terça-feira, outubro 18, 2011

ARNALDO JABOR - Em busca de um tempo perdido (1)



Em busca de um tempo perdido (1)
ARNALDO JABOR
O Estado de S.Paulo - 18/10/11

"Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo." (*)

Mas ficava de olhos abertos para a tênue iluminação da rua que entrava pela fresta da janela. Desde o crepúsculo, filtrava-se uma luz entre o roxo e o dourado que ia morrendo, enquanto eu ouvia as mães chamando os meninos para dentro, um carro que passava e o silêncio que se ouvia depois, os acordes iniciais do Guarani (prefixo da Hora do Brasil) às sete da noite, que soava no rádio de meu pai, avisando aos navegantes que "as boias de luz estavam apagadas temporariamente" no mar, o que me dava uma grande paz, por estar aconchegado em minha cama, mas com pena da solidão das boias de luz flutuando sem rumo no vasto oceano. Meus brinquedos, carrinhos de lata, rolimãs, bolas de gude, jogo de botões, tudo fazia parte de um mundo que estaria ali quando eu acordasse, um pequeno país que eu habitava, limitado por ruas perpendiculares à minha, por terrenos baldios, por valas onde pescava ínfimos peixinhos, por árvores escaladas, pelas casas vizinhas onde se aninhavam amigos e perigosos inimigos - a paisagem dos meus primeiros anos.

Eu ainda não via as coisas em conjunto, minha visão geral era rala e meus olhos se detinham em minúcias que até hoje me emocionam sem razão, detalhes que pareciam revelar mistérios, como a chuva batendo quente e lenta no muro amarelo e roído de buracos, os urubus voando muito longe entre árvores altíssimas e nuvens esgarçadas, as formigas levando folhas de fícus para o buraquinho, onde eu colocava açúcar para surpreendê-las, tontas com o doce presente inesperado, o homem-do-saco que passava todo dia e que, ameaçavam os adultos, levava crianças para fazer sabão, os cachorros vadios que, esses sim, viravam sabão quando a 'carrocinha' da polícia passava, o mendigo veado que revirava os olhos, imundo, chamado de 'Amélia', e que, garantiam, ficara assim porque dera mijo para a mãe que lhe pedira água no leito de morte, brigas entre 'gravatas' e bofetadas, o projecionista do Cine Palácio Vitoria que brilhava ao fim da rua e que toda noite nos dava fotogramas cortados de filmes arrebentados, o que me fez conhecer o cinema em pequenos quadrinhos coloridos com rostos de Virginia Mayo, Sabu, cavalos a galope, beijos na boca, coxas de odalisca, múmias e desenhos do Mickey, sheiks brancos no deserto, o carro grená de meu pai que chegava, minha mãe esperando no portão.

Já houve muitos "eus" dentro de mim, mas nessa infância profunda, "eu" ainda não havia. Havia o mundo misterioso que eu pesquisava em pedaços. Aos poucos, foram se colando em mim os primeiros sustos, súbito entendimento de segredos, a descoberta do corpo, a diferença das meninas, o 'pau, o cu, a boceta', os palavrões que eu aprendia nas vilas e esquinas, palavras sussurradas como senhas, indícios do que seria a 'realidade' para mim, mais tarde. Escrevo essas coisas para lembrar de mim mesmo, vivendo em meio a uma nuvem de impressões fátuas, confusas, de onde, às vezes, saltava alguma coisa com aparência de sentido, um súbito sentimento que me parecia essencial, como um órgão oculto que eu descobria.

Eu devia ter uns 6 anos quando fui a meu primeiro dia de aula, levado por minha mãe na Rua 24 de maio, no Rocha, coberta de folhas secas de mangueira que o vento derrubara. Fiquei sozinho pela primeira vez, sem pai nem mãe no colégio desconhecido.

No pátio do recreio, crianças corriam. Uma bola de borracha voou em minha direção e bateu-me no peito. Olhei e vi uma menina morena, de tranças, olhos negros, bem perto de mim, pedindo a bola. Lembro que seu queixo tinha um pequeno machucado, como um arranhão coberto de mercúrio cromo. Seu nariz era arrebitado, insolente e num lampejo eu senti um tremor desconhecido.

Ela deve ter me fitado no fundo dos olhos por uns três segundos, mas até hoje me lembro de sua expressão afogueada e vi que ela também sentira algum sinal em meu corpo, alguma informação da matéria em seu destino de fêmea. Tenho certeza de que nossos olhos viram a mesma coisa, um no outro. Senti que eu fazia parte de um magnetismo da natureza que me envolvia e envolvia a menina, que alguma coisa vibrava entre nós e que eu tinha um destino ligado àquele tipo de ser, gente de trança, que ria com dentes brancos e lábios vermelhos que era diferente de mim e entendi também que sem aquela diferença eu não me completaria. Ela voltou para o jogo e vi suas pernas correndo e ela se virando para uma última olhada. Meu sentimento infantil foi de impossibilidade, aquele rosto me pareceu maravilhoso e impossível de ser atingido inteiramente - um momento de descoberta e perda. Misteriosamente, nunca mais a encontrei naquela escola.

Foi mais ou menos isso, felicidade e medo, a sensação de tocar num mistério sempre movente, como um fotograma que para por um instante e logo se move na continuação do filme. Sempre senti isso pela vida afora em cada visão de mulheres que amei. São momentos em que a máquina da vida parece se explicar, como se fosse uma lembrança do futuro, como se eu me lembrasse do que iria viver. Percebo hoje que aquela sensação de profundo sentido que tive aos 6 anos pode ter definido minha maneira de amar pelos tempos que viriam. Talvez tenha visto, por um segundo, que o amor aparece em brevíssimos instantes, um cabelo molhado, um rosto dormindo, despertando em nós uma espécie de 'compaixão' por nosso próprio desamparo, entrevisto no outro.

(*) Vou 'dar um tempo' em análises inúteis sobre o Brasil, este país paralisado, onde tudo são expectativas e adivinhações baratas. É ridículo tentar alguma racionalidade sobre a imunda paisagem política que vivemos, onde a corrupção é lei e o absurdo é invencível, tudo dentro de um mundo em crise que só entenderemos quando o pior acontecer.

Por isso, ousarei escrever vários textos como um pobre diabo "proustiano", a ver se descubro alguma clareza sobre o tempo que percorri até hoje. Continuo, talvez, semana que vem.

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