domingo, outubro 16, 2011

JOÃO UBALDO RIBEIRO - Novos horizontes ideológicos



Novos horizontes ideológicos
JOÃO UBALDO RIBEIRO
O Estado de S.Paulo - 16/10/11

Fez-se atento silêncio no bar de Espanha, quando Zecamunista, que havia levado algum tempo sem aparecer, chegou e anunciou que estava criando o IPCA. Passara muito tempo lendo e meditando sobre a realidade nacional e chegara à conclusão de que era necessário encará-la sob nova perspectiva, despir-se dos vícios intelectuais antigos e abrir novos horizontes ideológicos. Nossos problemas precisavam de soluções originais e ele agora tinha a convicção de que o IPCA seria um dos pontos principais dessa nova abordagem. Se o exemplo da ilha fosse seguido em todo o Brasil, o IPCA poderia ser a chave para uma nova era de paz e prosperidade. Abrir-se-iam oportunidades para todos e se formulariam claramente as bases ideológicas que hoje já mais ou menos norteiam as ações dos nossos governantes. E ele não só tinha redigido o ato de constituição do IPCA como havia marcado uma assembleia fundadora, a realizar-se com a presença de representantes de todos os municípios do Recôncavo.

Realmente muito bonito, concordaram todos e, vinda de Zecamunista, só podia ser coisa de quem, como ele, sempre fez altos estudos e usa palavras de que nunca ninguém ouviu falar, como acontece com os grandes sábios e líderes. Certamente, esse tal de IPCA era coisa existente em centros adiantados e agora, como sempre preocupado em manter a ilha na vanguarda, Zeca iria importá-lo, sem dúvida para grande benefício geral. Contudo, ainda que mal se perguntasse e bem se perdoasse a ignorância, em que consistia esse famoso IPCA? Qual a função dele, nos lugares onde já existe?

- Ele não existe em lugar nenhum - explicou Zeca. - É criação minha, quem bolou fui eu mesmo, é mais um pioneirismo nosso. Mas meu plano é mesmo que ele venha a ser implantado em todo o Brasil, porque muitos dos problemas atuais deixariam de existir.

Sim, o IPCA nada mais é que as iniciais do Instituto Popular de Corrupção Aplicada. Como se sabe, rouba-se muito no Brasil e a maior parte dos governantes vê o poder como o caminho aberto para se fazer na vida. Aliás, é como todo mundo, não só os governantes, vê o poder. Estranho é o sujeito que vai eleito ou nomeado a alguma coisa não prosperar economicamente, é um comportamento anômalo. A corrupção está integrada em nossa realidade e não adianta querer eliminá-la.

- Mas, Zeca, você sempre disse aqui que é contra a corrupção.

- Disse e sou, mas isso é no terreno filosófico. No terreno prático, minha posição a favor do povo me leva a encarar a corrupção com novos olhos. A corrupção só é um problema devido à exclusão. O pobre e o remediado são excluídos da corrupção e ficam à margem do esquema geral. Com o Instituto, isso vai ser corrigido, a corrupção vai ficar ao alcance de todos e não somente de uns relativamente poucos privilegiados. Claro, não se vai esperar que o corrupto de um pequeno município atinja os mesmos patamares de um corrupto como um juiz safado, um deputado ladrão, um senador salafrário ou um ministro vigarista. Isso somente ocorre em casos excepcionais, quando o corrupto tem muito talento. Não, o que eu quero é simplesmente democratizar a corrupção, para que ela fique ao alcance de todos, até o cidadão mais humilde.

Já estava tudo ali, em seu caderno de anotações. Em exaustivo estudo, catalogara todas as espécies de golpe aplicado para roubar o dinheiro do governo ou para enriquecer com propinas e subornos. Já podia fechar os olhos e ver como ficaria o pessoal da ilha, caso o esquema viesse a funcionar. Haveria dispositivos especiais para o micro, pequeno ou médiocorrupto, com linhas de crédito adequadas. E seriam implantadas medidas ainda mais revolucionárias, em benefício do proletariado. Por exemplo, foro especial para todos. Por que somente certos ladrões têm direito a foro especial? E também tratamento igual para todos. A Polícia Federal poderia continuar a investigar e prender, mas a regra de prender na segunda e soltar na terça tinha de valer para qualquer corrupto, sem distinção.

- Aliás - disse ele -, agora mesmo me veio outra ideia inovadora, é preciso estar de acordo com os novos tempos. Agora todo mundo tem estatuto e, portanto, vamos criar o Estatuto do Corrupto, vai ser a primeira tarefa do IPCA. Um bom estatuto faz milagres, qualquer coisa que o sujeito queira. Agora mesmo saiu o Estatuto do Jovem. Até 29 anos, o camarada é jovem. Daí para 60, é adulto. Dos 60 em diante (65, dependendo), é idoso. Falta agora fazer o Estatuto do Adulto, esse pessoal não pode ficar desamparado, excluído de cobertura estatutária. Eu creio que a tendência moderna é fazer um estatuto para cada categoria que se definir, sou a favor de estatuto para tudo, Estatuto do Carnaval, Estatuto do Corno, Estatuto dos Fanhos e assim por diante, é uma abordagem que ainda tem a vantagem de já estar sendo aplicada no Brasil, onde todo dia aparece um estatuto novo.

O bom comunista, como ele, sabe aproveitar circunstâncias adversas em benefício de suas causas. Com o Estatuto do Corrupto em vigor, os pobres e semipobres da ilha adquirirão novo status político-econômico, mesmo porque não será esquecido o estabelecimento criterioso de mecanismos para permitir o ingresso deles no multifacetado e fascinante mundo da corrupção. Além de financiamento, treinamento pelo IPCA e estágio em alguns dos órgãos públicos mais notoriamente corruptos, nos três poderes, eles contariam com o Bolsa Corrupção, enquanto não fossem capazes de roubar o próprio sustento. Descobri a filosofia desse governo, disse Zecamunista. Tem como modos de ação o bolsismo e o estatutismo. Cabe a nós, proletários, usar os dois em nosso benefício. Mas o roubismo graúdo não tem jeito, continua com eles mesmos.

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