quarta-feira, junho 15, 2011

ROBERTO DaMATTA - Dois filmes



Dois filmes
ROBERTO DaMATTA
O Estado de S.Paulo - 15/06/11


O filme O Discurso do Rei (dirigido por Tom Hooper) tem vários denominadores comuns com um outro filme, seu competidor, Cisne Negro (dirigido por Darren Aronofsky). Ambos lidam com temas referentes a matrizes importantes daquilo que se chama de "cultura" termo que no contexto artístico denota, com todos os preconceitos, refinamento ou "alta cultura". O filme sobre George VI, avô desse príncipe recém-casado com pompa e circunstância, lida com os dramas da aristocracia; já Cisne Negro trata da produção de uma nova versão do balé O Lago do Cisne, de Tchaikovsky. Em ambos os enredos, precisa-se de alguém capaz de desempenhar simultaneamente dois papeis e de realizar dois discursos.

No caso do rei, cujo apelido era Bertie, é preciso torná-lo capaz de falar em público com a segurança requerida de um príncipe e de um rei, algo tranquilo não fosse a gaguez impeditiva de realizar a banalidade que vira proeza. Pois Bertie só é capaz de produzir um discurso - o do filho e do marido. Algo trágico na medida em que ele é alçado ao papel de rei pela renúncia de seu irmão maior, o herdeiro do trono.

No Cisne Negro, o drama se assenta na incapacidade de uma bailarina tecnicamente perfeita, porém incapaz de desempenhar o papel do Cisne Negro, a dimensão transgressora do Cisne Branco. Porque ela não é capaz de realizar o papel infrator, mesmo num balé, nos mostra como o bloqueio desencadeia em Nina todo um surto psicótico que conduz à sua própria destruição.

Pela mesma lógica dos impasses emocionais, Bertie não é capaz de falar (e de ser um "Rei Branco") porque a sua dificuldade em discursar o leva a ser uma contradição em termos: um rei que personifica seu povo é impedido de comunicar-se com ele.

Como vencer esses impasses semelhantes ao do professor que detesta dar aulas (conheci alguns); do acadêmico que não consegue escrever livros geniais prometidos anos a fio (conheci vários), do amante que tem um surto de impotência num encontro amoroso mais do que sonhado (sei de três ou quatro casos e conheço um intimamente); do comandante congelado pelo medo no campo de batalha (vi isso no cinema muitas vezes); do amor realizado por ódio e por vingança contra o marido da ex-namorada (li isso num livro do Kundera); do herói acusado de um crime que procura sua culpa (leia Kafka), do culpado em busca de castigo (leia Dostoievski); ou da moça que escolhe não escolher mas, em vez de transformar-se em Anna Karenina ou Ema Bovary, vira a Dona Flor do saudoso e grande Jorge Amado - é isso que constitui a trama desses filmes. E por isso, emocionam.

Pois cada impasse produz um posicionamento. Há os que abrem e os que fecham. O do rei foi positivo. Em vez de fechar-se em si mesmo, ele, com ajuda da mulher, (sua grande ponte para o mundo) procura um terapeuta que, sendo um amigo especial - uma pessoa à qual se conta tudo -, engendra a confiança. Essa corda que permite descer pela janela sem o esborrachar-se no piso do radicalismo e da negação. E todo radicalismo é, de fato, uma negação. Já o caso da bailarina é mais complexo. No seu mundo, há apenas um diretor ambicioso, amigas competitivas e uma mãe dominadora e ex-bailarina competitiva que impede que a filha faça um caminho diverso do seu.

Eis um quadro curioso, cuja simetria me lembra um daqueles saudosos ensaios de Claude Lévi-Strauss. De um lado, um príncipe gago que não pode ser rei porque só se entra nesse papel produzindo um solene juramento numa abadia, num ritual que é apenas pompa e circunstância - essas coisas cuja emoção é justamente suprimir a emoção. Do outro lado, temos a bailarina ultrapreparada, mas incapaz de revelar as emoções necessárias ao papel de um cisne transgressor. Num caso, um excesso de emoção impede o desempenho de um papel herdado e, vejam a tragédia, não escolhido, mas que tem de ser desempenhado. Noutro, há uma ausência de emoção a qual corresponde a um excesso de técnica que, por sua vez, impede o desempenho de um papel escolhido e desejado.

Em paralelo, há uma ênfase no ouvido e na visão. No entendimento pela conversa franca e honesta que liberta e tira o pó debaixo do tapete, pois até mesmo aristocratas têm problemas, a dificuldade é ultrapassada. No caso do cisne, entretanto, há uma predominância do olhar cujos reflexos reiteram ao personagem as distorções de sua vida.

Alguém disse, faz tempo, que a passagem do ouvido e da leitura para a imagem nua e crua era o começo de tragédia e um prenúncio de fim de um mundo. Esses filmes, especialmente o segundo, não chega a tanto. Mas acentua a necessidade do outro como um guia. Como um ouvinte que impede destruir as pontes entre nós e esses outros que se escondem dentro dos nossos corações.

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