quarta-feira, outubro 19, 2011

MARCELO COELHO - Chanel nº 7124


Chanel nº 7124
MARCELO COELHO
FOLHA DE SP - 19/10/11

Hal Vaughan tem 83 anos, é um americano gordinho e rosado, e usa um bigode aparado e bem branco. Estaria no papel perfeito de um vovô contando histórias para os netinhos, num filme da Disney.
Mas o que ele narra, no livro "Dormindo com o Inimigo" (editora Companhia das Letras), não é nada edificante. Era uma vez uma menina pobre, muito bonitinha e magrinha, chamada Gabrielle. Sua mãe morre cedo. O pai entrega-a aos cuidados das freiras num orfanato e nunca mais irá visitá-la.
Ao completar 18 anos, Gabrielle terá de se virar pelo mundo. Em pouco tempo, começa a cantar num cabaré, numa pequena cidade do interior da França. Estamos nos primeiros anos do século 20.
Surge um príncipe encantado, com castelo e tudo. Étienne Balsan acha graça quando Gabrielle canta "cocoricó" no seu número de café-concerto e não se importa muito em partilhar a jovenzinha com seus amigos ricaços.
Surge o segundo príncipe encantado, um milionário inglês chamado "Boy" Capel, que será sua grande paixão. "Coco", como Gabrielle passou a ser chamada, passa a conhecer a elegância britânica, a sobriedade das roupas esportivas, o conforto dos tecidos de malha e, sobretudo, um novo padrão para a estética feminina.
Em vez daquela opulência hormonal, emplumada e frufrulejante da "belle époque" parisiense, Coco passou a adotar um estilo mais seco, sem curvas, próximo daquela androginia adolescente que tantos ingleses, sem dúvida, começam a apreciar nos dormitórios do colégio interno.
A austeridade do orfanato católico francês transmutava-se em "classe" ao estilo inglês -e a pequena Gabrielle agora tratava de mudar a história da moda do século 20, atendendo pelo nome de Coco Chanel. Esse, contudo, é apenas o começo da história contada por Hal Vaughan em "Dormindo com o Inimigo".
Outros príncipes encantados apareceriam na vida de Chanel. Um arquiduque russo; o duque de Westminster, que, na época (já estamos por volta de 1925), era o homem mais rico da Inglaterra; por fim, um barão nazista.
Bem antes de Hitler, Hans Günther von Dincklage já trabalhava para o serviço secreto alemão. Veio a guerra, a França foi ocupada pelos alemães, houve quem resistisse ao nazismo e houve quem colaborasse com o inimigo.
Chanel se alinhou firmemente ao segundo grupo. Era de um antissemitismo atroz. Quis aproveitar-se do poder nazista para recuperar seus direitos sobre o perfume Chanel nº 5, fabricado por empresários judeus. Manteve seus apartamentos no Ritz, quando poucos franceses eram admitidos no hotel -prioridade de hospedagem para Goering e companhia.
Hal Vaughan descobriu mais coisas. Na qualidade de agente F-7124, do serviço secreto nazista, Chanel participou de duas missões diplomáticas em prol dos interesses alemães.
Não é nada bonito, mas não é tão escandaloso quanto Hal Vaughan quer que pareça. Não há indício de que Chanel tenha revelado segredos ou denunciado alguém. Suas duas missões com Dincklage tinham o propósito de sondar, à revelia de Hitler, as condições de uma paz em separado com a Inglaterra. Não foram além de conversas inconclusivas com diplomatas sem importância. Chanel parecia estar mais interessada em resolver o problema de um sobrinho, preso pelos alemães, e de uma amiga inglesa, suspeita de espionagem.
E, como sempre, estava interessada nela mesma: em manter-se ao lado dos poderosos do momento. Foi assim que passou a vida toda. O caso de Chanel interessa menos pelas revelações de Vaughan do que pelo que tem de instrutivo quanto ao antissemitismo da personagem. Dotada de determinação implacável, de agudo senso comercial, de grande talento, Chanel foi admitida nas rodas mais exclusivas da Europa -mas nenhum nobre ou milionário haveria de casar-se com ela. Sem nenhum "pedigree", ensinou, mais do que a elegância, a qualidade da "distinção" para mulheres mais bem-nascidas do que ela.
Tinha tudo para ser uma duquesa; mas sua origem familiar a impedia disso. Tinha todas as qualidades e os defeitos que os antissemitas atribuem aos judeus; mas não era judia.
"Só uma coisa faz com que eu não seja igual a uma judia: sou antissemita": essa a oração secreta que Chanel, depois de uma noitada com barões, marqueses e nazistas, devia pronunciar entre os biombos de seus aposentos no Ritz.

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