sexta-feira, novembro 18, 2011

Basta um momento de suprema felicidade - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO


 
O Estado de S.Paulo - 18/11/11

Terminei de ver o filme do Jabor pensando: pois é, este é um dos filmes que eu queria ter feito. Sempre tive um mundo de filmes na cabeça, nenhum deles realizado. Ficaram guardados enquanto eu esperava a chance de ser diretor. O diretor que nunca fui e, talvez, nunca serei. Tem jeito de Oito e Meio esta afirmação? Onde me desviei do sonho de fazer cinema?

Nos últimos tempos vi dois filmes que eu deveria/poderia ter feito. Sobre um deles, já falei, é o de Woody Allen, Meia-Noite em Paris. O outro é este Suprema Felicidade, do Jabor. Dia desses, depois do almoço anual dos cronistas do Estado, saí num táxi com o Jabor, já que somos vizinhos. No caminho, a conversa deslizou para o filme dele, que eu não tinha visto. Quando foi lançado, eu não estava em São Paulo. Depois, bem depois os exibidores tiraram de cartaz e ficou por isso. Claro, essa indiferença dos exibidores provocou uma (justa) mágoa no diretor.

Quando indaguei: "Saiu em DVD?", ele respondeu: "Não apenas saiu, como vou te dar um". Passei pela casa dele, apanhei o DVD e corri para meu apartamento. Meio da tarde, eu não queria sentar-me ao computador, estava ansioso, fiz o filme rodar.

Desgraçado, esse Jabor! A palavra não tem o tom da maldade, de rogar praga, é minha expressão de afeto. Pois ele fez o filme que está (estava) na minha cabeça. Recuperou por meio de um personagem, que vai dos 4 aos 20 anos, toda uma época, que foi dele e também minha. Sei, passa-se no Rio de Janeiro, mas também aconteceu em Araraquara, Bauru ou Marília. O Brasil era igual, lento. Uma coisa menos complicada, mais ingênua, com pouca informação, com pureza e sacanagem, com ideais, sonhos e muitos desejos.

Não invejei o avô do menino (vivido magistralmente por Marco Nanini), porque tive um avô, que, se não era "zoneiro", ou seja, de farrear na zona, ou bordel, tocando trombone de vara, era um avô que me encantava ao produzir em sua marcenaria móveis, brinquedos, caixas de relógio de parede; esculpia cavalos, me levava ao campo para caçar içás.

Quem não teve um pipoqueiro safado a nos gozar, perguntando se tínhamos pegado nos peitinhos das meninas? Quem não teve uma proibidíssima revista de mulheres peladas? A nossa se chamava Paris Hollywood, impressa em sépia e com os pelos das mulheres escamoteados, de modo que pareciam manequins de vitrine. Mesmo assim, excitavam! Nos meus 18 anos, sensacional era o cabaré que ficava em São Carlos, exatamente onde é a UFSCAR hoje.

Ah, caro Jabor, você foi buscar no fundo de você, mas mexeu comigo, com todos nós, sem fazer um filme nostálgico, sem dizer que naquele tempo é que era bom. Disse apenas: naquele tempo era assim, tinha lágrimas e risos. Você teve sua Marilyn, eu também. Nós, de Araraquara, tínhamos a Rosicler, loira, provocante, sedutora. Ou a Cotuba tão livre, independente, na dela, indiferente aos diz-que-diz-ques. E olhe o acaso. Falo de Rosicler e Marilyn em meu livro Acordei em Woodstock, o mais recente, saiu há três semanas.

E o teatro-revista, e a escola? Naquele tempo já existia o bullying, só que não precisavam convocar o diretor, o orientador pedagógico, os pais, as testemunhas, o psicólogo, essa doideira toda. Tinha sujeito que apanhava, apanhava, até que um dia, ele batia, batia. Tudo era resolvido entre nós, tínhamos de saber conversar, negociar, ganhar e perder, levar e dar de volta, enfim, aprender a viver e se virar.

Jabor, nunca fiz esse filme que ia falar de carnaval, de lança-perfume, de marchinhas carnavalescas, de festas nas casas, de boleros, de risos e choros, de mães sofredoras, de homens desatinados. O meu ia (digo, vai) ter o que não tem no seu: igreja, procissões de Semana Santa com Verônica cantando, malhar o judas, olhar as coxas das professoras com espelhinho, ver vizinhos reunidos nas cadeiras na calçada ou ouvindo radionovela ou programas de auditório da Nacional, frequentando quermesses, comprando rifas de frango assado e mandando Correio Elegante, jogando tombola, assistindo a chanchadas.

Você ficou 17 anos longe do cinema, mas voltou e realizou Suprema Felicidade, um filme tocante. Felliniano. Musical, nossa vida foi cheia de músicas que marcaram: Besame Mucho, Quiçás, Quiçás, Love Is a Many Splendored Thing, Mona Lisa, Ninguém me Ama, As Águas Vão Rolar, Sassaricando, Touradas de Madri, Granada, A Noite do Meu Bem, Love me Tender, Carol, Diana, Datemi um Martelo, Dio Como Ti Amo, Mulher de Trinta, Você menina moça/ mais menina que mulher...

Vendo o making of, Jabor, percebi uma coisa. Você feliz, solto, amando cada cena, cada ator, cada personagem e tudo isso a gente sente no filme. Teve quem não gostou? Sempre tem. Mas vai ver que a vida deles não foi tão legal quanto a nossa! Precisamos descobrir se tiveram um momento de suprema felicidade. Porque basta um momento para justificar tudo, a vida inteira. Um dia, suprema felicidade, farei um filme. Enquanto isso, caminho atrás desse sonho, não fico paralisado.

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