar, enquanto seus misteriosos embrulhos não vêm.

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