segunda-feira, novembro 28, 2011

Em defesa dos ricos e famosos - LÚCIA GUIMARÃES


O Estado de S.Paulo - 28/11/11


Outro dia, eu caminhava à noite com um escritor e jornalista pela Nona Avenida. Apressamos o passo por causa da garoa, o que conferiu uma certa urgência à nossa conversa. Perguntei se ele havia assistido à longa entrevista de um certo empresário bilionário na semana anterior. Eu tinha gravado o programa. Queria assistir de novo para tentar desfazer - ou confirmar - a impressão causada pelo close-up de uma hora, uma situação que não pode ser roteirizada por relações públicas. Por mais insincera que uma figura famosa queira ser, uma hora de entrevista, mesmo nas mãos do puxa-saco de plantão naquela noite, há de revelar alguma verdade sobre sua visão de mundo. Ou, como foi o caso, o vácuo intelectual e moral exibido pelo personagem cuja empresa é onipresente no planeta.

Quando expressei minha opinião sobre a referida entrevista, em termos, digamos, bem mais enfáticos do que faço aqui, meu companheiro de caminhada, especulou: O que aconteceria conosco se a nossa conversa fosse transformada numa coluna? Boa pergunta. Não sei como anda a atividade no meu córtex cingulado anterior, a tal área do cérebro que os neurologistas afirmam regular nossos impulsos corajosos. Vou ali na esquina fazer uma tomografia e respondo na volta.

Mas a conversa sob a garoa não paulistana me ocorreu quando observei parte da reação ao desfile de celebridades depondo na comissão de inquérito britânica sobre a imprensa. A que foi instalada com pouca sinceridade pelo primeiro- ministro David Cameron, para investigar abusos dos tabloides sensacionalistas, depois do escândalo dos grampos telefônicos do agora defunto News of The World, de Rupert Murdoch.

Sienna Miller, gatésima. J.K. Rowling, pleeeease, ressuscita o Harry. Hugh Grant, então você fazia o papel de si mesmo em todos os filmes?

As celebridades são acusadas de hipocrisia porque sua vida profissional seria enriquecida pela cobertura incessante dos tabloides. Ao pedir que paparazzi sejam arrancados do parapeito de suas janelas, ao ter a audácia de tentar impedir que detetives contratados por redações grampeiem seus telefones, ao esperar que a lancheira de uma filha de 5 anos não volte para casa recheada com o bilhete de um repórter, esses milionários narcisistas e mimados estariam combatendo a liberdade de imprensa. Os intrépidos repórteres de tabloides seriam corajosos defensores da profissão.

Afinal, a invasão de sua privacidade faria parte de um pacto implícito. Do momento em que Sienna Miller se detém no tapete vermelho e sorri para os flashes, ela se torna uma exibicionista que abriu mão do direito de não ser seguida por câmeras ao exame ginecológico.

Essa cultura do vale-tudo na cobertura da celebridade já foi importada, sem nenhum protecionismo, pelo Brasil. A toda hora se ouve uma história como a do "jornalista" que tentou alugar o apartamento com vista para o quarto do bebê do casal de atores. Engana-se quem pensa que esta falta de civilidade não afeta todos. Não compreendo como tantos podem misturar seu desprezo pelos filmes de Hugh Grant com a suspensão dos direitos individuais de ator porque ele desfruta os privilégios trazidos pelo dinheiro e a fama. O próximo passo é pedir a Lady Gaga para abrir mão de votar porque ela faz sucesso demais? Quem quer viver numa sociedade que sanciona a perseguição ao bebê recém-nascido da previamente desconhecida Hong Tinglan, só porque o pai ausente da criança é Hugh Grant?

Se eu defender um sistema legal que tolera o grampo telefônico de gente famosa para satisfazer o trotskismo voyeurista promovido pelos tabloides, vou perder meu direito de protestar contra o grampo telefônico de um inocente que teve a má sorte de rezar numa mesquita frequentada por um suspeito de terrorismo.

É claro que ricos e famosos têm mais chances de escapar da lei ou de conseguir um cirurgião melhor do que eu. Sim, torço para não ser atropelada e entrar na sala de emergência no exato momento em que Hugh Grant chegar, com o dedo mindinho fraturado.

O desprezo pela cultura da celebridade, multiplicada de forma exponencial pela internet, não justifica promover um autoritarismo seletivo. Neste caso, defender os ricos e famosos é defender também despossuídos e anônimos.

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