domingo, julho 10, 2011

MÍRIAM LEITÃO - No sol ou na chuva


No sol ou na chuva
MIRIAM LEITÃO
O GLOBO - 10/07/11

Jornalista é um ser estranho, admito. Em férias no Rio, a editora adjunta do Corriere della Sera , convenceu a família de que precisava fazer umas entrevistas. Quando saiu para passear, levou a filha de seis anos para conhecer o teleférico do Alemão, porque queria ver uma comunidade pacificada. Não a culpo, meu passado me condena; também já fiz essas falsas férias em terra alheia.

A jornalista italiana Barbara Stefanelli está interessada em tudo sobre o Brasil: como foi que o País fez a virada? Como venceu a inflação? Para onde vão os traficantes quando ficarem sem território? Por que a população dos locais ocupados pelo Exército e pela Polícia aderiu imediatamente ao poder do Estado, em vez de demonstrar uma relação ambígua, como alguns italianos em regiões que eram controladas pela máfia? O que há de errado com o sistema político brasileiro? Como nasceu o Bolsa Família? A presidente Dilma conseguirá erradicar a pobreza extrema?

Conversamos sobre todos esses temas apaixonantes. Há sempre boas e más notícias. Uma das boas notícias é o interesse que o Brasil desperta em outros países, porque agora não é mais uma curiosidade pelo exótico, mas dúvidas bem informadas. Apesar do nível de informação, há novos estereótipos. Ela conta que, de fora, se tem a ideia de que o ex-presidente Lula sozinho salvou a pátria da desordem.

Expliquei que o Brasil deu a virada passo a passo, com avanços em cada um dos governos democráticos. O grande ponto de ruptura foi o Plano Real - feito por Fernando Henrique no governo Itamar Franco e mantido por Lula nos seus dois mandatos. Marcou o fim da tolerância com a inflação e o começo do tempo de construção do projeto de ordem monetária e inclusão social. Mesmo sendo pessoa bem informada, ela ficou impressionada com o volume de eventos, dramas, fracassos e lutas pelos quais os brasileiros tiveram de passar para conquistar e manter a moeda estável. Eu disse que acredito que a presidente tentará erradicar a extrema pobreza, mas dificilmente conseguirá no seu governo; mesmo assim, os brasileiros deveriam persistir nessa meta, porque está no horizonte de nossas possibilidades.

Sobre o destino dos traficantes expulsos dos seus territórios, eu expliquei que, como todos sabemos, os crimes, o tráfico e as drogas continuarão existindo; mas o intolerável era a existência de território sob controle do tráfico; onde não havia o direito de ir e vir. Essas áreas ainda existem.

Apontei a Rocinha e disse que lá deve ser a batalha final. Bárbara pediu que eu mandasse notícias, quando chegasse esse momento. Contei que a adesão da população às ocupações das Forças Armadas e da polícia em áreas do Rio era reveladora de que os traficantes oprimiam, exerciam o poder de forma tirânica.

No dia anterior, eu tinha conversado rapidamente com o vice-governador, Luiz Fernando Pezão, sobre economia do Complexo do Alemão, após ocupação do Exército. Ele falou com admiração sobre a força do empreendedorismo local, pessoas que organizam negócios para fornecer serviços aos trabalhadores das obras. Falou das possibilidades logísticas do Alemão perto da Avenida Brasil, Linha Vermelha e Linha Amarela.

Há empresas que associadas a ONGs estão começando a se instalar lá, como na parceria AfroReggae e Santander, e a Natura. A Oi conseguiu em semanas por lá uma base de clientes maior do que a cidade de Goiânia. As forças econômicas estavam reprimidas pelo tráfico. Não é tudo, mas é um começo. O fato de uma estrangeira ser capaz de levar uma filha de seis anos para passear no Complexo do Alemão já é um sinal de que algo mudou radicalmente. A menina gostou de tudo. Já tinha entrado em bolhas voadoras assim para esquiar, desta vez olhou as lajes, admirada com o que pode acontecer em telhados. Disse que quer um telhado daqueles para ela.

Nem tudo é bom de contar para um estrangeiro. Preferi ficar nas boas notícias. O Bolsa Família nasceu de experiências exitosas em Campinas, Brasília e Belo Horizonte e, apesar de ter chegado ao nível federal no governo Fernando Henrique, ganhou a atual dimensão no governo Lula. Informei que mesmo somando tudo o que se transfere aos pobres hoje em recursos públicos, o governo ainda gasta mais com os empréstimos subsidiados às grandes empresas.

Há más notícias, das quais não falei. Da sensação de que o País está diante de um problema que parece intransponível na política, com os escândalos que se repetem com uma frequência desanimadora. Na Itália, eles sabem bem o que são escândalos políticos, que lá estão diretamente ligados ao presidente. A oposição não consegue se organizar para ser uma alternativa clara e sólida ao caduco "berlusconismo".

O interessante é o fato de que eles fizeram uma reforma política como a que muitos aqui no Brasil sugerem que será a solução para os nossos problemas: abandonaram o sistema proporcional. Em vez de sanear a política, melhorar a representação e fixar mais a relação com os eleitores, criaram as bases que levou a Berlusconi. Os italianos, em breve, ela me disse, deverão reformar a reforma. Serão feitos referendos que podem restaurar o sistema proporcional. Não há solução fácil à vista para problemas políticos, sejam eles brasileiros ou italianos.

Perguntei à Bárbara como é que ela convenceu a família de que poderia trabalhar em plenas férias, interessada em usar o mesmo truque. Ela mostrou a chuva da janela: "o tempo está fechado no Rio; o que se pode fazer?" Eu não a culpo. Acho que jornalismo é sempre bom, faça chuva ou faça sol.

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