quinta-feira, outubro 06, 2011

CARLOS ALBERTO SARDENBERG - O vício pela virtude


O vício pela virtude
CARLOS ALBERTO SARDENBERG
O Globo - 06/10/2011

Você está no peso ideal, colesterol abaixo de 100, pressão 12 por 8, boa alimentação, exercícios em dia - e quer saber? Você está em desvantagem. Não tem como melhorar. Suponha que fique doente. O que o médico poderia recomendar para aperfeiçoar sua qualidade de vida?

Bem diferente se você estivesse gordinho e meio paradão. Haveria ampla possibilidade de ação e melhoria.

Foi com esse tipo de lógica que o ministro Mantega andou demonstrando uma suposta superioridade brasileira no cenário de crise mundial. Lembrou, por exemplo, que em muitos países a taxa de juros está próxima de zero - de modo que seus bancos centrais, coitados, não dispõem de poderoso instrumento de estímulo à economia. Já o BC brasileiro, que pilota a maior taxa de juros do mundo, teria ampla possibilidade de reduzi-los várias vezes.

Assim, um dos piores vícios brasileiros, o juro descabido, se transforma em virtude. Mas, se essa lógica faz sentido, também faria sentido derivar daí uma recomendação de política monetária: que os BCs mantivessem juros elevados para poder reduzi-los em caso de necessidade. E isso nos levaria a uma contradição em termos: na crise, os juros não poderiam ser reduzidos porque se perderia o instrumento.

Vai que o BC brasileiro coloca a taxa de juros a zero e a economia continua exigindo mais estímulo, que fazer? Parece absurdo, é absurdo, mas é isso que estão nos dizendo: teria sido enorme sabedoria manter os juros mais altos do mundo.

Não é incrível que apareça esse tipo de questão em meio a um momento difícil e complexo da economia global?

É claro que os BCs que já reduziram os juros não têm mais o que fazer nessa direção. Mas os juros no chão continuam fazendo o serviço de baratear consumo e investimentos.

Portanto, vamos reparar: em qualquer circunstância, os juros brasileiros constituem vício. E formam o sintoma mais visível de diversas doenças da economia local, incluindo dívida pública elevada e com rolagem curta, gasto público exagerado e baixo nível de investimento.

Aplicaram a mesma manobra mental aos compulsórios - dinheiro que os bancos devem deixar depositado no BC -, também os maiores do mundo aqui no Brasil. Com tanto dinheiro retido, quando surge algum problema de liquidez, como falta de dinheiro e crédito na praça, o nosso BC pode liberar recursos do compulsório.

Do mesmo modo que na lógica dos juros altos, o correto seria aumentar o compulsório para poder reduzi-lo quando ocorresse algum problema. Outro vício que virou virtude.

Reparem: compulsório é dinheiro retirado do sistema financeiro, que tem reduzida sua capacidade de emprestar para empresas e pessoas. É vício, sintoma de uma economia doente que não pode conceder crédito abundante.

Olhando bem, juros altos e compulsórios elevados são duas faces do mesmo vício. Decorrem das necessidades de um governo gastador, que avança no mercado para se financiar, e do baixo nível de investimentos. Dito de outro modo: com juros baratos e mais dinheiro disponível, o crédito cresceria e ampliaria a capacidade de investimento e consumo de empresas e pessoas. E isso traria mais inflação, porque a oferta de bens e serviços ficaria muito abaixo dessa demanda turbinada.

Sim, é verdade que, em muitos países, juros muito baixos, por muito tempo, e muito dinheiro disponível levaram a bolhas e excessos de gastos públicos e privados. O momento, pois, é de maior prudência.

Não decorre daí que é melhor ter crédito caro e limitado. E, se for para escolher o problema, é melhor a abundância do que a falta de crédito.

E, na mesma linha de dar lições ao mundo, a presidente Dilma Rousseff disse aos europeus que ajustes fiscais (das contas públicas) são até prejudiciais quando muito rigorosos. Citando experiência brasileira, disse que era melhor estimular consumo e investimento, que teria o seguro anticrise.

Ora, é o contrário: a economia brasileira tornou-se mais resistente depois e graças ao pesado, rigoroso e longo ajuste fiscal feito no segundo mandato de Fernando Henrique e no primeiro de Lula. Com FHC, houve contenção de gastos públicos, aumento de impostos, privatizações e reformas estruturais, como a da Previdência, além da eliminação das dívidas dos governos estaduais. E Lula ampliou o superávit primário a nível recorde, conseguindo a redução do endividamento.

Exigiu esforço e desgaste político, mas foi o que salvou o Brasil, uma virtude da política ortodoxa. E é o que muitos europeus precisam fazer.

Mas, se eles tentarem seguir as lições das autoridades brasileiras, ficarão bem atrapalhados. A presidente recomenda que estimulem a economia com gastos públicos maiores e juros menores. Depois o ministro sugere que ter juros altos é uma vantagem relativa. Emagreçam, mas engordem antes.

Eis como a consciência culpada dos petistas (por terem aplicado uma política econômica clássica) os leva a tomar vícios por virtudes e a esquecer das virtudes praticadas. Outro caso de personalidade dividida.

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