domingo, novembro 06, 2011

HUMBERTO WERNECK - Cinzas e diamantes



Cinzas e diamantes 
 HUMBERTO WERNECK
O ESTADÃO - 06/11/11


Já existe uma versão funerária do bem-casado, embalada em negro. O nome? ‘Bem-velado’.

Agora é cinza, anunciou o samba de Bide e Marçal em 1934, num tempo em que ainda não se usava por aqui cremar os mortos. Incineração, só nos casos em que “o nosso amor foi uma chama”. Quanto ao balanço do incêndio, ou seja, ao trecho da letra que fala em “tudo acabado, e nada mais”,fatos novos recomendam cautela: como tudo acabado, se já se pode converter em diamante as nossas cinzas mortuárias? Nada a ver com aquele filme, Cinzas e Diamantes, do Andrzej Wajda, mas com uma reportagem que li no Dia de Finados.

Passemos por cima da piada fácil que acaba de lhe ocorrer, a do amante que vira diamante; fiquemos com os fatos: associado a uma empresa americana (só podia ser),um grupo funerário nacional põe à disposição do brasileiro, por fosco que seja, a possibilidade de, postumamente, se tornar brilhante. Até o momento, ninguém se habilitou. Uma pena, pois num país como o nosso, a que não faltam famílias numerosas, quantas não poderiam gerar, além de diamantes avulsos, todo um colar de gemas preciosas? Poucos se deram conta de que a palavra “solitário” pode designar ao mesmo tempo o viúvo e a pedra que ele engastar no anel, produzida a partir das cinzas da falecida.

Peço que você me leve a sério e me acompanhe na enumeração das perspectivas abertas pela tecnologia. Já não causará espécie, por exemplo, alguém dizer que o finado ente querido é joia, ainda que em vida não tenha chegado a bijuteria.Gente tosca poderá ganhar lapidação post- mortem.E gente bruta poderá, se assim quiserem os familiares, conservar essa característica, assumindo a forma de diamante também bruto.

Não repare na crueza da observação, mas haverá gente valendo mais do que valia em vida.E as famílias têm mais um ponto com que se preocupar quando, o cadáver ainda quente, se pensar na herança: de quantos quilates será o diamante feito com as cinzas do patriarca? Quanto a isso, seráque faz diferença ele ter sido gordo ou magro? Existe o risco de alguém, depois de avaliado, em vez de brilhante, resultar em quartzo? Indagações, como se vê, não faltam, e muito resta a ser respondido.O importante é ter-se aberto a possibilidade de reciclagem cadavérica; nossa conversão em diamantes pode ser apenas o começo.

E não param por aí as novidades do setor, informa a reportagem. Funerárias de ponta já disponibilizam velório online, para que parentes distantes,em qualquer acepção do termo, possam acompanhar – ao vivo – a cerimônia. A qual, pelo menos em São Paulo, já pode se desenrolar em ambiente menos deprimente que as capelas anexas a cemitérios. Não é novidade. Mas talvez nem todos saibam que está ao nosso alcance, entre duas lágrimas, degustar iguarias como a tal versão funerária do bem casado, embalada em papel convenientemente negro e batizada, não estou brincando, “bem-velado”. (Em nome do bom gosto, por favor, vamos silenciar em torno de veladas referências, que ouço aqui e ali,a presuntos e quejandos.)
Se a moda pega, pode ser que um dia nos vejamos a saborear um cajuzinho no velório do cemitério carioca do Caju.

A tendência é dar um tratamento natural à morte e aos trâmites que a ela se seguem. “Tratamos a morte como mais um evento social, nesse caso o último da pessoa e o mais importante”, declarou o diretor de uma empresa funerária que, pelo visto, não põe fé na ressurreição dos mortos. Há hoje no País 5.500 empresas no ramo, e não me parece que estejam enterrando dinheiro: juntas,movimentam R$ 1,5 bilhão por ano. É uma nota preta.

A modernização começou, nos anos 60, com o progressivo abandono dos mausoléus, em favor de simples lápides nos cemitérios-parques. Quando surgiu em São Paulo o primeiro deles, pôde-se ler num jornal um título mais ou menos assim: “Flores. Pássaros na relva. Música suave. E você morto!” A bizarria há muito foi assimilada,e novos avanços estão em marcha. Num cemitério em Mauá,na Grande São Paulo,já se celebrou, aparentemente sem ironia,um casamento. Não se informou se era de cravos de defunto o buquê jogado pela noiva. Não haveria, nessas bodas em cenário macabro, um desejo de cremar etapas?

Nenhum comentário: